Prof. Dr. Alair Figueiredo Duarte (PPGH/UERJ-NEA/UERJ)
Territórios marítimos sempre foram canais de contatos e conexões políticas, aproximam e afastam os vetores políticos segundo os interesses envolvidos. Tais conexões atuam e contribuem para emergir novas territorialidades, destacando o quanto essas representações ultrapassam os contatos físicos horizontais, determinando hegemonias políticas.
Segundo Nilton Santos, o conceito de território se divide em dois princípios básicos, territórios horizontais e territórios verticais. O primeiro se refere ao espaço físico e contínuo, no qual as fronteiras políticas se demarcam; o segundo refere-se a territorialidades do mundo das culturas e das relações mercantis, as quais possuem fronteiras fluidas e sub-existem as demarcações políticas (SANTOS, 1982: 80-85). As conexões de rede – entendidas como territórios verticais – pairam muito além das relações físicas dos espaços. Nesse sentido, equipar território-verticalizados constitui uma das bases do poder (SANTOS, 1978: 20).
Redes econômicas são elementos importantes para estabelecer a continuidade verticalizada dos territórios e tensões que se impõem, os condicionando a mudanças rápidas e brutais. É através das suas relações, que vetores políticos formam seus grupos e posições dominantes, controlando o território via produção e consumo, prescindindo da contiguidade espacial ou física (SANTOS, 1978: 22). Tais práticas, muitas vezes propiciam domínio das lideranças sobre aliados através de acordos e tratados, nos quais os menos poderosos embora mantenham sua independência, tornam-se dependentes do poder hegemon. Tal fato pode ser percebido na ação da política marítima cretense junto aos seus aliados entre os séculos XV e XIV a.C., tanto quanto, no exercício do poder marítimo¹ ateniense no século V a.C., pois ambas as sociedades se utilizaram do mar para exercer sua liderança sobre seus aliados, porém por maneira distintas. Minoicos fiziam uso de seu prestígio e expertise marítima como centro emanador de recursos, enquanto atenienses ditavam as regras e impunham sua política através da força naval, militar. Portanto, entre os helenos o mar sempre figurou como um importante elemento para definir as diretrizes das políticas, mercantis, meios navais e ações diplomáticas.
A proximidade entre helenos e outras etnias através das atividades marítimas ocorriam desde tempos remotos, datam os séculos XV e XIV a.C. Nesse período é possível testificar proximidade de relações entre helenos e sociedades fenícias, tanto quanto egípcias. Há achados arqueológicos de embarcações naufragadas em águas fronteiriças do Mar Egeu e o Oriente que apresentam entre seu inventário, grande quantidade de objetos fabricados para uso cotidiano das elites helênicas. Tais objetos encontravam-se entre os destroços do Naufrágio de Uluburun, datando a idade do Bronze.
O pesquisador Christoph Bachhuber aponta que a viagem da embarcação egípcia Uluburun, se tratava de uma comitiva diplomática junto as realezas palacianas Micênicas, cuja delegação representava Amenhopt III. O cruzamento de dados arqueológicos e epigráficos apontam para base de uma estátua do citado faraó com inscrições na placa epigráfica LH / LM III, constando quatorze nomes de cidades e/ou lugares importantes, dentre elas: Knossos, Beócia, Tebas, Micenas e Tróia (BACHHUBER, 2006: 4). Tais evidências demonstram intensas atividades marítimas no território do Mar Egeu.
Segundo Jean-Nicolas Corvisier, entre as etnias componentes da sociedade helênica, os cretenses foram os precursores em desbravar e dominar a thalassa (CORVISIER, 2008: 11). O ponto de partida para tais inferências tem por base a afirmativa de Estrabão: “Encontre um cretense que jamais viu o mar!” (ESTRABÃO, X, 4: 17. Apud. CORVISIER, 2008: 11). Nesse contexto, pode-se falar de um período de ouro em que o mar permitia o comércio e o exercício do poder, sem que seu principal meio de uso fossem os aparatos bélicos e a guerra. Isso se deve ao fato de no período Neolítico, no Mar Egeu, não haver relatos claros sobre a guerra no mar. Toda a confecção de objetos de arte e utensílios circulavam formando rotas entre Melos, Antiparos e Gyali, sem ameaças de guerra. Enquanto no período do Bronze Troia torna-se o palco do comércio, demonstrando a expansão dessas rotas comerciais marítimas (CORVISIER, 2008: 11). A expansão das rotas trouxe modificações às relações entre as sociedades que utilizavam o mar como via de contato e a prática da pirataria cresce, se inserindo no epicentro dessas movimentações.
