Rodolfo Queiroz Laterza¹ e Ricardo Pereira Cabral²
INTRODUÇÃO
O conflito militar entre Rússia e Ucrânia ganha novos desdobramentos em mais de sete meses de combates, com agravamento das hostilidades e desdobramentos críticos que levam a uma perspectiva de seu prolongamento.
Após a ofensiva (até o momento exitosa) desencadeada no eixo de Izium e Kharkhiv a partir de 05 de setembro de 2022, as Forças Armadas da Ucrânia (FAU) consolidaram as cabeças de ponte na margem esquerda do Rio Oskol, de onde desenvolveram ataques móveis à sua margem direita e retomaram alguns assentamentos na linha de contato, bem como grande parte da estratégica cidade de Kupyansky (notadamente a parte oeste e a zona industrial) faltando retomar o controle total do setor leste que ainda está sob controle das forças russas.
O rio Oskol, que corre do norte para o sul da Rússia até o rio Donets, no leste da Ucrânia, é uma barreira defensiva natural. Portanto, fazia sentido que quando uma dúzia de brigadas ucranianas atravessassem as frágeis linhas de defesa russas na área leste de Kharkiv, na primeira semana de setembro, os russos recuassem 30 milhas a leste do outro lado do rio para se reagrupar, reajustar o dispositivo e promover uma possível contra ofensiva de inverno.
Porém o fator crítico do baixo efetivo e de meios de combate russo em relação às FAU ainda compromete uma perspectiva de desenvolvimento de contra ofensiva. A mobilização parcial decretada em 21/09 pelo presidente Vladimir Putin vai levar pelo menos 60 dias para gerarem efeitos no desenvolvimento da capacidade de combate das forças russas no teatro de operações.
O desenvolvimento militar mais relevante entretanto tem ocorrido há semanas ao longo da linha operacional da estratégica cidade de Krasny Liman, um importante centro de distribuição de recursos militares das forças russas que foi tomado no final de maio do corrente ano.
Aproveitando as fracas linhas de defesa russas estabelecidas nas cidades circunvizinhas, as forças de combate ucranianas desenvolveram um controle de fogo da área e promoveram assaltos ligeiros formando uma saliência do tipo “caldeira” similar àquela desenvolvida pelas forças russas em batalhas ocorridas em maio e junho em Donetsk e Luhansk.
O baixo efetivo empregado pelas forças russas na defesa desse setor favoreceu as manobras operacionais ucranianas, as quais enfrentaram pesada resistência na linha de contato dos arredores ao sul de Krasny Liman, defendida predominantemente pela unidade voluntária “BARS -16”, unidades cossacas e por unidades de combate do 20° Exército, que vieram em reforço há 1 semana atrás.
As forças ucranianas empregam em torno de 20 mil combatentes contra 2-3 mil tropas russas, que só receberam reforços em 29/09, com 4 batalhões de voluntários recentemente formados.
Apesar de vários ataques empreendidos pela aviação tática russa às reservas deslocadas no perímetro operacional, as FAU conquistaram na data de 30/09 os importantes assentamentos de Dibrova, Yampil, Dobrysheve e Stavky. Unidades de reconhecimento das FAU chegaram a cortar a estrada que liga Krasny Liman a Torske, mas os reforços russos conseguiram retomar o controle da estrada, ainda que submetida a pesados bombardeios ucranianos.
Nos últimos dias a Força Aérea Russa (VKS), aumentou sua taxa de surtidas no leste em uma tentativa desesperada de salvar as forças terrestres russas sitiadas, mas as rígidas defesas aéreas ucranianas compostas por MANPADS ocidentais e sistemas Buk-MK1 atenuaram o impacto dessas operações aéreas. Os ucranianos reivindicaram a derrubada de quatro caças russos apenas no sábado, dia 24/09, embora evidências indiquem 1 Su-30 e 1 Su-25.
Contornando Krasny Liman do norte, as FAU ocuparam Kolodezi, Zelenaya Dolina. A estrada da cidade de Svatovo para Liman foi cortada pelas forças ucranianas.
À noite, a ofensiva ucraniana foi interrompida na área de Stavki. No momento, a linha de frente percorre a periferia sul de Stavki até a periferia norte de Zarechnoe. Ao norte de Zarechnoe, os grupos de reconhecimento ucranianos cruzam o rio Zherebets e operam na área da estrada para Svatovo. De acordo com relatos do local, os militares russos enviaram recentemente reforços para a área.
A última estrada que leva a Krasny Liman de Kremennaya, que foi usada para o abastecimento do agrupamento russo, ficou sob controle de fogo da artilharia ucraniana.
