45 dias de conflito no Leste Europeu

de

Prof. Dr. Ricardo Pereira Cabral

Os russos deram início a “operação especial” a fim de erradicar o neonazismo na Ucrânia com um ataque surpresa da aviação e de mísseis contra as principais bases militares e estruturas de Comando & Controle das Forças Armadas e do governo ucraniano. Neste momento, as assimetrias entre o potencial bélico dos dois países se ampliaram. Inicialmente a infraestrutura urbana civil foi poupada.

Os russos deram início a invasão por terra, utilizando tropas aerotransportadas, paraquedistas, forças especiais e forças-tarefa blindadas com um efetivo variando ente 120.00 e 150.000 contra um exército ucraniano com um efetivo aproximado de 250.00 homens.

Os russos confiavam na sua superioridade de meios para vencer rapidamente, para tanto desdobram muitas unidades blindadas e mecanizadas, com apoio da aviação. O objetivo era destruir as Forças Armadas Ucranianas, outro centro de gravidade. A progressão dessas tropas se deu em colunas, facilitando a tarefa da resistência ucraniana.

Resumindo, para os russos a “operação especial” era uma guerra limitada visando destruir os centros de gravidade ucranianos: ocupar o centro político, derrotar as FFAA Ucranianas e desmobilizar a população para uma guerra de resistência. No entanto, os meios militares disponibilizados estavam aquém das necessidades para se atingir os objetivos políticos e militares, além de falhas operacionais.

Seguindo

No início das operações, o avanço russo se deu em quatro eixos de progressão:

– Eixo Norte – progressão partindo de Belarus em direção à Kiev, centro de gravidade político;

– Eixo Leste – progressão em direção geral à Kiev, em um movimento de pinça, neste eixo está a cidade de Karkhiv que foi cercada, mas até agora não foi conquista. È um dos principais objetivos militares dos russos;

– Eixo Sudeste – na direção da região de Donbass, a fim de conquistar toda região e proporcionar segurança as repúblicas de Donetsk e Lughansk, em um movimento de pinça. Outro principal objetivo político-militar russo;

– Eixo Sul – partindo da Crimeia em direção à Kherson, Foram abertos dois eixos de progressão, ambos em direção Norte, para Kryvyi Rih e Zaporizhzhia ao longo de duas linhas principais, de Beryslav, ao longo da margem do Rio Dniepr, e de Snihurivka-Bereznehuvate para o Norte. Os objetivos eram controlar as saídas para o mar, os portos (que foram bloqueados pela Esquadra do Mar Negro) e as principais cidades.

– Bloqueio naval pela Esquadra russa do Mar Negro à Odessa e em Berdyansk e Mariupol no Mar de Azov.

A progressão das forças russas foi retardada devido à resistência ucraniana maior do que se esperava, evidenciando uma falha da inteligência russa. Na região de Donbas onde Kiev havia concentrado tropas e meios para reconquistar os oblasts de Donetsk e Lughansk a resistência foi ainda maior e onde estavam sendo travados os combates mais duros. Outro ponto que retardou o avanço russo foram as suas próprias limitações logísticas.

Após alguns dias sem saber como reagir os Estados Unidos, a União Europeia, a Otan e aliados começaram a enviar armas, principalmente, mísseis portáteis anticarro e antiaéreo, drones e munição para a Ucrânia. Além disso, Kiev passou a receber voluntários e contratou mercenários para reforçar as suas tropas. Homens e material eram enviados pela fronteira com a Polônia, que os russos começaram a atacar com mísseis e aviação.

 Com 15 dias de guerra a situação evoluiu para o mapa abaixo

Neste momento da campanha, a dificuldade de se avançar rapidamente contra Kiev e em Donetsk, levou aos russos a empenhar ainda mais a aviação, helicópteros, ataques com mísseis e fogos de artilharia. As baixas russas começaram a aumentar, muitas advindas de procedimentos táticos incorretos.

