Guerra Híbrida: Conceito, Evolução Concepcional, Controvérsias Acadêmicas e Doutrina Polemológica

de

Reis Friede

A Guerra Híbrida, a par de todas as importantes controvérsias doutrinárias, pode ser conceituada, ainda que em uma abordagem simplificada, como uma modalidade de combate militar que mescla táticas de guerra convencional (ortodoxa), guerra irregular (e demais meios heterodoxos), guerra informacional e ciberguerra com outros métodos de influência, tais como diplomacia, lawfare e intervenção eleitoral externa (REID STANDISH; Inside a European Center to Combat Russia’s Hybrid Warfare, Foreign Policy, disponível em: https://foreignpolicy.com/2018/01/18/inside-a-european-center-to-combat-russias-hybrid-warfare/, acesso: 12 jul. 2021).

Ao combinar operações de campo com esforços de subversão à ordem estabelecida, o agressor pretende evitar, – particularmente na modalidade dissimulada (ou Guerra Híbrida em sentido estrito) -, a sua correspondente responsabilização político-jurídica e, consequentemente, a possibilidade de eventuais retaliações (PETER PINDJÁK; Deterring Hybrid Warfare: a Chance for NATO and the EU to Work Together?, disponível em: https://www.nato.int/docu/review/articles/2014/11/18/deterring-hybrid-warfare-a-chance-for-nato-and-the-eu-to-work-together/index.html, acesso: 12 jul. 2021).

Não por outra razão, a locução Guerra Híbrida também pode ser utilizada para descrever a dinâmica complexa e flexível do espaço de batalha (em suas diferentes dimensões: humana, física e informacional), demandando, em contraposição, uma resposta altamente adaptável e resiliente (ELIZABETH MONTALBANO; Auditors Find DoD Hasn’t Defined Cyber Warfare, disponível em: https://www.darkreading.com/risk-management/auditors-find-dod-hasnt-defined-cyber-warfare/d/d-id/1092427, acesso: 12 jul. 2021).

Existe uma variedade de (outras) expressões comumente empregadas para se referir ao conceito de Guerra Híbrida: Ameaças Híbridas, Influência Híbrida, Adversário Híbrido, Guerra Não-Linear, Guerra Não-Tradicional, Guerra Especial, dentre outras de menor verificação na literatura especializada. As organizações das Forças Armadas dos Estados Unidos tendem (preferivelmente) a utilizar a titulação Ameaça Híbrida, ao passo que a doutrina russa a expressão Guerra Não-Linear e a gramática acadêmico-polemológica a designação Guerra Híbrida.

Inobstante as inerentes divergências doutrinárias a respeito da própria formação da noção concepcional de Guerra Híbrida, é importante esclarecer que a polemologia tem, de modo geral, admitido, – a partir de uma tradução conceitual ampla -, algumas modalidades (diferenciadas) de conduzir uma guerra (ou travar um conflito, em linguagem mais apropriada) que têm sido aceitas como passíveis de tradução como Guerra Híbrida.

Por consequência, em seu sentido mais elástico, existiria, em tese, o “hibridismo conflitual” quando atores estatais (e eventualmente não-estatais, sejam para ou transestatais, associados, portanto, direta, indiretamente ou completamente independente em relação a um Estado) empregam uma combinação apropriada (e singular para cada Hipótese de Conflito – HC) entre as próprias expressões do Poder Nacional, utilizando, em concomitância com o Poder Militar (também em diferentes configurações e espectros), o Poder Político (incluindo a diplomacia), o Poder Econômico (com sanções econômicas, por exemplo) e notadamente o Poder Psicossocial; em um arranjo (adequado a cada caso) que também é conhecido na literatura especializada por “Smart Power”.

Em vertentes derivadas, a Guerra Híbrida, adicionalmente, também pode ser subdividida nas formas Ostensiva (Declarada/Formalizada ou Não-Declarada/Não-Formalizada); Encoberta (Velada); e Dissimulada.

As duas primeiras caracterizam-se pelo emprego da estratégia de combinação de forças regulares e irregulares (meios ortodoxos e heterodoxos) através do que se convencionou chamar de “Guerra em Diferentes Espectros Militares” ou “Guerra em Duplo Espectro”, aberta (na hipótese da Guerra Híbrida Ostensiva) ou fechada (no caso da Guerra Híbrida Encoberta ou Velada).

