Profº. Dr. Tiago Pacheco
A espionagem, enquanto empreendimento policial, geopolítico ou militar, é uma atividade prolífica e pouco explorada pela História. Focalizando nos homens e mulheres que atuaram como espiões, temos uma possibilidade de interface entre a Nova História Política (REMOND, 2003) e a Nova História Militar (SOARES e VAINFAS, 2012), buscando nos rostos desconhecidos o agir político para além das esferas de poder das elites, e a vivência do conflito no campo de batalha. Se trata de ver, neste caso, como as pessoas comuns afetaram e foram afetadas pela Segurança, pelas Relações Internacionais e pela Guerra.
Ademais, quando falamos de espiãs, acrescemos a este viés de estudos as questões de gênero, ou seja, de hierarquização, construção, ascensão e submissão de mulheres em relação a homens e vice-versa, tal qual propõe autoras como Scott (1991) e Soihet (1997).
Em uma interessante matéria publicada pelo site Russia Beyond, o historiador Boris Egorov elenca quatro exemplos de mulheres notáveis que serviram à União Soviética como espiãs. Egorov, hiperbólico, classifica-as como “4 das melhores agentes de inteligência soviéticas” (https://www.rbth.com/history/333775-4-of-best-soviet-female-spies?fbclid=IwAR0Ql0myP4JLliUe3SawlcopToA2ZKOZue85P9v2Yt5VJBjN6uxVT9poFpQ). É uma boa oportunidade de falarmos aqui sobre o tema.
Os dados biográficos que se seguem são extraídos do artigo de Egorov, traduzidos para o português, com comentários meus em cada caso.
1. Nadezhda Plevitskaya
Ela era uma das cantoras favoritas do imperador Nicolau II da Rússia. O público sempre saudava Nadezhda Plevitskaya, intérprete de romances e canções folclóricas russas, com longas e tumultuadas ovações.
Nota: Esta é uma questão curiosa. Cantoras, atrizes e dançarinas – mormente bailarinas russas – são tropos narrativos comuns de relatos de espionagem, quase que um clichê sociológico. Talvez isto venha da figura de Mata Hari, uma espiã, contudo, ineficaz a despeito da fama daquela mulher enquanto agente. Penso estarmos diante de uma questão pertinente a se investigar: mulheres artistas eram recorrentemente recrutadas? Em caso afirmativo, por qual razão Agências de Inteligência teriam especial interesse nelas? Ou os relatos se destacam mais do que outros, devido a fama delas como artistas? Ou se trata apenas, e tão apenas, de um clichê?
Mas depois da Revolução de 1917, Plevitskaya acabou no exílio. Em 1930, ela e seu marido, general Nikolai Skoblin, foram recrutados pela inteligência soviética. Por sete anos, eles cooperaram ativamente com os serviços secretos da URSS contra a organização antibolchevique de emigrantes brancos, a União Militar Russa (ROVS). Em particular, 17 agentes contrabandeados para a URSS para realizar atos terroristas foram neutralizados graças a eles.
Nota: Há um quadro teórico consolidado nos estudos de Inteligência, chamado Acrônimo MICE, conforme autores como Michael Herman (1996), Henry Crumpton (2013) e Charney e Irving (2014). Este quadro explica as razões pelas quais uma pessoa se envolve com espionagem. No caso, M- dinheiro (Money), I – ideologia (Ideology), C- coerção (Coercion) e E- ego. Egorov, infelizmente, não explica como e por que Plevitskaya foi recrutada. Se ela estava exilada, então era contra a Revolução de 1917? Foi um mal-entendido? Como foi convencida a trabalhar como espiã? Foi paga ou coagida? São perguntas importante, que não deveriam ter sigo ignoradas.
Sobre o Acrônimo MICE e estudos sobre História da Espionagem, temos aqui no site História Militar em Debate, um artigo no qual explico e proponho esta metodologia (https://historiamilitaremdebate.com.br/jogo-das-sombras-uma-historia-da-espionagem-e-das-acoes-secretas/).
Em 1937, o general Yevgeny Miller, uma das figuras mais importantes do ROVS, foi sequestrado em Paris e levado para a URSS. Logo depois, Plevitskaya foi presa pela polícia francesa por seu envolvimento na operação Miller e condenada a 20 anos de trabalhos forçados. Nadezhda Vasilievna Plevitskaya morreu na prisão dois anos depois, em 1º de outubro de 1940.