Um das explicações desse avanço russo que se sustentava, mas aquém do esperado pelos analistas ocidentais, se deu pelo fluxo de ajuda militar dos EUA e seus aliados para os ucranianos e por falhas operacionais russas. Kiev também contava com informações fornecidas pelo Ocidente.

Além da resistência ucraniana acima do esperado os russos, inicialmente, estavam empenhando apenas uma parte de suas forças e a operação estava sendo conduzida sobre regras de engajamento bem restritas. Tal linha de conduta prevaleceu nos primeiros 15 dias de luta. Até esse momento da campanha, os russos pouparam a infraestrutura urbana e realizavam suas operações procurando provocar um mínimo de baixas entres os civis. Essa situação começa a mudar a partir do 15º dia da invasão, por que?

Porque o presidente Volodymyr Zelensky exortou a população a resistir aos russos e distribuiu armas aos civis que desejassem se engajar nos combates, em toda parte começaram surgir relatos de emboscadas, assassinato de prisioneiros, de feridos, de envenenamento entre outras todas realizadas por civis ucranianos armados ou não, isso fez com que todo o civil com atitude hostil fosse encarado como inimigo pelos russos. Isso, infelizmente, é da guerra. Outra decisão importante de Kiev foi a de combater nas cidades, uma missão difícil para qualquer exército atacante. Os ucranianos então passaram a utilizar as instalações civis importantes (escolas, hospitais, maternidades, estabelecimentos culturais e comerciais entre outros) e imóveis residenciais como locais de depósito de armas, de reunião de combatentes e para o lançamento de ataques, tornando esses locais alvos para os militares russos. Outra consequência foi a utilização dos civis como escudos humanos, aumentando, significativamente, o número de baixas entre a população.

Lembro que tais medidas são amplamente utilizadas nas guerras de resistência, foi assim nas guerras mundiais, no Vietnã e mais recentemente no Iraque e na Síria, como por exemplo.

A partir do 20º dia de combates, observamos uma série de mudanças:

–  os russos passaram a destruir a infraestrutura urbana empregada pelas forças ucranianas para apoio de suas ações de combate ou pontos de resistência;

– a chegada de novas tropas russas para manter o impulso do ataque e ao que parece uma mudança estratégica com a concentração de esforços na região de Donbass e no mar de Azof;

– a permanência do gargalo logístico russo, apesar do uso cada vez mais intenso das ferrovias e dos aviões de carga;

– a superioridade aérea da VKS (força aérea russa) não permitia liberdade de movimentos das forças de resistência e nem a concentração de forças para um contra-ataque;

– os russos estão se tornando mais eficientes nas contra-medidas para a neutralização MANPADS, ATGM, UCAVs e SAM recebidos pelos ucranianos, que mesmo assim não deixam de provocar perdas devido as suas próprias falhas táticas;

– chegada de tropas russas especializadas em ações sociais e de engenharia nas áreas ocupadas para ganhar o apoio da população;

– o uso das armas mais poderosas do arsenal russo e o reforço das tropas em combate, longe de indicar um esgotamento das capacidades russas, indica a determinação russa de derrotar o inimigo e ocupar parte do território;

– o fornecimento de MANPADS, ATGM, UCAVs, SAM (soviéticos em estoque nas ex-repúblicas socialistas) pela Otan para a resistência ucraniana estão tornando as linhas de comunicações russas menos seguras e pode representar uma ameaça a sua superioridade aérea;

– os efetivos ucranianos tem sido reforçados com voluntários e mercenários em um fluxo cada vez maior;

– as baixas russas não param de aumentar, o ataque parece que está perdendo o seu impulso e as forças ucranianas conseguem fazer contra-ataques pontuais e até mesmo recuperar (mesmo que temporariamente) territórios perdidos;

Do 30º ao 45º dia de guerra

– Cada vez mais os russos parecem estar perdendo o impulso do ataque, com isso, começamos a perceber uma reorganização das forças e mudança na estratégia. As unidades mais desgastadas começaram a ser enviadas para a retaguarda;

