Os Ventos de Takashima: As invasões mongóis ao Japão e a pouca necessidade de intervenção divina

de

Prof. Esp. Douglas Magalhães Almeida

Foi na tarde de 04 de novembro de 1274, em que o templo de Hachiman, o Kami da Guerra, localizado na ilha de Tsushima, pegou fogo misteriosamente. Tendo sido apagado o incêndio com rapidez pelos samurais, uma revoada de pombos brancos saiu do telhado alertando a todos para o horizonte onde se formavam os vultos de enormes navios de guerra mongóis. Assim é descrito no documento Hachiman Gudokun sobre como o próprio Kami avisou através de seu milagre ao governante da ilha, So Sukekuni, para que pudesse a tempo preparar as defesas para a primeira invasão mongol ao Japão.

Os estudos sobre as invasões mongóis tem passado por aprofundamentos e novas perspectivas desde 2010, de maneira que autores como Prof. Karl Friday, Stephen Turnbull e Thomas D. Conlan vêm contribuindo constantemente com o debate sobre os eventos que ocorreram quando a Dinastia Chinesa Yuan, liderada pelos mongóis, resolveu invadir o arquipélago nipônico. Nosso interesse nessa matéria é discutir um dos temas mais polêmicos sobre o assunto: se houveram ou não os tufões que teriam “salvado” o Japão da conquista pelo Império Mongol. Houve realmente necessidade para uma intervenção divina?

A historiografia internacional tradicional construiu uma narrativa cânone de que as invasões mongóis ao Japão só foram capazes de serem detidas graças a um evento climático aleatório, que teria sido interpretado como resultado de cunho religioso pelos japoneses. Em sua base, defende que dificilmente os samurais seriam capazes de sozinhos deterem e serem vitoriosos contra as frotas mongóis por alguns motivos: o número de combatentes enviados pelo Imperador Khublai Khan era massivamente superior ao dos japoneses; era impraticável que os mongóis tivessem um domínio de território tão vasto que chegasse às portas da Europa, mas não fosse capaz de sozinho invadir um arquipélago perto do centro do império; e que tinham superioridade até mesmo bélica sobre os samurais. Foi esse pensamento que perdurou muitas décadas no ocidente, e mesmo séculos no Japão, mas não é o que observamos hoje com um melhor arcabouço metodológico de análise da documentação.

As principais fontes que temos sobre a tentativa de invasão às ilhas japonesas são três. Primeiro temos o Môkô Shûrai Ekotoba, que é um rolo ilustrado produzido cerca de 1293 a mando do comandante Takezaki Suenaga (1246-1314), gokenin (senhor de terras) da Província de Higo, contendo partes escritas narrando eventos, ilustrações que complementam o enredo e correções feitas pelo próprio sobre o que os artesãos se equivocaram. Esse é o documento histórico mais completo e detalhado sobre as invasões, além de ter sido produzido logo em seguida a mando de um samurai que participou da defesa do Império Yamato nas duas tentativas de invasão.

A segunda principal fonte histórica é o Hachiman Gudokun (ou só Hachiman gun), ou Relatos dos Feitos Divinos do Kami Hachiman, que foi escrito no início do século XIV, entre 1299 e 1314. Esta é uma compilação que narra a história de diversos santuários xintoístas dedicados à divindade da guerra e dos arqueiros, Hachiman, de forma a narrar grandes feitos divinos do Kami, incluindo eventos na antiguidade arcaica japonesa, como a invasão a Coréia pela Imperatriz Jingu (c. 169-269), até a citação dos eventos das invasões mongóis, além de conter em um segundo tomo assuntos de doutrina budista.

O Hachiman gun tem uma característica importante para nosso debate, pois nele está relatado diversos feitos milagrosos e divinos, como o incêndio misterioso em seu santuário na ilha de Tsushima que alertou aos samurais sobre a invasão. Foi bastante usado para buscar legitimar os feitos dos santuários através de suas preces afim de ganhar crédito e recompensas com a burocracia do shogunato.

