A transformação do Exército Francês sob o impacto da Guerra da Ucrânia. Parte 1

de

Equipe HMD

Por que o exército francês continuará  priorizaando a qualidade sobre a massa? De  Michael Shurkin faz uma série de colocações sobre as limitações de um projeto de força ou de um modelo de Exército “expedicionário”. No final do ensaio, o HMD apresenta suas considerações.

O atual modelo francês de guerra é viável?

Em 2021, Michael Shurkin e Stephanie Pezard sugeriram que a resposta era não. Os militares franceses, os mais capazes da Europa Ocidental, poderiam fazer muitas coisas e muito bem. Mas também faltava profundidade e massa para fazer qualquer coisa em grande escala por qualquer período de tempo, antes de simplesmente ficar sem material e pessoal. O estudo teve grande repercussão na França, onde foi divulgado por jornalistas e citado pela Assembleia Nacional e por altos funcionários franceses. O relatório afirma, muito das coisas que os próprios militares franceses estavam tentando articular, ao mesmo tempo que, infelizmente, forneciam munição para seus críticos.

A guerra na Ucrânia apenas colocou esse problema em destaque. O combate convencional, mesmo nesta era de guerra de precisão e redes de informação avançadas, ainda requer enormes reservas de mão de obra, equipamento e munição. Talvez se a Ucrânia e a Rússia não estivessem gastando essas coisas em uma taxa comparável à Primeira Guerra Mundial, mas eles desafiaram seriamente a ideia de que militares altamente profissionais, em pequenos exércitos poderiam substituir qualidade por quantidade. Uma ideia que encorajou a redução de frotas de blindados e provisões militares em busca dos dividendos da paz no período pós-Guerra Fria.

O velho sonho de que armas de precisão significariam menos munições é uma fantasia. Dados os estoques atuais, doar até mesmo alguns tanques ou obuses pode causar sérios problemas para as capacidades de uma força. Assim, entregar à Ucrânia até 20 MBTs Leclerc, por exemplo, prejudica as capacidades do exército francês, visto que a França tem apenas cerca de 200 deles, sem provocar uma mudança na situação da ucrânia. A França já entregou uma parte significativa de seus preciosos obuses autopropulsados CAESAR, que somavam apenas 70, e substituí-los agora é um sério desafio. As indústrias de defesa francesa e européia em geral trabalham apenas para substituir itens mais antigos, quanto mais para fornecer grandes estruturas de força, o que explica a lista crescente de clientes para a indústria sul-coreana por exemplo. Para o proeminente analista militar Michel Goya, a conclusão é clara: a França não pode enfrentar nem mesmo um adversário do mesmo nível.

AMX-56 LECLERC
https://www.warfareblog.com.br/2015/08/nexter-amx-56-leclerc-cavalaria-pesada.html

A França não pode simplesmente evitar novas tecnologias caras e retornar aos exércitos de massa do passado. O presidente francês Emmanuel Macron evocou a ideia de uma “economia de guerra”, mas o consenso na França é que isso é impossível por razões financeiras e políticas. Parte do problema é que, embora seja verdade que, por exemplo, a produção francesa de obuses e vários sistemas de mísseis guiados é atualmente lamentavelmente inadequada, produzir essas coisas em uma escala muito maior não é uma tarefa fácil. A empresa que faz o CAESAR produz atualmente quatro peças por mês e deve atingir um ritmo de seis por mês até dezembro e oito por mês até meados de 2024. Progresso, com certeza, mas lento. A França também não pretende reiniciar a produção de tanques. Por que? tem um novo tanque em andamento, um produto franco-alemão destinado a substituir o Leclerc e o Leopard 2, mas não está programado para ser produzido até 2035 e, presumivelmente, há um limite para o quanto esse processo pode ser acelerado. Pode-se também supor com segurança que o novo tanque será significativamente mais caro do que o Leclerc ou o Leopard 2. Finalmente, ninguém discute seriamente um retorno ao serviço militar obrigatório e o recrutamento militar em massa, que é o que tornou possível os exércitos em massa do século passado.