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2. Elena Ferrari
Olga Revzina, mais conhecida por seu pseudônimo ‘Elena Ferrari’, combinou com sucesso o trabalho para a inteligência soviética com atividades literárias. Seus poemas foram publicados na URSS e na Itália e seus contos em prosa foram elogiados pelo proeminente escritor Maxim Gorky.
Na década de 1920, Ferrari estabeleceu redes de inteligência na Alemanha e recrutou engenheiros militares na Itália.
Nota: aqui estamos diante da possibilidade de uso de outra ferramenta estabelecida por especialistas do campo de Inteligência. Michael Herman (HERMAN, 1996, p. 61-66) propôs um esquema piramidal a fim de ilustrar como este tipo de fonte se relaciona com Agências de Inteligência. Nesta ilustração, as fontes cujos dados fornecidos são menos significativos compõem a base, enquanto o topo é reservado para as fontes capazes de fornecer dados potencialmente mais valiosos e confiáveis.
Elena, portanto, seria uma agente encabeçando seu próprio esquema piramidal, o que denota algum status e hierarquia dentro da Inteligência Soviética.
Sobre o uso da Pirâmide de Humint para uma História Social da Espionagem, ver nosso artigo: https://historiamilitaremdebate.com.br/piramide-de-herman-como-instrumento-de-analise-de-humint/
Mas sua operação mais significativa foi sua participação no atentado contra a vida do barão Pyotr Wrangel. Após a derrota do movimento branco na Guerra Civil, Wrangel, um de seus líderes mais proeminentes e arqui-inimigo dos bolcheviques, acabou na Turquia com os remanescentes de seu chamado Exército Russo. Em 15 de outubro de 1921, o navio italiano Adria, vindo da Rússia Soviética, abalroou o iate de Wrangel, o Lucullus, que estava ancorado no porto de Istambul. O comandante militar, ao que se constatou, estava em terra no momento, mas seus pertences pessoais, documentos e o tesouro do exército foram para o fundo do mar.
Nota: o atentado posto em prática por Elena e sua equipe é mais um capítulo de séculos de missões secretas violentas. Conceitualmente, há uma sobreposição entre Espionagem, Operações Especiais e Operações Encobertas. Espionagem é o ato de coleta e fornecimento de dados. Operações Especiais é o nome dado a operações atrás das linhas inimigas, de sabotagem, reconhecimento e guerra não convencional. Operações Encobertas são atividades de sabotagem, assassinato, sequestro e propaganda, postas em prática como alternativa diplomática e militar, que possam ser plausivelmente negadas caso descobertas. Os conceitos são bem distintos e de forma alguma podem ser tomados como sinônimos. Contudo, são também interligados, como os disfarces, contatos e conexões estabelecidos pela espionagem são de extrema valia para Operações Especiais, e simplesmente indispensáveis para as Operações Encobertas (CEPIK, 2003). Nisso, discordo de John Keegan, no clássico “Inteligência na Guerra”, onde ele insiste numa separação mais incisiva destas atividades.
Durante uma visita de rotina à URSS, Elena Ferrari pereceu no Grande Terror. Acusada de atividade contrarrevolucionária e espionagem, foi executada por um pelotão de fuzilamento em 16 de julho de 1938. Ela foi reabilitada postumamente em 1957.
Nota: aqui estamos diante de uma dicotomia a ser explorada. As mulheres tinham maior possibilidade de ascensão e maior status numa União Soviética progressista, o que se verifica no caso de Elena e de outras personagens, como a famosa agente Sonya Ursula Kuczynski (MACINTYRE, 2020), curiosamente ignorada na lista de Egorov. Por outro lado, lembramos falarmos de uma ditadura, sustentada (como todas) na constante paranoia do inimigo interno, (no caso, “traidores da Revolução”). Como em toda ditadura, os Direitos Fundamentais são completamente ignorados. Neste caso, o status, patente e medalhas dadas a mulheres de nada serviram diante de acusações estapafúrdias do governo soviético, como a que sofreu Elena.