Por fim, em terceiro temos um documento chinês, o Yuan Shi (Registros Históricos da Dinastia Yuan), um compilado de documentos que registram o passado político, social e militar da Dinastia Yuan (1271-1368), comissionado em 1370 pelo Imperador Hongwu (1328-1398) da Dinastia Ming (1368-1644). Esses registros geralmente são escritos por uma equipe de sábios rememorando feitos de dinastias anteriores para preservar a memória e legitimar o novo modelo de governo. Entretanto, esse documento foi feito às pressas e sem tanta rigidez na análise de materiais históricos como os anteriores, sendo considerado um dos registros históricos chineses com maiores erros e mais mal feito. Nele o Conselheiro Li Shanchan e Song Lian tiveram à disposição uma equipe de apenas 16 intelectuais, e finalizaram em 331 dias, contendo 47 biografias imperiais, 58 tratados socioeconômicos, 8 tabelas cronológicas e 97 biografias gerais, detalhando desde a ascensão de Ghenghis Khan até o governo de Toghon Temur.

O Yuan Shi relata, dentre tudo, sobre a invasão mongol ao Japão, entretanto divergindo em alguns pontos das fontes nipônicas. Nele afirma que o número de samurais da primeira incursão era superior ao de mongóis, o que teria levado à decisão de recuar dos comandantes. Assim como também vemos a presença da narrativa de um tufão que teria varrido a frota mongol e levado a sua derrocada. Curiosamente apenas esse documento chinês de pouca credibilidade historiográfica e documentos de santuários de Kyoto escritos por aristocratas e sacerdotes que nem chegaram a participar das batalhas de Kyushu são os que afirmam a presença de tufões, enquanto demais fontes primárias de quem esteve diretamente envolvido no combate citam apenas ondas fortes e mau tempo.

Para além dessas documentações temos ainda diversos Gunchûjôs (compilação de relatórios de guerra enviados ao Bakufu Kamakura) e cartas de samurais, sacerdotes e monges que estiveram envolvidos na defesa da ilha de Kyushu. O prof. Thomas D. Conlan em sua obra “In Little Need for Divine Intervention” nos disponibiliza o Môkô Shûrai Ekotoba e a compilação de mais 65 dessas documentações esparsas, tudo traduzido para o inglês com primoroso cuidado e estudo.

Todo esse material histórico reunido narra pelos mais diversos pontos de vista como se deu as duas invasões mongóis ao Japão no século XIII. Tendo conquistado o norte da China e boa parte da eurásia até as portas da Alemanha, os mongóis estabeleceram um grande império a partir de Ghenghis Khan, entretanto, foi em 1271 que Khublai Khan, seu neto, ocupou um trono na capital Dadu (atual Beijing), declarando a criação da Dinastia Yuan e se legitimando como escolhido tanto pelo Tengriismo (através do mito de origem de seu avô ser descendente da entidade venerável Loba Cinzenta) quanto pelo discurso imperial chinês (sendo escolhido pelo Céu Tiàn para governar o mundo mortal).

Dentre os objetivos do reinado chinês de Khublai Khan estava o de recuperar economicamente a China e fortificar o domínio do império. Assim promoveu o crescimento da economia construindo o Grande Canal, reparando obras públicas e estendendo as rotas de forma a fluir melhor o comércio (em especial nesse período em que há a relevância da Rota da Seda), além de ter instaurado o Chao como primeiro papel-moeda predominante e circulante que facilitou aos mercadores não terem que trazer e levar muito peso de suas moedas valiosas. Para melhorar o acesso e respeito entre os homens de seu reinado sob a égide da Rota da Seda, concedeu tolerância artística, filosófica e religiosa, buscando adotar sábios de todos os gêneros e territórios sob o teto de seu palácio, patrocinando e incentivando todo pensamento em prol de seu governo. Apesar de visto muitas vezes ainda com características “bárbaras” foi elogiado por diversos ocidentais que vieram a seu encontro, como Marco Polo em 1270, que também relata em seu Livro das Maravilhas sobre quem era essa etnia mongol chinesa e o governo do Grande Khan.

Não se sabe ao certo o motivo da invasão mongol ao Japão, mas justamente pelos relatos de Marco Polo, sabemos que era de conhecimento da China que o Japão extraia uma boa quantidade de ouro desde o século VIII, chegando a haver o rumor de que haveriam palácios de ouro flutuando sobre as águas do arquipélago. Sabemos que o Rei Wojong da Coréia (1259-1274), aliado ao Bakufu antes da conquista mongólica sobre seu território, alertou o Shogunato do interesse de Kublai Khan em conquistar todo o mundo conhecido, como um Destino Manifesto dos Khans, instituído pelo Céu Tiàn.