Apesar da ameaça de bloqueio da cidade de Liman, as forças russas defenderam firmemente suas posições. Nenhuma evacuação dos militares russos da cidade foi relatada até 01/10. Na noite de 29 de setembro, a administração local confirmou que as autoridades não deixaram a cidade. Até o final de 30 de setembro, as FAU não conseguiram concluir a operação de cerco de Lyman.
Depois de recuar das localidades de Drobysheve e Yampil, as defesas das Forças Armadas Russas se alinharam ao longo dos arredores de Lyman e do limite avançado da área de defesa ao redor da estrada Lyman – Zarichne – Torske. As forças russas repeliram as tentativas das FAU de bloquear o corredor.
As FAU prosseguiram na ofensiva com pelo menos 6 mil combatentes neste eixo, apoiados por blindados na direção de Drobysheve, Stavok, Dibrova, Yampil e Lyman .
Ao mesmo tempo, a partir da direção de Kolodyazi através de uma barragem através do reservatório, foi feito um avanço ucraniano em direção a Terny. Os veículos blindados das FAU conseguiram penetrar no assentamento por um tempo, sendo depois expulsos pelas forças russas.
Nesta seção da frente, a defesa é conduzida ao longo da margem leste do reservatório, mas dada a cabeça de ponte criada pelas FAU em Ozerne e as eficazes táticas de usar pequenos unidades móveis, permanece significativa a capacidade das forças ucranianas de desbordar, infiltrar ou atacar a retaguarda das forças russas.
Após a chegada dos primeiros reforços, as Forças Armadas russas lançaram uma contra-ofensiva contra Stavky, tentando estender sua zona de controle ao norte de Lyman. No final de 30 de setembro, as tropas russas retomaram essa localidade.
Em 01 de outubro, as FAU concentraram seus principais esforços em três seções das estradas Liman – Zarechnoye, Torskoye – Kremennaya e Torskoye – Svatovo. Distribuindo adequadamente as forças, as formações ucranianas se concentraram em cortar as linhas de comunicação das tropas russas.
Ao mesmo tempo, a pressão sob as posições defensivas russas continuou em de Krasny Liman, em Stavki, nos arredores do norte de Yampol e ao longo da estrada Torskoye-Svatovo.
Ao meio-dia de 1º de outubro, as FAU conseguiram cortar fisicamente a estrada Torskoye-Svatovo e prender as forças das Forças Armadas da RF em uma batalha na região de Ternov
A bandeira ucraniana foi finalmente hasteada na entrada ocidental de Liman, fato evidenciado pela ausência de sons de combate de armas pequenas e ataques de artilharia na entrada oeste da cidade.
A luta então se deslocou para o centro e leste de Krasny Liman, para a periferia sul de Stavki e para a periferia norte de Yampol. As linhas de comunicação entre Torsky e a guarnição de Krany Liman foi bloqueada por barragens de artilharia.
As Forças Armadas Russas tentaram um contra-ataque Zarechnoye (Kirovsk), sendo que é por essa localidade que passa a estrada Liman-Torskoye.
A estrada Torskoye-Kreminnaya está sob fogo constante das FAU, com forças-tarefa ucranianas tentando engajar unidades russas na batalha e buscando assegurar o controle operacional total de Krasny Liman e superar a resiliente defesa empreendida pelas unidades de combate de voluntários russos. As FAU estão deslocaram unidades de combate dos eixos de Seversk e Soledar, enfraquecendo as poderosas linhas de defesa nestas importantes cidades de Donetsk. Os russos reagem com avanços lentos e pontuais lideradas por formações de mercenários da PMC Wagner.
Por volta do meio do dia de 01 de outubro, o comando russo ordenou o recuo das tropas e o abandono de Krasny Liman, focando na defesa de Kreminna a fim de impedir o controle ucraniano da estrada de Liman-Torskoye, via essencial para distribuição de suprimentos e tropas.
Por que Krasny Liman é tão importante para as forças ucranianas?
O controle de Krasny Liman, provavelmente, afetará a capacidade ofensiva futura das forças russas para a tão cobiçada cidade-fortaleza de Slavyansk, pois suprime a logística para o eixo de Izium em definitivo e cria uma cabeça de ponte para uma nova ofensiva ucraniana a Kreminna em Luhansk e à refinaria de Lisichansk.
As forças russas a leste de Kharkiv agora estão voltando para uma nova linha defensiva que atravessa um vale que vai da cidade de Svatove, no norte, até Kremmina, no sul, a 40 quilômetros de distância. Este é um vale cercado de ambos os lados por terreno alto, não sendo exatamente uma posição forte para qualquer defensor.
