Equipe HMD
Autor: Anselmo Heidrich
“ In the long run, we are all dead. ”
John Maynard Keynes, A Tract on Monetary Reform (1923)
Longotermismo é o nome que se dá a um movimento formado por cientistas, filósofos, empresários que veem no longo-prazo a chance para que a humanidade sobreviva, de modo que nossos esforços enquanto civilização deveriam se focar nele, seja no seu desenvolvimento econômico seja no equilíbrio ecológico, separação esta indesejável para seus defensores. Figuras proeminentes no campo econômico como Bill Gates e Elon Musk estão entre os adeptos que reverenciam os feitos e projetos com vistas ao desenvolvimento futuro da humanidade, com empresas de criogenia, de congelamento de seres humanos para acordar no futuro desfrutando de um melhor padrão de vida ou a colonização de Marte a propostas mais urgentes como sanar e/ou mitigar os efeitos da provável crise climática que vivemos. Não há como rejeitar o valor positivo disso tudo.
Não há? Bem, sempre temos o contraditório. Críticos dessa visão têm dito que melhor do que sonhos improváveis ou inexequíveis de colonização de outros planetas conviria muito mais focar nos problemas do presente, do aqui e agora na Terra para garantir uma maior sustentabilidade e justiça intergeracional se quisermos mesmo privilegiar o futuro. Outros ainda chegam ao exagero de acusar os longotermistas de “racismo”, por serem excessivamente voltados aos problemas e visão centrados no Ocidente avançado, esquecendo do “Sul global”, do mundo muçulmano, das periferias pobres etc. A bem da verdade, esses problemas não serão resolvidos por uma elite de estrangeiros ricos, pois dependem do equacionamento interno, de substituição de elites corruptas e reformas estruturais nos estados de sociedades empobrecidas.
O faminto dragão chinês
Para enxergar melhor o que se passa no mundo, temos que descer do nível de abstração teórica e vislumbrar a realidade com seus problemas urgentes e, neste caso, o chão de fábrica do mundo aponta alguns caminhos. Robert D. Kaplan em Os Confins da Terra comenta os prognósticos sobre o futuro da China, dos quais todos cenários positivos para o país se baseiam na “teoria sócio-social” que vem a ser, nada mais nada menos, que uma visão economicista apartada da natureza, isto é, do meio natural tout court. Muito menos pretencioso do que tentar vender a ideia de uma “vingança da natureza”, trata-se simplesmente de uma visão realista sobre segurança ambiental.
Vejamos como isso funciona, se avaliarmos os dados puramente econômicos da China ou, dados tradicionalmente divulgados como os mais importantes da economia, não há por que não sermos otimistas com o futuro da humanidade. Trata-se de um retumbante caso de sucesso que retirou cerca de 1/5 da população do planeta, senão quase isto, da mais abjeta miséria material legada pelo regime comunista com monopólio do controle dos meios de produção. Em meados da década de 90, Kaplan, comentava:
“A China é agora um campo para o debate de teorias futurísticas. O cenário otimista da China é bem conhecido. Baseia-se em uma força cultural perceptível (uma língua escrita de pelo menos três mil anos, 80% de adultos alfabetizados etcétera) e grande atividade econômica. Em 1992 a economia chinesa crescia à taxa anual de 12,8% por cento, e alcançou taxas até de 14 por cento em meados da década. A renda per capita tem aumentado 8 por cento por ano, taxa essa que, se mantida, mais do que duplicará a renda em dez anos. A classe média chinesa compreende hoje 60 milhões, talvez mais, mesmo sob regime comunista. Referindo-se especificamente à China e a outros PRIs,1 Barton Biggs, presidente do Morgan Stanley Asset Management de Nova York, pessoa muito viajada, observa que “seja qual for a medida que se aplicar, a vida está ficando melhor para habitantes de países em desenvolvimento”. Descontando dos problemas de poluição e superpopulação, diz Biggs, “pergunte o povo desses países se estão dispostos a pagar o preço, e a resposta será esmagadoramente afirmativa”” (Kaplan 1998, p. 362-363).
Diferentemente dos dragões no imaginário ocidental, os dragões chineses simbolizam boa sorte, saúde e sucesso e, cada vez mais, esta figura encontra eco na realidade. Segundo dados do Banco Mundial, a população chinesa de 1,3 bilhão cresce a taxa de 0,1% ao ano, o que equivale a 13 milhões por ano, uma São Paulo por ano para ser alimentada, uma Argentina a cada três anos. Enquanto tivemos um acréscimo de 200 milhões de habitantes de 2010 a 2020, cerca de 13%, a área agricultável aumentou apenas 6% de 2009 a 2019. Embora o crescimento da produtividade tenha sido notável, o dobro da média mundial entre 2001 a 2015, e o país tenha tido outra (verdadeira) revolução, passando de 1,9% na década de 1980 para 4,21% e 1990, também ocorreu um brutal crescimento da classe média, ou seja, do consumo. Duas décadas atrás, a classe média chinesa era de míseros 2,5 milhões de pessoas, 100 vezes menos da taxa atual e o crescimento previsto para 2030 se aproxima de 1 bilhão, três vezes maior que a população dos Estados Unidos.
Mais de 2 bilhões de toneladas de cereais são produzidas mundialmente, tendo sido comercializadas mais de 570 milhões em 2021. Enquanto isso, a China com apenas 7% de suas terras aráveis emergiu como grande importador de alimentos para 22% da população mundial.