A terceira modalidade (a Guerra Híbrida Dissimulada), por sua vez, corresponde à Guerra Híbrida propriamente dita (ou Guerra Híbrida em Sentido Estrito) e é caracterizada pelo emprego dissimulado de forças militares regulares e irregulares (meios ortodoxos e heterodoxos) em associação com os demais instrumentos informacionais e de natureza alternativa que aludem ao campo privatístico e que refogem (completamente), por seu turno, aos conceitos mais abrangentes de “guerra” para se refugiarem no escopo de atuação conflitual por negação, retirando, portanto, o aspecto (intrínseco) da coatividade (obediência) inerente à polemologia para ingressar na esfera da coercitividade (imposição), mais próxima da ciência do direito (e de sua exteriorização, conhecida por lawfare).

Dessa feita, por intermédio da Guerra Híbrida propriamente dita, procura-se, indiretamente, a modificação de um sistema político (ou seja, a alteração do regime de um Estado, incluindo a substituição de seus líderes) por meio da imposição de um novo regramento legal sem que se precise utilizar necessariamente a força militar direta com a sua correspondente coatividade, gerando a obediência ostensivamente forçada.

Não sem motivo, a diferenciação clássica entre poder e hegemonia e, consequentemente, a necessária distinção entre domínio efetivo e domínio psicológico.

Nota Complementar:

1. Guerra Híbrida

Segundo ensinamentos de CESAR CAMPIANI MAXIMIANO (Guerra Híbrida Não Existe: A História Prova, A Defesa Nacional, nº 835, Rio de Janeiro, BIBLIEx, 1º quad. 2018, ps. 4-9), “a ideia conceitual de Guerra Híbrida é uma das mais recentes falácias que polui o pensamento militar da atualidade. Trata-se de mais um arremedo explicativo para quem criou o péssimo hábito intelectual de interpretar guerras pelos contextos táticos e, quando muito, operacionais. Surgida no seio de algumas análises da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a proposição nem mesmo é consenso naquela força, tendo suscitado refutação sólida o suficiente para que seja, no mínimo, analisada com mais seriedade, e, na melhor das hipóteses, abandonada de vez (<www.nato.int/docu/review/2015/Also-in-2015/hybrid-modern-future-warfare-russia-ukraine/EN/>)”. Consoante seu singular ponto de vista, que também é acompanhado por alguns outros estudiosos da polemologia, “a própria história militar recente já faz-se suficiente para afastar esta ideia, que posa de pretensa mudança na natureza da guerra, mormente para quem está familiarizado com as reflexões de CLAUSEWITZ sobre os conflitos bélicos”.

Em tempos de novas classificações, conceitos e qualificações elaborados sobre os futuros tipos de guerra a serem enfrentados, quase sempre de validade duvidosa, prossegue o autor, resta concluir que as diversas campanhas contemporâneas (com suas correspondentes gramáticas) “permanecem solidamente servindo de referência para estudo para uma variedade enorme de situações complexas e dificuldades enfrentadas que não tiveram precedentes, o que costuma ser o caso em cada nova guerra”.

Todavia, esta não é, com a devida vênia, a posição que se apresenta majoritária entre os integrantes da Academia Militar. É cediço reconhecer que, pela própria dinâmica evolutiva da polemologia, cada vez mais doutrinadores, – mesmo a par da (eventual) existência de alguns exageros quanto à inauguração de novas classificações, conceitos e qualificações -, têm defendido a utilização de terminologias específicas que, distante de buscar “confundir a doutrina militar”, objetivam prover maior clareza terminológica para velhos e novos fenômenos observados nos conflitos contemporâneos, notadamente os ocorridos no espectro temporal do pós-Segunda Guerra Mundial (1939-45), concebendo maior (e imprescindível) precisão vocabular.

A título exemplificativo, vale registrar o fato de que não há qualquer dúvida (minimamente razoável) de que, embora não se trate propriamente de um acontecimento novo (e inédito), existem “conflitos de baixa intensidade” que se tornaram, a partir do advento das armas de destruição em massa (notadamente os artefatos termonucleares), muito mais comuns no contexto geopolítico atual, impondo a utilização de sua concepção conceitual de forma muito diferente do passado, quando esta modalidade de guerra (ou, em termos mais técnicos, natureza conflitual) era muito menos verificada e, portanto, conhecida e estudada.

Nesse particular, apesar de todas as efetivas e potenciais críticas, é ponderável o emprego da expressão “Guerra Híbrida” (ainda que sem a específica “posição enciclopédica” de tipo ou modalidade de guerra, mas, alternativamente, como designativa da natureza intrínseca do conflito associado) visando posicionar (doutrinariamente) determinadas expressões conflituais contemporâneas inéditas (ou, no mínimo, que se tornaram mais comuns nos dias atuais), fazendo-se mais precisa a gramática polemológica.