3. Elizaveta Zarubina
Ela era uma verdadeira “caçadora de talentos”. Havia poucos recrutadores na inteligência soviética a par de Elizaveta Zarubina. “Charmosa e sociável, ela fazia amizades com facilidade nos mais diversos círculos. Uma mulher elegante, com traços de beleza clássica e refinada por natureza, ela atraía as pessoas como um ímã. Liza [abreviação de Elizaveta] era uma das mais habilidosas recrutadoras de agentes”, assim a descreveu Pavel Sudoplatov, membro dos serviços de inteligência soviéticos.
Ao longo de anos trabalhando em diferentes países da Europa e nos Estados Unidos, Elizaveta, junto com seu marido, o oficial de inteligência Vasily Zarubin, recrutou centenas de agentes. Eles eram os manipuladores do oficial da Gestapo Willi (Willy) Lehmann, um dos informantes mais valiosos da União Soviética no Terceiro Reich. A rede de agentes estabelecida pelos Zarubins na Alemanha continuou a funcionar parcialmente, mesmo após a derrota da Alemanha nazista.
Elizaveta Zarubina foi a primeira agente soviética a obter informações sobre o início dos trabalhos para o desenvolvimento de uma bomba nuclear nos EUA. Tendo feito amizade com Katherine, esposa de Robert Oppenheimer, chefe do Projeto Manhattan, ela foi fundamental para conseguir físicos e matemáticos com pontos de vista de esquerda recrutados para o programa secreto. Eles, por sua vez, transmitiram informações valiosas a Moscou.
Nota: Como Elena, mais um caso de uma agente considerável na hierarquia da Inteligência Soviética, estabelecendo sua Pirâmide de Inteligência. E, como Elena, parece que Elizaveta espionava pelo I do acrônimo MICE: Ideologia.

4. Melita Norwood
Graças ao agente soviético ‘Hola’ , Stalin sabia mais sobre o programa da bomba atômica britânica do que alguns dos próprios ministros do país. Por quase 35 anos, Melita Norwood copiou documentos secretos relacionados ao projeto de armas atômicas britânicas para a URSS.
A comunista convicta Norwood teve acesso a essas informações quando conseguiu um emprego como secretária na British Non-Ferrous Metals Research Association (BNFMRA), que estava envolvida no programa atômico. Em várias ocasiões, o serviço de contraespionagem, MI5, suspeitou de Melita, mas não havia nenhuma prova de suas atividades de espionagem.
A ‘Agente Hola’ só foi descoberta em 1992, quando Norwood, então aposentada, tinha 80 anos. O governo britânico decidiu não prendê-la e deixar a “Red Granny” (como foi apelidada pela imprensa) em paz. “Fiz o que fiz não para ganhar dinheiro, mas para ajudar a evitar a derrota de um novo sistema, que a um alto custo deu às pessoas comuns comida e tarifas que podiam pagar, boa educação e serviço de saúde”, disse Norwood a jornalistas em A Hora.
Nota: ou seja, Melita também espionava pelo I – Ideology, do acrônimo MICE.
Imagem de Destaque: Nadezhda Plevitskaya – https://m.famousfix.com/post/nadezhda-plevitskaya-32623153
Referências
EGOROV, Boris. 4 of the BEST Soviet female intelligence agentes. May, 12, 2021. Disponível em https://www.rbth.com/history/333775-4-of-best-soviet-female-spies?fbclid=IwAR0Ql0myP4JLliUe3SawlcopToA2ZKOZue85P9v2Yt5VJBjN6uxVT9poFpQ, acesso em 8 de abril de 2023.
CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: FGV. 2003.
CHARNEY, David L.; IRVIN, John A. A Guide to the Psychology of Espionage. AFIO’s Intelligencer Journal, 2014.
CRUMPTON, Henry A. A Arte da Inteligência: os bastidores e segredos da CIA e do FBI. Barueri: Novo Século, 2013.
HERMAN, Michael. Intelligence power in peace and war. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
KEEGAN, John. Inteligência na Guerra: conhecimento do inimigo, de Napoleão À Al-Qaeda. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MACINTYRE, Ben. Agent Sonya. New York: Crown, 2020.
REMOND, René. Por Uma Historia Política, Editora, FGV, 2003.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Recife: S.O.S Corpo, 1991, pp.1-29.
SOIHET, Raquel. História, mulheres, Gênero: contribuições para um debate. In: AGUIAR, Neuma (org.). Gênero e Ciências Humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Ventos, 1997.
SOARES, Luis Carlos; VAINFAS, Ronaldo. A Nova História Militar. In:CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.