Outro dado é sobre o consumo de carne na China, ainda muito inferior para os padrões da OCDE, mas conforme cresce o poder aquisitivo do país, mais carne é consumida e seu gado precisa de mais e mais grãos.
As metas de autossuficiência alimentar da China têm sido rapidamente superadas pela evolução da demanda de alimentos, conforme sua classe média é ampliada. Situações como a dos EUA, que produzem 1,4 vezes mais grãos do que consomem, ou da Austrália com 3 vezes mais trigo são muito distantes da realidade chinesa. Em uma breve comparação para países em situações similares, a Índia exportou quase 9,8 milhões de toneladas de arroz – cerca de 22,5% do total global, ao passo que a China apenas 6,3% das exportações globais no mesmo período.
É inevitável temermos por algum cenário global de instabilidade ao analisarmos a realidade asiática e se é assim para a China, o que dizer de outras regiões economicamente mais frágeis? Na África Subsaariana, 28 milhões de crianças têm seu crescimento atrofiado devido à desnutrição que impede seu desenvolvimento mental e físico, em grande parte irreversível. Nosso alento era que os 663 milhões de subnutridos no mundo, pouco menos de 9% da população mundial, correspondiam a 13,3% em 2001. Vejamos o gráfico abaixo do site Our World in Data:
Por outro lado, a pandemia e da guerra na Ucrânia podem interromper esta tendência.
Thomas Malthus nunca morreu pra valer
Em termos de longo prazo, a fome tem diminuído no mundo, a subnutrição também, mas isto não evita que eventos como mudanças bruscas no tempo atmosférico resultantes ou não de mudanças climáticas ou tragédias como a guerra na Ucrânia não afetem a produção e distribuição de alimentos. Podemos até ser otimistas como os longotermistas, mas no curto prazo a história é outra, aí as garras do desequilíbrio entre fatores de produção, produtividade e crescimento populacional estão bem presentes.
Mesmo antes da invasão russa à Ucrânia, as previsões agrícolas já eram ruins. Chuvas que atrasaram o plantio na China, altas temperaturas na Índia, secas dos EUA ao Chifre da África passando pela França, temos uma instabilidade geral. E, para coroar o bolo do caos, os países diretamente beligerantes, Rússia e Ucrânia são responsáveis por quase 30% do trigo comercializado mundialmente, 29% da cevada, 15% do milho e 75% do óleo de girassol. Com a guerra, 400 milhões de pessoas que dependem do fornecimento de calorias da Ucrânia serão diretamente afetadas. Portos estão bloqueados e não basta o completo cessar-fogo para o rápido retorno à normalidade, já que a Rússia teria que permitir o transporte marítimo no Mar Negro, a Ucrânia retirar suas minas próximas ao porto de Odessa e a Turquia permitir escoltas navais pelo Estreito de Bósforo para alcançar alguma estabilidade no fornecimento.
Se, por um lado, no curto prazo, nossa esperança está na interrupção desses conflitos que ora vigem e na substituição de matrizes energéticas poluidoras, no longo prazo, conforme aumenta a demanda mundial por alimentos, se encontra no radical desenvolvimento da biotecnologia e manipulação genética das culturas alimentícias capazes de protege-las de doenças e pragas. Isto em termos gerais e globais, pois a ameaça da subnutrição é o “velho normal” em países emergentes que gastam 25% de seus orçamentos em alimentos, sendo que chega até 40% na África Subsaariana e a incapacidade de muitas dessas economias subsidiar os pobres.
A crise energética e o aumento de importações chinesas para estocagem de alimentos geram um cenário turbulento difícil de esperar pelo futuro com suas utopias tecnológicas. A impressão que temos é que os governos mais parecem insetos tentando controlar um tronco flutuando na correnteza em direção a uma enorme cascata. Em um imaginário desses, reverberar um discurso otimista baseado no longo prazo da humanidade, simplesmente não é suficiente.
Também sabemos que volta e meia na História nos deparamos como o fantasma malthusiano de um mundo onde a produção agrícola seja incapaz de saciar as necessidades de uma crescente população. Tal distopia futurista vaticinada por Thomas Malthus em fins do século XVIII, felizmente, não ocorreu, graças ao avanço tecnológico e produtividade agrícola. Ocorre que mesmo que no longo prazo tenhamos sido “vencedores” ou, mais humildemente, sobreviventes nesta saga humana na face do globo, isto não nos exime de percalços conjunturais que ceifam a vida de milhões. Se for verdade que Malthus nunca morreu de verdade e seu fantasma ainda nos apavora, também é certo que o dragão chinês está em pé e desafiando-o.
Referências
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FAO. World Food Situation. https://www.fao.org/worldfoodsituation/csdb/en/. Acesso em: 27 de agosto de 2022.
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KAPLAN, Robert D. Os Confins da Terra: uma viagem na véspera do século 21. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
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NEXO JORNAL. O que é ‘longoprazismo’. E quais as críticas a ele. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/08/22/O-que-%C3%A9-longoprazismo.-E-as-cr%C3%ADticas-a-ele. Acesso em: 31 de agosto de 2022.
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POPULATION PYRAMID. República Popular da China – 2019. Disponível em: <População: República Popular da China 2019 – PopulationPyramid.net>. Acesso em: 27 de agosto de 2022.
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