CAESAR MkI
https://tecnodefesa.com.br/franca-adquire-mais-24-caesar/

Então, o que a França pode fazer entre a massa e a qualidade?

O governo francês espera encontrar algumas economias adotando uma abordagem particular para seus investimentos em tecnologia. Em última análise, analisando o estado atual do debate nos círculos políticos e militares franceses demonstra que o país continua comprometido com a qualidade e com a forma de guerra que vem sendo aprimorando desde 1940.

O estilo francês de guerra de alta intensidade

A abordagem francesa para a guerra de alta intensidade desde a calamidade de 1940 tem privilegiado a manobra, a velocidade e a “audácia” em detrimento da massa e do poder de fogo. Esta foi uma reação às doutrinas que surgiram na Primeira Guerra Mundial, muitas vezes associadas ao general Philippe Pétain, que contribuíram para a organização de uma força que, em 1940, era vasta em tamanho e poder de fogo, mas pesada e inflexível quando atacada pelas rápidas formações blindadas e mecanizadas da Wehrmacht em movimento e muito mais ágil. A nova abordagem centrada na manobra encontrou reforço na experiência colonial do exército francês e em suas doutrinas expedicionárias, que também promoveram audácia e improvisação na ausência de números e recursos. Essa cultura colonial tem uma profunda influência nas forças armadas francesas até os dias de hoje por causa de uma variedade de fatores institucionais e da realidade de que, como um oficial da Legião Estrangeira diz o “exército é o que ele faz”. O exército francês na maior parte do tempo nas últimas décadas esteve ocupado com pequenas guerras na África.

http://www.military-today.com/tanks/amx_30.htm

Claro, o que esse exército é útil no Mali, mas é muito menos útil, digamos, em Donetsk. Historicamente, porém, o pensamento militar francês em relação a um conflito com o Pacto de Varsóvia refletia essa mesma abordagem da guerra, aumentada pelo pensamento militar francês sobre o significado estratégico das armas nucleares. As unidades pesadas da França, baseadas no recrutamento, estacionadas na Alemanha, foram projetadas para defender a França em solo alemão, lutando contra manobras agressivas no estilo blitzkrieg contra adversários muito maiores e mais poderosos. Os franceses calcularam que nunca teriam poder de fogo e massa suficientes para fazer o contrário. Assim, por exemplo, os tanques franceses da era da Guerra Fria, incluindo o AMX-30, ofereciam menos proteção do que os tanques americanos da mesma época: seus projetistas apostavam em velocidade e manobrabilidade.

No entanto, os franceses presumiram que uma guerra seria breve. Ou a guerra se tornaria nuclear ou terminaria antes de atingir esse limiar. De fato, de acordo com o pensamento estratégico francês da época, veja, por exemplo, o Livre Blanc sur la Défense, de 1972, o objetivo das forças convencionais francesas na Europa era ser forte o suficiente para testar a determinação do adversário, mas não forte o suficiente para derrotá-lo. Se alguém precisasse reunir uma força enorme para derrotar o exército francês, os franceses seriam capazes de ver isso. Eles avaliariam as intenções do Pacto de Varsóvia e saberiam se o perigo era sério o suficiente para utilizar armas nucleares. Seguiu-se que os planejadores franceses da Guerra Fria não acharam necessário acumular grandes estoques de equipamentos e munições.

https://www.aereo.jor.br/2013/12/17/cacas-mirage-f1-franceses-fazem-ultima-campanha-de-tiro-ar-solo/

Em vez disso, a França investiu recursos significativos para adquirir o seguro definitivo contra invasão: armas nucleares, juntamente com os meios para lançá-las. A estrutura da força aérea e da marinha francesas desde então refletiu essa prioridade, e não a capacidade de derrotar a força aérea e a marinha soviéticas. Eles foram projetadas para lançar ogivas nucleares e proteger os meios para fazê-lo. Todas as outras missões eram secundárias. O resultado foram submarinos de mísseis balísticos com propulsão nuclear e aeronaves de combate de primeira linha projetadas para missões nucleares no topo da lista de requisitos. Mas tudo isso ocorre às custas da massa. Além de o dinheiro necessário para manter as capacidades nucleares ser dinheiro que não está disponível para outros fins. A França reserva uma parte de suas aeronaves e navios para o caso de serem necessários para missões nucleares, reduzindo o número disponível para outras missões.