O Monge zen, Togen Eian, chegou a sinalizar em carta de 1270 que os talentos marciais dos samurais poderiam ser de interesse da Dinastia Yuan no objetivo de ajudar a conquistar as demais dinastias chinesas e as terras indianas. O Prof. Fairbanks, em 2005, aponta a possibilidade de que era de seu interesse a unificação dos territórios “envolta de casa”, tanto para gerar maior estabilidade do trono imperial quanto submeter regiões próximas a tributos que ajudassem a reformar economicamente sua dinastia. Por fim, o Prof. Sugiyama Masaaki defende que a primeira incursão teve como objetivo principal de intimidar o Bakufu e minar a possibilidade dos japoneses apoiarem a Dinastia Song do Sul com a qual o Império Yuan guerreava no objetivo de conquista-la e unificar o território continental chinês.

Independente das razões de Khublai Khan, em 02 de novembro de 1274 a frota de incursores mongóis deixou os portos coreanos e atacaram Sasuura, na ilha de Tsushima, enfrentando 80 samurais liderados por Sô Sukekuni (1207-1274) na praia de Komoda. Em 13 de novembro atacaram a ilha de Iki, derrotando seu lorde, Taira Kagetaka do Castelo Hinotsume, antes de avançarem entre os dias 15 e 16 sobre a península de Matsuura e por fim arremetendo nas praias da Baía de Hakata em 19 do mesmo mês.

A resistência da ilha de Kyushû foi bem sucedida mesmo sem receber os devidos reforços do Bakufu. Era esperado que o Shogunato enviasse tropas para resistir a invasão, já que a Baía de Hakata era um dos poucos lugares lógicos onde poderia haver desembarque das tropas mongóis, entretanto, sem a chegada dessa ajuda levou aos samurais terem que repensar sua forma de combate. E esse é um momento crucial para a história militar japonesa, pois ali naquela praia diante da escassez de força armada os samurais tiveram que convocar do campo até os camponeses para que pudessem massificar o exército contra o inimigo que vinha em grande número.

É descrito nas mais diversas documentações de guerra, em especial no Hachiman Gudokun, que os japoneses ficaram surpresos com alguns aspectos da cultura bélica do império mongol. Os samurais não combatiam guerras contra povos externos desde 663, quando na antiguidade os soldados aristocratas imperiais enfrentaram a Dinastia Tang e o reino coreano de Silla na Batalha de Hakusukinoe, resultando na maior derrota pré-moderna do Império Yamato, com perda de quase toda a frota de guerra nipônica. Desde então, sem se envolver em guerras contra poderes externos, o Japão se voltou por quase 700 anos para conflitos internos que adaptaram o pensamento marcial para responder à lógica combativa especificamente japonesa. O costume samurai era de exércitos pouco massificados, combatentes super especializados e treinados, arquearia montada como centro do combate em vales de geografia cônica, além de suporte de combatentes de menor hierarquia apoiando os flancos com uma infantaria pesada de lanceiros. A honra e aquisição de privilégios estava à frente da coletividade, de maneira que muitos samurais estavam combatendo por motivos próprios quando não sob ordens do Shogunato.

O Império Yuan, por outro lado, tendo expandido seu domínio por uma longa extensão continental, aderiu etnias e suas culturas bélicas ao seu próprio estilo, sendo bastante diversificado. Na frota invasora encontrávamos um povo dividido em 4 etnias básicas: os Gao-Chen (de descendência mongólica), os Semu (povos do oriente próximo não mongóis), os Han (descendentes dos chineses da Dinastia Jin e Song que foram aderidos, além e coreanos, Khitões e Jurchens) e os Manzi (etnias chinesas vindas do sul do território continental). Apesar dessa variação de culturas, tinham por costume combater unidos em disciplina coletiva, cada qual com sua especialidade no campo de batalha. No Môkô Shûrai Ekotoba temos inclusive uma cena em que vemos cavalaria apoiada por uma falange nas praias de Hakata fazendo frente ao ataque de samurais. Para além disso, a conquista sobre a Dinastia Song do Norte trouxe a tecnologia da pólvora para os Yuan, e assim foram desenvolvidas as Zhen Tian Lei (ou Tetsuhau, em japonês), traduzido como “Trovão que Abala os Céus”, que é uma bola de cerâmica com fragmentos de ferro e pólvora lançada aos montes em trebuchets ou catapultas sobre o exército inimigo para explodirem sobre eles.