A operação ofensiva ucraniana é realizada por grandes forças, apoiadas por equipamentos militares estrangeiros, incluindo os MLRS HIMARs, os quais serão repostos dentre as perdas ocorridas conforme anunciado em novo pacote militar dos EUA de assistência à Ucrânia de US$ 1,1 bilhão. Os instrutores militares da OTAN fornecem aos militares ucranianos o apoio de inteligência necessário, coordenam as operações e auxiliam os oficiais ucranianos.
O objetivo dos militares ucranianos é cortar a comunicação entre o LPR e as regiões de Belgorod e Voronezh da Rússia. As FAU precisam assumir o controle da cidade de Svatovo e ameaçar ainda mais a cidade de Starobelsk. Se as FAU forem bem-sucedidas, seu avanço destruirá as defesas russas na região norte de Donbass. Como resultado, as forças lideradas pela Rússia podem abandonar a aglomeração de Severodonetsk-Lisichansk, uma séria derrota estratégica.
Com a retomada de Krasny Liman, agora o objetivo imediato das formações ucranianas é bloquear Kremennaya e assumir o controle das represas no rio Zherebets.
Muito provavelmente, a próxima fase ativa da ofensiva das FAU pelo eixo de Kupyansk e Redkodub em Svatovo, por onde passam as rotas de abastecimento para as Forças Armadas Russas.
A estabilização do front de Kherson: perda de iniciativa das forças ucranianas
Em 29 de agosto, as Forças Armadas da Ucrânia desenvolveram no eixo de Kherson, mais precisamente no amplo perímetro operacional de Mikolayev-Krivoy Rog, uma contra ofensiva em 5 eixos.
Em 31 de agosto, as FAU conseguiam tomar as ruínas de Sukhyi Stavok e ocupar Kostromka e chegar à vila de Bruskyns’ke. Unidades ucranianas se encontravam em terreno aberto e foram fortemente atingidas pela artilharia e aviação russas, perdendo mais de 30 blindados e recuaram para Sukhyi Stavok.
O comando ucraniano lançou outro ataque em 2 de setembro. Unidades das FAU ocuparam Bezimenne, mas uma ala de caças Su-34 da VKS lançou quase duas dúzias de toneladas de bombas aéreas FAB-500, arrasando a aldeia.
Em 9 de setembro, as FAU reocuparam as ruínas de Kostromka e Bezimenne, com grupos avançados chegando a Chkalove. No entanto, as unidades ucranianas foram forçadas a recuar para as posições iniciais sob os ataques concentrados de artilharia e da VKS.
Em 13 de setembro, as FAU conseguiram manter o controle sobre os arredores de Sukhyi Stavok. As aldeias próximas tornaram-se uma “zona cinzenta” e todas as tentativas dos grupos móveis ucranianos de se infiltrar na retaguarda das Forças Armadas Russas foram reprimidas pelo fogo de artilharia.
Em 26 de setembro, a frente de Kherson havia se estabilizado. Após semanas de contínuos ataques frontais na direção de Kherson, as FAU sofreram em torno de 4 mil baixas, principalmente durante tentativas de ataque na área de Sukhyi Stavok.
Os ganhos táticos iniciais se restringiram a assentamentos localizados na primeira linha de frente, formando-se uma saliência mais profunda no eixo de Andrevvka, diante do cruzamento do Rio Inhulets e formação de cabeça de ponte para ataques de penetração a Sukhyi Stavok.
Ataques maciços da artilharia e da aviação russa às unidades ucranianas se aproveitaram do fato do terreno não ter cobertura nem densidade florestal, caracterizando -se como uma área de plantação de trigo e de outras culturas. Nesse teatro de operações, as FAU sofreram pesadas baixas e recuaram de diversos assentamentos que haviam retomado.
Apesar de ainda estarem formando reservas para novos ataques, no eixo de Kherson, os reforços russos (inclusive alguns vindos da região de Kharkiv, recentemente retomada pelas FAU) possibilitam uma composição de linhas de defesa em profundidade com maior densidade neutralizando os ataques ucranianos. Este novo dispositivo permitiu estabilizar a linha de defesa.
Ademais, os ataques de drones kamikaze Gerand-2 (versão russa do drone iraniano Shahed 126) e as unidades de reserva em Mikolayev e Krivoy Rog afetaram a eficiência de combate das forças ucranianas nesse setor da frente.
Na área de Zaporizhzhia, forças ucranianas concentraram recursos e unidades a partir da fortaleza de Ugledar e Nikopol, visando realizar ataques à Volnokhavka e à usina nuclear de Zaporizhzhia (cujos assaltos anfíbios recentes terminaram em fracassos com pesadas baixas ucranianas).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cerco operacional desenvolvido com manobras táticas ligeiras e apoiadas por eficientes barragens de fogo pelas FAU na região de Krasny Liman foi facilitado pela negligência do alto comando russo. As unidades da linha de defesa e as unidades de reserva destacadas para defender a área eram insuficientes, eram mal treinadas e estavam mal equipadas em uma área essencial como cabeça de ponte para impedir ataques futuros pelos flancos de Luhansk.