“Pode-se cogitar (pela existência) de um conflito no qual os atores, estatais e não-estatais, exploraram todos os modos de guerra simultaneamente, empregando armas convencionais avançadas, táticas irregulares, tecnologias agressivas, terrorismo e criminalidade, visando desestabilizar a ordem vigente: é o que se denomina por ‘Guerra Híbrida’.” (FREDERICO ARANHA; Guerra Híbrida: Breve Ensaio, Defesanet, Brasília, 30 abr. 2015. Disponível em: <www.defesanet.com.br/doutrina/noticia/18978/GUERRA-HIBRIDA-%E2%80%93-Breve-Ensaio-/>. Acesso em: 22/09/2017)

Nesse sentido, o emprego de meios militares de diferentes espectros (ortodoxos e heterodoxos) em consonância com meios não-militares (dos mais variados matizes), além da possibilidade (eventual) quanto à presença de atores estatais e não-estatais em simultâneo, parece indicar uma singular (ainda que não totalmente inédita) combinação de diferentes características capaz de inaugurar uma inovadora concepção conflitual (mesmo que mais adstrita à natureza do embate do que propriamente à tipologia) que pode ser perfeitamente enquadrada (traduzivamente) como “Guerra Híbrida”.

Ainda assim, resta oportuno, mais uma vez, advertir que situações assemelhadas (pelo menos, em parte) a de “Conflitos Híbridos” muito provavelmente já foram constatadas em situações pretéritas de guerra, nas quais, à época, nem se cogitou formular novas conceituações e definições para interpretar os eventos então enfrentados. Contudo, tal fato, ainda que verdadeiro (em sua essência), não retira (por si só) a atual necessidade classificatória, sobretudo se entendermos que esta modalidade (nova ou “recauchutada”) passou a ostentar uma importância (em termos de ocorrências e de maior precisão modelar) que jamais foi experimentada no passado.

“Uma das maneiras em que podemos entender a ‘Guerra Híbrida’ é como aceitar, prima facie, esta mistura diversificada de tipos de guerra que, em termos de WITTGENSTEIN, se sobrepõem e se cruzam. A ‘Guerra Híbrida’, então, pode consistir, de forma seletiva e às vezes simultânea, em perseguir (ou evitar) todas e quaisquer possíveis formas de guerra em todo o espectro do conflito.

Dado o escopo abrangente da ‘Guerra Híbrida’, os recursos de um grande estado-nação industrializado seriam uma condição necessária para travar o mencionado confronto bélico, e isto distingue claramente a ‘Guerra Híbrida’ da ‘Guerra Irregular’, da Guerra Partidária, ou da Guerra Não-Convencional em sentido estrito. Apenas as entidades não-estatais mais bem-sucedidas e bem financiadas poderiam aspirar à gama de operações implícitas na ‘Guerra Híbrida’, e, na medida em que uma das características essenciais nesta modalidade conflitual é a utilização coordenada das forças regulares e irregulares, a entidade não-estatal sem forças regulares não estaria, por definição, em posição de combater a ‘Guerra Híbrida’.” (Entendendo a Guerra Híbrida: Uma Análise Explicativa, Traz a Definição de Guerra, Não-Guerra e Tipos de Guerra; Dinâmica Global, 31 de agosto de 2016. Disponível em: <//dinamicaglobal.wordpress.com/2016/08/31entendendo-a-guerra-hibrida-uma-analise-explicativa-tras-a-definicao-de-guerra-nao-guerra-paz-e-tipos-de-guerra/> Acesso em 22/09/2017)

A própria OTAN se encarregou de elaborar uma definição própria para a “Guerra Híbrida”, registrando a expressão em um contexto concepcional evolutivo, inerente à própria dialética da ciência polemológica no particular sentido da ampliação de seu vocabulário, sem, no entanto, registrar tratar-se, necessariamente, de uma nova modalidade de conflito, permitindo, muito acertadamente, a conclusão no sentido de configurar-se em uma nova faceta concernente à natureza de determinados tipos de guerra já consagrados pela polemologia. Não por acaso, a preferência pela designação “Ameaça Híbrida” em lugar da vertente designativa mais comum, comumente expressa como “Guerra Híbrida”.

