Prof. Dr. Tiago Silva Pacheco
A narrativa de Davi e Golias é bem conhecida, mesmo fora do meio religioso. Descrito em 1 Sm. 17, o confronto lança o jovem pastor de ovelhas de Judá, contra o possante guerreiro armadurado filisteu, temível a ponto de fazer tremer todo o exército de Israel.
A questão que levantamos aqui, por uma perspectiva da História Militar, é a seguinte: seria tal narrativa somente um mito? Ou é uma descrição acurada, o tanto quanto possível (a questão da Inspiração Divina, aceitando-a ou negando-a, não é de interesse algum à História Militar) de um confronto real?
A resposta parece ser um meio termo entre as duas posições. Partindo de uma perspectiva indiciária, como propõe Carlo Ginzburg, pretendemos notar os indícios da narrativa que apontem para contextos de guerra israelitas, confirmáveis por fontes extrabíblicas sejam elas textuais ou arqueológicas. Tais indícios de conflitos reais nos permitem identificar os elementos factuais mobilizados pelo autor bíblico na construção de sua narrativa (conforme RICOEUR, 1994).
Vejamos tais indícios:
1 – Começando pela descrição de Golias:
Então saiu do arraial dos filisteus um homem guerreiro, cujo nome era Golias, de Gate, que tinha de altura seis côvados e um palmo. Trazia na cabeça um capacete de bronze, e vestia uma couraça de escamas; e era o peso da couraça de cinco mil siclos de bronze. E trazia grevas de bronze por cima de seus pés, e um escudo de bronze entre os seus ombros. E a haste da sua lança era como o eixo do tecelão, e a ponta da sua lança de seiscentos siclos de ferro, e diante dele ia o escudeiro. (1 Samuel 17:4-7).
Como identificou Thomas Romer (2008), Esta descrição é exatamente a descrição de um soldado de infantaria assírio, que eram militares profissionais, treinados e equipados pelo Estado.
2 – Agora vejamos Davi:
E Saul vestiu a Davi de suas vestes, e pôs-lhe sobre a cabeça um capacete de bronze; e o vestiu de uma couraça. E Davi cingiu a espada sobre as suas vestes, e começou a andar; porém nunca o havia experimentado; então disse Davi a Saul: Não posso andar com isto, pois nunca o experimentei. E Davi tirou aquilo de sobre si. E tomou o seu cajado na mão, e escolheu para si cinco seixos do ribeiro, e pô-los no alforje de pastor, que trazia, a saber, no surrão, e lançou mão da sua funda (…)1 Samuel 17:38-40
A descrição de Davi bate com jovens camponeses recrutados as pressas, sem familiaridade com a guerra nem com equipamentos marciais.
3 – Note que, ao decidir lutar contra Golias, Davi é alertado que, sendo jovem, iria enfrentar um guerreiro experiente:
“tu ainda és moço, e ele homem de guerra desde a sua mocidade”. 1 Samuel 17:33.
Ao que Davi responde, convicto:
“Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; e quando vinha um leão e um urso, e tomava uma ovelha do rebanho, Eu saía após ele e o feria, e livrava-a da sua boca; e, quando ele se levantava contra mim, lançava-lhe mão da barba, e o feria e o matava”. 1 Samuel 17:34,35.
4 – Pois bem, para quais conflitos militares estes indícios apontam? Não há dúvida de que a monarquia em Judá e Israel surgiu de confronto com os Filisteus, e até mesmo a figura de um rei chamado Davi conta com algumas possibilidades arqueológicas, sendo os filisteus muito melhor armados e organizados (LIVERANI, 2008). Neste sentido, um guerreiro local chamado Davi de fato enfrentou hordas filistias no século X a.C.
Mas a chave da questão está na descrição de Golias não como um filisteu, mas como um assírio. Tal descrição é um indício narrativo do século VII a.C, não do século X. Seria como um paraguaio descrever D. Pedro II, na Guerra do Paraguai, com a farda do BOPE!
Qual era a situação no século VII a.C.? O Império Assírio estava enfraquecido. Josias, rei de Judá, reorganizava o reino e seu exército, a fim de se libertar da vassalagem assíria e ainda por cima invadir os territórios ao norte, reanexando Benjamim, Efraim e os territórios em volta de Samaria (ROMER, 2008, LIVERANI, 2008). Isso é confirmado pela própria narrativa bíblica (que coloca Josias como um piedoso reformador do culto a Javé) como pelas evidências arqueológicas (FINKELSTEIN SILBERMAN, 2003).
Portanto, a épica batalha de Davi contra Golias é uma projeção personificada do passado do fundador da monarquia (Davi) no presente do monarca atual (Josias). Golias é gigantesco e armadurado porque o Império Assírio é gigantesco e dotado de um Exército com a última geração em equipamentos. Davi é pequeno, jovem e equipado de funda e cajado, tal qual os jovens benjamitas e judaitas recrutados por Josias para libertar Judá do domínio assírio. O Épico, além das questões de fé e de exaltação do grande herói daquele povo é, também, uma propaganda de guerra em tempos de mobilização nacional.
Referências
FINKELSTEIN, Israel; e SILBERMAN, Neil Asher. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003.
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus, 2008.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa (Tomo 1). Campinas: Papirus Editora, 1994.
RÖMER, Thomas. A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: Vozes, 2008.