–  O comando russo decidiu se concentrar para engajar e destruir as principais forças da Ucrânia, no Leste, na frente de Donbass. Essas são as unidades mais pesadas e mais experientes do exército ucraniano;

No dia 29/3, reorganização das forças e mudança na estratégia russa se confirmou, com um retraimento de Kiev e Chernihiv em direção a Belarus e a Rússia com isso o eixo de progressão em direção a Kiev vindo do Norte foi abandonado. No entanto, o eixo leste está sendo reforçado. O avanço em direção a Cracóvia com objetivo de cercá-la, a conquista da região de Donbass e a consolidação da ocupação de Zaporizhia parecem ser as prioridades atuais.

Moscou começou a trazer tropas vindas do distritos do Pacífico para substituir as unidades desgastadas pelo combate. Forças chechenas passaram a ser empenhadas na conquista de Mariupol, no Mar de Azov, do oblast  de Zaporizhia.

Analistas começaram a especular se o movimento inicial das forças russas em direção à Kiev foi um movimento de fixação, pois impediu que os ucranianos reforçassem as frentes Leste e Sul. É provável que sim, mas podemos também especular no sentido que os russos perceberam que teriam que empenhar muitos recursos na conquista de Kiev. A cidade tem ilhas e se estende as duas margens do rio Dnipre. O combate urbano é sempre muito difícil e Kiev oferece muitas possibilidades ao defensor. A alternativa mais viável, para os russos, seria arrasar a cidade, com a artilharia, para só depois entrar com a infantaria, em um combate quarteirão a quarteirão.

Nesta altura da campanha, o empenho de todas as unidades russas disponíveis no Teatro de Operações sem conquistar os objetivos colocados pela política, indicava que eles ultrapassavam o ponto culminante do ataque e deveria reformular seus objetivos e a estratégia. As perdas russas são estimadas, por analistas ocidentais, em torno de 20% do material e do pessoal, empenhado em combate.

– Em 2/4 uma força de 10 navios de guerra reforçaram o bloqueio a Odessa e estão bombardeando as instalações militares e civis críticas com mísseis;

– Verificamos que as principais ações russas são no sentido de controlar a região do Donbass (oblast/cidades de Cracóvia, Lughansk e Donetsk). Nesta altura da campanha, os russos praticamente cercaram Kramatorsk (capital de Donbas) e avançam lentamente pelo território dos oblasts de Zaporizhia, Kherson.

– Um avanço para Odessa a partir de Mikolayiv, não pode ser descartado. Odessa, Kherson e Mikolayiv defenderiam a Crimeia, fechariam o acesso ucraniano ao mar Negro e permitiram a junção com a Transnístria (na fronteira da Ucrânia com a Moldávia);

– A manobra para conquistar Odessa, seria atravessar Mikolayiv com uma força de blindados em direção à Odessa, ao mesmo tempo que os fuzileiros navais realizariam um assalto anfíbio;

– Mariopol foi praticamente conquistada restando apenas focos de resistência das milícias, a se confirmar isso, os russos terão o controle sobre o mar de Azov;

– Ao que parece que a Rússia está limitando seu avanço as considerações geopolíticas e à fronteira linguística do país;

– Os aumentaram a intensidade dos ataques contra a infraestrutura militar e civil ucraniana, depósitos de combustível e munição, pontes, aeroportos etc, visando reduzir o poder de resistência dos ucranianos e dificultar a movimentação de tropas e suprimentos pelo território;

– O emprego de drones, helicópteros e da aviação tem dificultado a movimentação de tropas ucranianas (algo que deve melhorar nos próximos dias com a chegada de mais meios de combate fornecidos pelos EUA e seus aliados, a se comprovar);

– A superioridade aérea russa está sendo contestada por baterias de mísseis S-300 e por mísseis portáteis (Stinger, RBS70, Igla S. Os ucranianos desejam criar uma no fly zone (zona de exclusão aérea) na Ucrânia;