Segundo Jean-Nicolas Corvisier, entre as etnias componentes da sociedade helênica, os cretenses foram os precursores em desbravar e dominar a thalassa (CORVISIER, 2008: 11). O ponto de partida para tais inferências tem por base a afirmativa de Estrabão: “Encontre um cretense que jamais viu o mar!” (ESTRABÃO X, 4: 17. Apud. CORVISIER, 2008: 11). Nesse contexto, pode-se falar de um período de ouro em que o mar permitia o comércio e o exercício do poder, sem que seu principal meio de uso fossem os aparatos bélicos e a guerra. Isso se deve ao fato de no período Neolítico, no Mar Egeu, não haver relatos claros sobre a guerra no mar. Toda a confecção de objetos de arte e utensílios circulavam formando rotas entre Melos, Antiparos e Gyali, sem ameaças de guerra. Enquanto no período do Bronze Troia torna-se o palco do comércio, demonstrando a expansão dessas rotas comerciais marítimas (CORVISIER, 2008: 11). A expansão das rotas trouxe modificações às relações entre as sociedades que utilizavam o mar como via de contato e a prática da pirataria cresce, se inserindo no epicentro dessas movimentações.
Fernando Braudel enfatiza a correlação entre pirataria e comércio destacando que a prática é estreitamente dependente do câmbio marítimo. Um dos principais motivos de sua existência são cargas valiosas dos navios e riquezas concentradas no litoral ou em assentamentos costeiros (BRAUDEL. Apud. SAMARAS, 20015: 191). A ilha de Creta no auge do seu domínio político e comercial, séculos XVII a XV a.C., manteve a pirataria sobre controle sem que possuísse uma marinha equipada para a guerra. Creta realizava esse feito através de alianças com piratas fenícios e cários que patrulhavam as rotas marítimas, saqueando aqueles que não fossem aliados dos palácios cretenses. As embarcações utilizadas pela marinha cretense, divergia das embarcações utilizadas pelos piratas. Pinturas grafadas em cerâmicas (ostrakos), que datam o Período Minóico, atestam essa diversificação nos permitindo refletir sobre a atuação política do lendário rei Minos junto aos seus aliados.
Detalhes dos navios da Classe Douloi, grafados nos fragmentos das cerâmicas minóicas demonstram que as embarcações dessa classe possuíam calado alto, próprio para transporte de mercadorias. Por outro lado, no período, havia embarcações da Classe Hippoi, própria para combates que possuíam calados mais baixo, conferindo-lhes maior agilidade e eram usadas com grande frequência por piratas.
As embarcações da classe hippoi eram armadas de esporões em suas proas, próprias às abordagens e combates marítimos. Eram bastante utilizadas como ferramenta de caça pelas aristocracias guerreiras que praticavam atos de pirataria no mar.
O termo pirataria vem do grego peiratai, peirateia, peiratés que significa ataque e, por extensão, ladrão do mar. Um ladrão do mar deveria ser oportunista e astuto para realizar ações furtivas e rápidas sobre suas presas. Valores como astúcia, destreza e coragem, eram exaltados por membros da aristocracia helênica. Odysseus pode ser visto como um grande pirata no mar e nas narrativas homéricas é descrito como um grande protegido de Athená – deusa que tem seus atributos relacionados a métis (astúcia) – são muitos os feitos no qual o herói ressalta sua capacidade de construir estratagemas.
Odysseus é quem prepara o engodo do Cavalo de Tróia, para fisgar os troianos. Ele é quem monta o estratagema contra o Cíclope, salvando seus companheiros (HOMERO. Odisseia, IX: 320-410). Odysseus se auto intitulava um pirata, observe a narrativa: “por nove vezes chefiara guerreiros e célebres naves contra outros povos de longe, fazendo abundante colheita. Ricos presentes, do espólio sabia colher […] tornando-me cada vez mais temido e acatado entre os homens de Creta” (HOMERO. Odisseia., XIV: 230). Fica evidenciado no imaginário aristocrático, o hábito da pilhagem sobre os inimigos e a admiração pela prática da pirataria. Muitos piratas eram aristhos helênicos com carta de corso para pilharem aqueles que não fossem aliados cretenses. Tal prática se dava numa relação de prestígio e reciprocidade jurada entre os grupos aristocráticos através do ritual da xênia.