“Uma ‘Ameaça híbrida’ é aquela oferecida por qualquer adversário atual ou potencial, incluindo entes estatais, não-estatais e terroristas, com a capacidade, seja ela comprovada ou provável, de empregar simultaneamente meios convencionais e não-convencionais de maneira adaptável, na busca de seus objetivos.” (NATO Military Working Group – Strategic Planning & Concepts, fev. 2010)

Ainda assim, resta absolutamente salutar, para uma maior reflexão sobre a temática epigrafada, as considerações (adicionais) de CESAR CAMPIANI MAXIMIANO (Guerra Híbrida Não Existe: A História Prova, A Defesa Naval, nº 835, Rio de Janeiro, BIBLIEx, 1º quad. 2018, ps. 4-9) no sentido da (eventual) pouca utilidade dos novos termos e conceitos polemológicos, em especial a caracterização assertiva de uma “Guerra Híbrida”.

“A literatura sobre guerra e estratégia tem contato com poucos textos esclarecedores desde a elaboração dos grandes clássicos do século XIX. O simples teste de perguntar ‘esta nova definição é útil?, ela realmente ajuda?’ pode salutarmente ser aplicado a cada nova discussão emergente sobre as mudanças e possíveis inovações que os analistas, a cada geração, declaram ser capazes de observar nas guerras. O fato é que, comumente, inúmeras conceituações estreantes não só não ajudam (como, ao reverso) confundem. Em seu capítulo no livro Rethinking the Nature of War, M. R. L. SMITH foi capaz de expressar calmamente a inutilidade de algumas delas, como a de LIC (Low Intensity Conflict). Mesmo em uma situação de combate supostamente ‘de baixa intensidade’, em um grupo de combate (GC) moderno age e opera da mesma maneira que seus precursores no início do século XX. De fato, um GC organizado e treinado nos padrões da Primeira Guerra Mundial seria perfeitamente capaz de entender situações táticas contemporâneas e atuar no combate moderno. E isto, apesar de ter sido concebido no contexto de uma das mais mortíferas guerras de atrito já enfrentadas pela humanidade. Do ponto de vista de quem opera no espectro tático, um conflito de ‘baixa ntensidade’ pode ser tão letal quanto qualquer outro. Esta comparação, sobretudo, é ainda superficial: se as dificuldades táticas podem ser mais ou menos graves, elas pouco dizem sobre questões subjacentes de natureza política que podem rapidamente fazer com que um conflito com um número relativo de baixas se transforme em um verdadeiro sumidouro de combates. ‘Baixa intensidade’ é um adjetivo eufemístico que incorre no perigo de subestimar a gravidade e a complexidade de uma crise. A ideia de Low Intensity Conflict cai por terra: empregar o conceito é interpretar conflitos por seu contexto tático, e não a partir de considerações sobre suas origens históricas, geográficas, étnicas, culturais, sociais e econômicas – enfim, políticas. Como explica a própria conceituação de proponentes da ‘Guerra Híbrida’, esta é primordialmente o recurso dos beligerantes que apresentam maior grau de efetividade militar (conceito aprimorado dos anos 80 por MILLET e MURRAY, que expressa uma das mais válidas contribuições para o debate sobre estratégia). Recordando a explanação oferecida pelos proponentes da ‘Guerra Híbrida’, somente as nações altamente industrializadas e desenvolvidas seriam capazes de se valer da economicidade de recursos que possibilitem operar em tão diferentes ‘espectros’. Se nos for permitido converter essa ideia de ‘alta industrialização’ para um conceito mais consistente, como o da efetividade militar, podemos imaginar o seu suprassumo no seu desempenho Aliado dos anos finais de 1944 e 1945, durante a Segunda Guerra Mundial. ‘Efetividade militar’ é simplesmente a capacidade de transformar recursos em poder de combate.”

A par de todas essas considerações, apresenta-se mais ponderável a posição que, – reconhecida a existência dos “embates híbridos” como um fenômeno não propriamente inovador, mas certamente mais comum (em termos de ocorrência), notadamente no presente século XXI -, o classifica como inerente à natureza do conflito, removendo-o da categoria, mais ampla, de nova modalidade de guerra, conforme, inclusive, registrado em alguns documentos oficiais da OTAN e, em parte, na doutrina das forças armadas estadunidenses.

Imagem de Destaque: https://radiolaprimerisima.com/wp-content/uploads/2022/05/Lunes-guerra-hibrida-1.jpg

Autor: Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR), Professor Emérito da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército (EsAO), Conferencista Especial da Escola Superior de Guerra (ESG) e Membro da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB) e da Academia Brasileira de Defesa (ABD). É coautor da obra “Das Novas Guerras (Fenomenologia dos Conflitos Armados)” (BIBLIEx, 2019, 576 págs.). Site: https://reisfriede.wordpress.com/ . E-mail: reisfriede@hotmail.com .

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