– As melhores forças russas e ucranianas estão no sudeste na região de Donbass. O avanço russo tem encontrado grande resistência devido as posições defensivas preparadas (trincheiras, fossos anti-blindados, campos minados etc), desde 2014, pelos ucranianos e que estava sujeita a avanços e recuos de ambas as parte;

– Chegada de reforços do distrito militar leste russo (pacífico) em substituição as tropas já desgastadas no ataque a Donetsk e a Cracóvia tem por objetivo destruir a principal força ucraniana no leste e controlar a região de Donbass;

– Após a mudança nas prioridades estratégicas, Moscou mudou o comandante da operações, assumiu o General Alexander Dvornikov, que é veterano da guerra na Síria

– É provável que venhamos a assistir uma grande batalha na região de Donbass, que pode até decidir os rumos da guerra, em caso de vitória ucraniana;

Algumas considerações sobre as Forças Armadas Ucraniana

– Desde 2014 o Exército ucraniano, a Guarda Nacional e a Força de Defesa Territorial (milícias paramilitares, responsabilidade do Ministério do Interior, organizada nas grandes cidades) tinham sido treinados pela Otan para combate contra o Exército russo;

– A experiência de combate do Exército ucraniano, em Donbass, na luta contra as milícias, forças especiais e até mesmo um exército das repúblicas populares treinado pelos russos e que segue a doutrina russa;

– Em 2014, os ucranianos desenvolveram o Projeto Centúria para reforçar o exército ucraniano. Em 2020, o Exército Ucraniano tinha cerca de 40% de seu efetivo composto por mercenários estrangeiros e milícias paramilitares (muitas delas neonazistas); 

– Militares da Otan estão treinando ucranianos nas proximidades da fronteira com a Polônia, de vem o fluxo de armamentos;

– A chegada de blindados, aviões e baterias de mísseis vão permitir aos ucranianos lutar em melhores condições e ter condições de lançaram contra-ataques em maior escala e capacidade;

https://twitter.com/War_Mapper/status/1512583112022233090/photo/1

Conclusões

Como o objetivo político inicial da “operação especial” não foi atingido, a Rússia busca agora consolidar as posições mais importantes, enquanto negocia um cessar fogo em uma posição mais favorável.

Enquanto o acordo não acontece, a Rússia está atuando para derrotar as forças ucranianas em Donbass no limite de Cracóvia, consolidar o domínio sobre Khernon terminar a conquista de Mariupol.

A Rússia não está usando todo o seu potencial militar por estar com a maior parte de suas forças em prontidão estratégica contra uma possível intervenção da Otan.

A resistência ucraniana depende do fluxo de suprimentos e de inteligência recebido dos EUA, União Europeia e seus aliados. Tal fato subordina toda a política e a estratégia ucraniana a Washington e Bruxelas, em uma guerra por procuração.

No caso de chegar um acordo de cessar fogo com os russos ocupando parcelas do território ucraniano, o cenário mais provável, é a continuidade das operações, por meio de pequenas unidades e operações especiais, caracterizando uma guerra de baixa intensidade.

Imagem de Destaque: https://www.understandingwar.org/backgrounder/ukraine-conflict-update-7

Sites consultados

https://abcnews.go.com/International/live-updates/russia-ukraine/?id=83931446

https://medium.com/@x_TomCooper_x/supplement-reorganisation-of-the-rfa-command-in-ukraine-d1bb674718fc

https://www.csis.org/analysis/russian-casualties-ukraine-reaching-tipping-point

https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/conflict-ukraine

https://twitter.com/War_Mapper

https://twitter.com/search?q=jominiw&src=recent_search_click

https://www.understandingwar.org/backgrounder/ukraine-invasion-update-22

https://www.iiss.org/

https://www.bbc.com/news

https://www.dw.com/pt-002/deutsche-welle-dw/t-19555780

https://www.rand.org/blog/2022/04/the-ukraine-wars-three-clocks.html

https://www.ndtv.com/

https://www.aljazeera.com/

Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.

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