A xênia consiste em um rito helênico que regulamentava a prática da hospitalidade, criando laços de favores recíprocos entre hóspede e anfitrião. A prática ritual da xênia, ordenava abrir as portas da sua casa a quem pedisse abrigo (LONIS, 1994: 242). A tradição deveria obedecer a um determinado número de regras, tais como: dar acomodações ao hospede, associando-o com certas cerimônias religiosas familiares. Somente depois de ter acolhido, confortado e nutrido seu hóspede, se deveria solicitar a revelação da sua identidade e Zeus Xênios (Zeus protetor dos estrangeiros) presidiria a boa observância deste dever. Por outro lado, o hóspede ao sair, constituiria fortes laços com seu anfitrião; que lhe apertaria a mão direita em sinal de amizade mútua e ofertaria presentes no momento da partida. Nessa oportunidade, o hóspede lhe daria a fé jurada de nunca lhe causar mal (LONIS, 1994: 242).
A prática hospitaleira denominada xênia, tornava o oikós – a casa – o lar do aristhos, o principal elemento social. As famílias aristocráticas tornavam esse ritual um instrumento que unia os socialmente iguais. A xênia era um dever religioso imposto aos socialmente pares sedimentando vínculos de interdependência em ofertar o don e receber o contra-don (LONIS: 243). Nessa conjuntura, Creta teria minimizado a prática da pirataria nas suas rotas marítimas, não em razão de deter uma marinha de guerra, mas sim, uma extensa rede xena, na qual, somente sofreria pilhagem aqueles que não integrassem sua rede de alianças proxenas.
A proxenia pode ser definida como evolução das relações de xênia, entre anfitriões no âmbito particular do seu oikós. Ao tornar mais amplo as relações individuais de xênia, havia necessidade de criar instituições que permitissem acolher um cidadão em uma cidade na qual fosse visitar. Para tal especificidade, seria definido um cidadão anfitrião, responsável por defender e responder por seus interesses, recebendo a definição de proxeno (LONIS, 1994: 243).
Em se tratando do comércio marítimo envolvendo a proteção contra os ataques piratas e o uso dos portos, a proteção se estendia a todos que estivessem sob a proteção de uma rede proxena. (LONIS: 243). O proxeno tornava-se mediador entre sua cidade e a cidade na qual ele protegia quando as relações se tornavam tensas, ou quando se reconciliavam, depois um período de confronto (LONIS, 1994: 244).
Os palácios da ilha de Creta no áureo período da sua política marítima, seria um centro emanador da proxênia sobre o Mar Egeu, equilibrando a prática da pirataria através das relações de don e contra-don. Nesse sentido, períodos de acentuação e diminuição da pirataria, passaram a coincidir com o aumento e recessão das trocas marítimas (SAMARAS, 2015: 191-192). Todo o fluxo de comercio na Antiguidade esteve em maior ou menor grau relacionado a capacidade política do centro regulador manter uma rede de alianças, território verticalizado de ações e influências. Centros de política marítimas como os palácios cretenses eram referência para quem buscava bons marinheiros e base para aristhos, praticantes da pirataria manterem vivas sua rede.
Há uma série de características que contribuem para reconhecer uma base para piratas, tais como: estar perto do mar e das principais rotas marítimas ou, estar localizada em uma região geográfica permeada de baías, enseadas e ancoradouros (SAMARAS, 2015: 192). A ilha de Creta, possuía todas essas configurações, embora a lista para reconhecer uma base de piratas, seja incompleta. Nem todos os assentamentos com essas características podem ser interpretados dessa maneira. Porém, diante do contexto social de produção do período, Creta reunia os adjetivos necessários e detinha exímios marinheiros, configurando-se como um Estado-Nautocrata. Ou seja, um poder político que se sustentava através do potencial de possuir e formar bons marinheiros, sem investir por meios próprios, em uma esquadra bélica.