Tal como explicado em artigo anterior, publicado neste site (“Uma análise sobre o baixo efetivo das unidades de combate russas na Guerra da Ucrânia”, link: https://historiamilitaremdebate.com.br/uma-analise-sobre-o-baixo-efetivo-das-unidades-de-combate-russas-na-guerra-da-ucrania/, o baixo efetivo russo empregado nesse conflito é um fator crítico, pois se mostra insuficiente para manter linhas de defesa em um perímetro operacional de 1200 km, e também se revelou insustentável para fazer frente a um exército adversário com 700.000 mobilizados (estimativa de superioridade de efetivo de 6:1) e provido com apoio maciço da OTAN em reconhecimento, inteligência e 54 bilhões de dólares em armas e munições.
Ademais, a limitação política da operação militar especial por parte do Kremlin na guerra da Ucrânia evidenciou sérias lacunas no planejamento e implementação da mobilização parcial, principalmente quanto ao perfil de cidadãos mobilizados. É surpreendente a carência de recursos empenhados para os reservistas. Tal fato gerou profundas críticas dos especialistas às autoridades governamentais.
Ao contrário do que se pressupõe, a decretação da mobilização parcial só foi feita pelo Kremlin sob muita pressão política e dos militares, em virtude dos revezes no campo de batalha em setembro com a ofensiva ucraniana em Izium-Kharkhiv. Esta ofensiva, há muito esperada, expôs os graves problemas russos na área de inteligência, logística, Comando & Controle e liderança. A implementação das providências necessárias à mobilização foi no mínimo atabalhoada. Verificamos sérias deficiências no planejamento da mobilização e nas medidas para desencadeá-la. As duras críticas dos analistas, muito deles profissionais da guerra, repercutiram com intensidade na sociedade russa.
As guerras não se reduzem a análises simplificadas de causa e efeito. Apesar da força ofensiva e dos sucessos obtidos a Ucrânia está perdendo o ímpeto, provavelmente devido a redução contínua e significativa das suas reservas, diante das pesadas baixas sofridas em sucessivos ataques em diferentes áreas. Lembrando que, ao empenhar suas principais e mais bem treinadas unidades nestas ofensivas, a eficiência em combate pode vir a degradar-se em cenário futuro, revertendo o quadro favorável que se apresenta nesta conjuntura. Ademais, não sabemos ainda quantos soldados russos serão efetivamente mobilizados (estimativas do Ministério da Defesa indicam até 300.000 combatentes arregimentados dentre diversas e especialidades), quando essas forças chegarão ao teatro de operações e como esses novos efetivos vão impactar as operações quando forem empenhados.
Na história militar, não são avanços ou recuos, ainda que substanciais, que definem o destino de uma guerra, mas a vontade política e o apoio popular de continuar o conflito para atingir objetivos políticos estabelecidos para a guerra. Clausewitz ensina que decisor político deve fornecer ao comando militar os meios necessários para se atingir aos objetivos políticos. Neste caso específico, verificamos que, no início da campanha e atualmente as Forças Armadas Russas não possuem os recursos necessários para se atingir a tais objetivos, daí o quadro atual de impasse operacional.
Da mesma forma se mostraram levianas as previsões de derrota da Ucrânia devido à ocupação de vastas porções do territórios no leste e sul do país por parte de forças russas e em decorrência da perda de importantes cidades como Mariupol e Severodonetsk.
O tempo favorece a defesa, bem como a persistência e a determinação pendem para os dois lados beligerantes. O certo é que o conflito entrou em uma nova fase e ainda é prematuro prever qual será o resultado.
Imagem de Destaque: https://www.istoedinheiro.com.br/eua-ajudaram-ucrania-a-matar-generais-russos-diz-nyt/
Autores:
¹ Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública
² Mestre e Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, professor-colaborador e do Programa de Pós-Graduação em História Militar Brasileira (PPGHMB – lato sensu), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO e Editor-chefe do site História Militar em Debate e da Revista Brasileira de História Militar. Website: https://historiamilitaremdebate.com.br
Fontes consultadas:
https://www.forbes.com/sites/davidaxe/2022/09/25/lyman-a-supply-hub-in-eastern-ukraine-is-the-last-place-a-russian-soldier-wants-to-be-right-now/?sh=c865ce817136
https://www.fpri.org/
https://jamestown.org/
www.newsfront-info
https://www.telegraph.co.uk/world-news/2022/08/28/ukrainian-troops-say-will-liberate-kherson-wait-artillery-could/
https://worldview.stratfor.com/