O Hachiman Gudokun relata dois momentos críticos desse choque de culturas bélicas distintas. Em um primeiro momento os samurais que estavam acostumados a combates singulares com expressão de seu Nanori (declamação do seu nome e do clã) para então ao serem vitoriosos fazerem o Buntori (coleta de cabeças que ocorria ao derrotar o oponente, decapitando o cadáver para apresentar ao superior em troca de recompensas), tiveram uma quebra de expectativas ao verem os mongóis unidos massivamente como um único corpo que gargalharam para os samurais que bradavam seus nomes. Em um segundo momento, na mesma fonte, há uma passagem que narra como os cavalos e samurais ficaram atordoados pelos barulhos causados pelos mongóis: fossem o uso de gongos e tambores que mobilizavam tropas, ou cornetas para ordens diretas ou mesmo os explosivos estourando no meio do ar.

Apesar da pouca experiência para combater estrangeiros, no mesmo dia os samurais resistiram a investida dos incursores que chegaram apenas próximos de Daizafu, a principal cidade próxima da Baía de Hakata, ali em Fukuoka. Resistindo nos muros do forte Mizuki, deteram até que em certo momento o samurai Shoni Kagesuke conseguiu alvejar o olho do General Liu Fuxiang, causando os demais generais, Kim Pang-Gyong, Hutun e Hong Tagu, ordenarem as tropas baterem em retirada.

Na noite do dia 19 para 20 de novembro os navios que saíram foram atingidos por uma forte tempestade que fez os navios serem jogados contra rochedos em Tsushima causando uma grande baixa nos números. Esse evento muitas vezes é creditado como tufões, apesar de não haver indícios claros na documentação. Nem mesmo para os mongóis fica claro o que aconteceu, visto que Kublai Khan parecia otimista que tinham conseguido intimidar os japoneses ignorando nas fontes que tivesse sabido da perda de sua frota.

Desde então ambas as forças entram em um período entre-guerras que dura de 1275 à 1280, quando as forças Yuan vão se focar na derrocada dos Song do Sul, sendo vitoriosos em 1279 após a queda do longo cerco às cidadelas principais, Xiangyang e Hangzhou. No caso do Shogunato de Kamakura, os samurais passaram a se preparar melhor para enfrentar uma possível segunda invasão. Tendo aprendido com a experiência de combate contra os mongóis, os samurais aprimoraram suas espadas para atacar dentro dos navios, levando uma guerra de guerrilha direto para o convés do inimigo antes que desembarcasse, passaram a massificar suas forças com camponeses combatendo em armaduras mais leves na formação de infantarias leves de arqueiros e pesada de lanceiros, treinaram os comandos através da disciplina pelo som de tambores e fortificaram a praia de Hakata com filas de muros de pedra para dificultar um avanço das cavalarias mongóis.

Em 24 de maio de 1281, uma nova frota liderada pelos mongóis deixa os portos coreanos e imediatamente ataca Tsushima, restabelecendo acampamentos. Dessa vez o Império Yuan tem uma nova estratégia, vão aumentar ainda mais a quantidade de navios e força armada para tomar o Japão através do amedrontamento (ou seja, a ideia é que os samurais se rendessem o quanto antes ou fossem facilmente detidos com a moralidade de combate baixa). Além disso, a frota será dividida em duas, com uma armada vindo por uma rota oriental, que sairia dos portos coreanos e outra ocidental que viria dos portos dos Song que foram conquistados.

A segunda invasão mongol tem diversos motivos para seu insucesso, levando em conta que muitos historiadores, como Prof. Kenzo Hayashida apontam a precariedade dos navios de guerra devido à pressa em serem construídos, incluindo até modelos de barcos fluviais e mercantes no meio da guerra naval em alto-mar, ou como Prof. David Nicolle que afirma a presença de piratas Wakô para massificar ao invés de introduzir combatentes de verdade. No geral, o espaço de desembarque no Japão era estreito, tomado por vales de difícil acesso o que fez boa parte dos navios terem mongóis que sequer pisaram nas terras japonesas durante toda a incursão. O Prof. Stephen Turnbull aponta como os samurais se aproveitaram disso, atacando diretamente os navios dos mongóis atrás da cabeça de comandantes que desmoralizassem o oponente. Para somar a toda essa confusão, há a suspeita de traições entre os comandantes que desejavam diminuir as forças militares de Khublai Khan em nome de outros senhores, a rivalidade dos mongóis de Khanatos (protetorados do Khan) diferentes, a dificuldade de manobrar os barcos para o combate e um desentendimento tático dentro da própria Armada da Rota Oriental. Em 23 de junho do mesmo ano, alguns comandantes da frota desobedeceram as ordens gerais e resolveram avançar sobre a província de Nagato ao sul de Honshu, enquanto o outro grupo sem aguardar a chegada dos reforços da Armada da Rota Sul, simplesmente avançaram sobre a Baía de Hakata. Esse evento resultou nos primeiros tendo sido dizimados, sem termos notícias ou documentação suficiente que relate como foi a resistência em Nagato, e os segundos foram impedidos de desembarcar com a forte resistência na praia de Hakata, tendo que se recuar de volta para a ilha de Iki em 30 de Junho.

