Prof. Dr. Tiago Silva Pacheco
Há um bom tempo venho dizendo que a era dos espiões acabou. O uso de satélites, de drones, da Internet e de outras tecnologias oferece dados mais confiáveis e em tempo mais hábil do que batedores, infiltrados e informantes. Ou seja, falamos de Inteligência obtida por meio de interceptação sinais (SIGINT), imagens de satélites ou aviões (IMINT), radares (ELINT) e assim por diante, em contraposição à Inteligência obtida por pessoas (HUMINT). Neste sentido, a Guerra da Ucrânia é o primeiro grande conflito digital da história, envolvendo diuturnas e acirradas disputas cibernéticas.
Isto posto, especialmente os americanos (mas não somente eles) estão se adaptando em relação a fazer os dados chegarem o mais rápido possível aos comandantes no campo de batalha. Isto requer ajustes, porque se tratam de dados classificados, ou seja, acessíveis a poucos. Não basta que o Estado Maior tenha fotos e vídeos das movimentações inimigas, de seus drones, de seus aviões. É preciso que os comandantes das tropas em combate tenham acesso a estas informações, se possível, em tempo real1. A Inteligência só presta se ela lhe prepara para a situação2: depois, “Inês é Morta”.
Da mesma forma, é uma era na qual todo mundo tem celular com câmera, empresas e centros de pesquisa também tem satélites, e as redes sociais publicam constantemente sobre qualquer tipo de assunto. Sem falar em jornais, revistas, portais, etc. Chamamos isso de “fontes abertas” (OSINT) as quais, por vezes desprezadas, tem sua importância reconhecida há décadas. Mas este tipo de material se tornou fundamental para a forma como se faz Inteligência e (Guerra!), na medida em que permite não apenas entender como combater tanto a propaganda como a “Black Propaganda” adversária. Isso é outra forma de dizer que os órgãos de Inteligência não apenas estão atentos às redes sociais e demais formas de comunicação digital, como estão efetivamente operando por meio delas. Ingleses já fizeram pelo menos um seminário sobre isso3.
Contudo, mesmo com todo este arsenal tecnológico, agentes de campo ainda se fazem necessários. Esta foi uma experiência aprendida na Guerra das Malvinas, quando a Inglaterra confiou demais nos satélites americanos e praticamente não tinha agentes em Buenos Aires. Isso gerou uma hipermetropia nos ingleses, capazes de acompanhar cada movimento naval e aéreo argentino, mas alienados acercado do moral, as motivações políticas e das entranhas decisórias do oponente4. Da mesma forma, isso dificultou muito as operações especiais atrás das linhas inimigas5: embora a coleta de dados seja uma atividade conceitualmente distinta das Operações Encobertas e das Operações Especiais, o fato é que a capacidade alocada pela Inteligência Humana é fundamental para implantar tais missões6. Em termos menos técnicos, redes de espiões e colaboradores locais são fundamentais para inserir, esconder e dar fuga a grupos militares e paramilitares que operam atrás das linhas inimigas. Não só. No Afeganistão, os americanos recrutaram mulheres como Rangers, ao perceberem que seus soldados não conseguiam se comunicar com mulheres e crianças dos locais controlados pelos Talibãs, muito menos obter sua colaboração na caça a alvos significativos: as americanas superaram tal barreira7.
Assim, a guisa de exemplo do quadro aqui esboçado, para além dos satélites, dos aviões de reconhecimento e dos hackers, a CIA mantém oficiais de Inteligência em território ucraniano, observando a guerra com “olhos humanos”, mantendo contato com a população, dialogando com as milícias neonazistas locais, viabilizando a chegada de voluntários, auxiliando na negociação com mercenários contratados e promovendo tanto o treinamento como o fornecimento de armas para combatentes locais. Do lado russo, são cultivados ativos oriundos das regiões de Donetsk e Luhansk, identificando e recrutando colaboradores os ucranianos que se opõem a Zelensky, municiando-os e coletando dados por meio deles.
Em síntese, se durante o século XX a Inteligência teve por base as fontes humanas, complementadas pela tecnologia, hoje temos o inverso: Inteligência é quase sinônimo de tecnologia, mas ainda depende de homens e mulheres em campo como elementos complementares. E tal atuação está intimamente ligada à guerra não convencional e ao suporte das Operações Encobertas e das Operações Especiais.
NOTAS:
1 Sobre isso, ver https://www.defenseone.com/technology/2022/10/ukraine-war-teaching-us-how-move-intelligence-faster/378361/, acesso em 17 de dezembro de 2022, 17:42.
2 SIMS, Jennifer. What is Intelligence? Information for decision makers. In: GODSON, Roy; SCHMITT, G.; MAY, E. US Intelligence at the crossroads: agendas for reform. New York: Brassey’s, 1995: p.5.
3 Ver https://www.gov.uk/government/speeches/how-open-source-intelligence-has-shaped-the-russia-ukraine-war, acesso em 17 de dezembro de 2022, 17:59.
4 KEEGAN, John. Inteligência na Guerra: conhecimento do inimigo, de Napoleão À Al-Qaeda. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
5 Elas foram mais difíceis que o padrão, que já é de alta periculosidade. Mas ainda se conseguiu algo, como a destruição de onze aviões argentinos “Pucará” além de quatro helicópteros Puma e Chinook. Ver o nosso artigo sobre o SAS (https://historiamilitaremdebate.com.br/unidade-sas/).
6 CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: FGV. 2003.
7 https://www.foxnews.com/us/attitude-shift-covert-teams-female-us-afghan-soldiers-opened-door-women-combat, acesso em 17 de dezembro de 2022, 18:17.
Uma coisa é certa, a segunda guerra comparada com esse evento na Ucrânia será coisa de jardim de infância.
Oi Nilson, a nível de recursos de Inteligência, sim.
De fato essa é a guerra das mídias sociais. A guerra do golfo foi a primeira televisionada ao vivo.
Concordo, Paulo.
Concordo, Paulo.
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Thiago da Silva Pacheco.