Enfim, equivocadamente Creta foi concebida como Estado-Thalassocrático, pois as talassocracias exigiam o investimento em força naval própria, tal qual as prerrogativas do conceito de poder marítimo – anteriormente apresentado em nota. A esquadra cretense voltava-se exclusivamente para as trocas e o comercio, deixando sua defesa a cargo de sua rede proxena. Em nome do lendário rei Minos aristocracias aliadas a Creta, patrulhavam suas rotas marítimas e pilhavam aqueles que não fossem aliados.
Diferentemente, a hegemonia ateniense no século V a.C. ocorreu sob outra perspectiva, na Koyna Délica². Atenas mantinha a geopolítica no Mar Egeu, a partir de sua força naval, protegendo aqueles que estivessem cumprindo suas obrigações na coalizão Ática e punia dissidentes e inimigos, com o peso bélico da sua armada.
O uso da força política e bélica de Atenas pode ser verificada em o Velho Oligarca (1: 17), o qual nos informa que a polis obrigava por decreto, que todos os membros da Koyna Delica comparecessem na pólis, para responder a algum processo. O controle sobre aliados e adversários foi motivo de preocupação na Antiguidade, tanto quanto é na Contemporaneidade e, a thalassa ainda figura como uma das mais extensas zonas de contato com aliados e inimigos.
Quer saber mais sobre a História Antiga e Geopolítica, entre nas categorias do site.
BIBLIOGRAFIA
- ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves. O Poder Marítimo segundo a concepção de Sir Herbert William Richmond (1871-1946): uma análise comparada com Alfred Thayer Mahan. Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão.
- BACHHUBER, Christoph. Aegean Interest on de Ulubarun Ship. JOURNAL OF ARCHAEOLOGY: THE JOURNAL OF THE ARCHAEOLOGICAL INSTITUTE OF AMERICA. Volume 110 • No. 3, July 2006. ARGÔLO, Paula Falcão. Crianças de Atenas: o potencial de investigação dos contextos funerários clássicos. São Paulo: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, , Suplemento, 2011.
- CORVISIER, Jean-Nicolas. Les Grecs et la mer. Paris. Les Belles Lettres, 2008.
- ESTRABÓN. Gèographie. Traducciones, Introducciones y notas de Mª Jispe Meana y Félix Peñero. Madrid: Editorial Gredo S.A., 1992.
- HOMERO. A Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 2001.
- _________ Odisseia. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 2000.
- LONIS, RAOUL. La cite dans le mond grec: structures, fonctionnement, contractions. Nancy: Editions Natan, 1994.
- PSEUDO-XENOFONTE. (Velho Oligarca) A Constituição dos Atenienses. Tradução do Grego, Notas e Índices; Pedro Ribeiro Martins. Editor: Centro de Estudos Clássicos e Humanístico da Universidade de Coimbra, 2011.
- SAMARAS. Piracy in the Aegean during the Postpalatial Period and the Early Iron Age. In BABBI Andrea; BUBENHEIMER-ERHART, Friederike; MARÍN-AGUILERA Beatriz; MÜHL Simone. The Mediterranean Mirror: Cultural Contacts in the Mediterranean Sea between 1200 and 750 B. C. Heidelberg: Verlag des RömischGermanischen Zentral museums, 2015.
- SEALEY, Raphael. A History of the Greek City-States: 700-338 b.C. Berkley/Los Angeles/London: University of California press, 1976. SESTIER, Julie Marie. La Pireterie dans L’ Antiquité. Paris: Librairie de A. Maresq. Ainé Editeur, 1880.
- SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: HUCITEC / EDUSP, 1978.
- _______________ Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982.
- THUCYDIDES. History of the Peloponnesian War. Translated by Rex Warner, with an Introduction and Notes by Moses I. Finley. New York: Penguin Grup, 1972.
Mestre e Dr. em História Compara PPGHC/UFRJ. Desenvolve pesquisas voltadas as sociedade Antigas, com enfase a Grécia, Guerra, política e Poder no mundo Antigo. Vice coordenador Geral do NEA/UERJ, atua como professor no CEHAM/UERJ. Atualmente desenvolve um pós-doutorado no PPGH/UERJ sobre a Archeologia do comando naval, e a trierarchia, a partir de Jasão de Apolônio de Rodes: 378-357 a.C.