A Armada da Rota Sul enfim chegou no final de Julho e início de Agosto, se estabelecendo com a Armada da Rota Oriental em Kyushu nas proximidades de Hirado. Assim, em 12 de Agosto iniciou a batalha de Takashima que durou dois dias, até que em 13 de Agosto, sem os mongóis serem capazes de se manter acampados em terra, uniram seus navios por cordas, correntes e plataformas de madeira para fazer uma fortaleza flutuante na baía de Imari. Foi nessa noite, na virada para 14 de Agosto que um mau tempo e ondas fortes novas voltaram a acontecer e a frota foi dizimada pelos chamados Ventos Divinos, ou Kamikaze. Agora, foram esses ventos apenas fortes ou tufões de facto?

É nesse evento que o Prof. Thomas D. Conlan defende sua “tese de pouca necessidade para intervenção divina”, ou seja, independente de uma catástrofe climática ter atingido a frota mongol ou não, isso não é o principal motivo da derrocada da invasão. Mas sim a capacidade dos samurais se adaptarem para lutar contra uma cultura bélica de conceitos e virtudes tão diferentes da sua. A massificação do exército convocando camponeses para formarem infantarias, a fortificação de muros de pedra envolta da baía para deter o avanço rápido do inimigo, a mudança de tática atacando diretamente os navios com o uso da katana como destaque (que inclusive foi melhorada as técnicas de forja da primeira para a segunda invasão) no convés dos navios inimigos e, no geral, a capacidade de resistirem e manterem os estrangeiros no mar é o principal motivo da vitória. Os tufões, se existiram, só foram capazes de destruir a frota armada da Dinastia Yuan porque os samurais impediram que ficassem em terra.

Os reflexos das tentativas de invasão mongol ao Japão modificaram a forma de pensar e realizar a guerra através dos próximos séculos no arquipélago. A presença de camponeses portando armaduras leves e formando a massa do combate receberia o nome de Ashigaru (Pés Leves) no séc. XV e se manteria até o século XVII, na Era Edo. O arco e flecha aos poucos foi passando a ser usado mais por infantarias leves enquanto o samurai, aos poucos assumindo mais a característica de oficiais de alto comando, mantiveram o foco no combate montado com lanças. Graças a terem presenciado os incursores usando tambores e gongos para coordenar as tropas os próprios japoneses adotaram a técnica para mobilizar suas táticas através de instrumentos musicais de percussão.

O evento dos tufões acabaram sendo motivo de conflitos políticos entre os templos de Kyushu e os de Kyoto, visto que dentre os diversos relatos sagrados da guerra, foi predominante a questão dos tufões nos documentos da capital. O próprio arquipélago passou a ser chamado na própria literatura de Shinkoku, ou Terra dos Deuses, de forma que rezas feitas para amaldiçoar a invasão mongol chegaram a ser entoadas novamente em 1945 quando o Japão foi novamente submetido a uma invasão estrangeira, agora pelos EUA. É possível, contudo, que os eventos da invasão relatados pelos sacerdotes de Kyoto tenham influenciado a Dinastia Ming ao redigir o Yuan Shi, assim como a retomada de aspectos shintoístas passados assumidos nos estudos filosóficos das escolas nativistas do Período Edo tenham reacendido o assunto. Independente, essa é uma vitória conquistada pelo esforço e adaptação dos samurais, e não por uma tempestade ou mudança de ventos.

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Historiador pela UFF, especialista em História Militar pela UNIRIO. É Coordenador da Academia Nipo-Brasileira de Estudos de História & Cultura Japonesa do Instituto Cultural Brasil Japão. Realiza pesquisas no âmbito dos estudos asiáticos em especial acerca da memória e história dos samurais.

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