Hubin e alta tecnologia

O desaparecimento das vastas divisões blindadas do Pacto de Varsóvia, o advento de armas de precisão e guerra em rede encorajaram a França a reformar suas forças armadas, colocando ainda mais ênfase na “audácia” e manobrabilidade. A França encerrou o recrutamento (serviço militar obrigatório) na década de 1990, o que, entre outras coisas, transformou o exército em força “expedicionária”. Entre outras coisas, isso significou uma maior aceitação da cultura militar francesa de improvisação. A força também encolheu, o que significa que teria que fazer mais, com muito menos. Finalmente, a promessa de alta tecnologia encorajou vários teóricos, principalmente o general Guy Hubin, a imaginar pequenas unidades altamente descentralizadas e altamente manobráveis movendo-se em várias direções, apoiadas por logística just-in-time que dosava provisões essenciais. As unidades obtinham exatamente o que precisavam, onde e quando precisavam, o que presumivelmente seria muito menos do que antes.

Essas visões agora estão inseridas em unidades mecanizadas francesas, que exibem novos veículos conectados em redes projetadas para atingir os alvos certos no momento exato. Não há mais concentrações em massa de artilharia. Chega de comboios gigantes de suprimentos que fornecem alvos compensadores a concentrações de artilharia, à imagem do rio interminável de caminhões na Voie Sacrée que abastecia as forças francesas em Verdun. As unidades francesas se moveriam rapidamente e, segundo Hubin, se moveriam de maneira “isotrópica”, ou seja, não ao longo de eixos fixos.

Hubin estava certo sobre algumas coisas, mas, como todo mundo, ele estava excessivamente otimista sobre a sustentabilidade desse tipo de luta e as economias que a rede e a guerra de precisão trariam. A guerra na Ucrânia demonstrou que a guerra convencional de alta intensidade ainda inflige um alto custo aos soldados e equipamentos. Exércitos, mesmo com a tecnologia mais avançada, ainda queimam projéteis em números impressionantes, sem mencionar itens como tubos de canhão. De fato, a artilharia de tubo (agora autopropulsada) continua sendo o rainha do campo de batalha, apesar dos mísseis e dos sistemas de foguetes de artilharia de alta mobilidade e precisão. Uma razão para isso é que a guerra convencional geralmente exige o uso concentrações de artilharia para bloquear ou suprimir o movimento: é menos uma questão de precisão do que de volume de fogo para forçar um adversário a se aferrar no terreno. A guerra na Ucrânia também desafiou as suposições sobre a manobrabilidade diante das antiquadas concentrações de artilharia. A manobra ofensiva não é impossível, mas, como argumentou Steven Biddle, simplesmente mais difícil. Dado seu compromisso histórico com a manobra, a França poderia se sair melhor do que a Ucrânia. Mas, novamente, também poderia ser que não.

http://operacoesmilitaresguia.blogspot.com/2019/05/o-tiro-de-artilharia.html

Rumo a um meio termo?

Que os franceses precisam de mais de tudo, não é mais contestado. A questão é quanto mais é possível, com aumentos relativamente modestos no orçamento politicamente plausível fará a diferença. Alguns têm especulado sobre a construção de forças grandes, mas de baixa tecnologia, visando apenas níveis adequados de tecnologia que seriam acessíveis o suficiente para permitir uma massa maior. Goya, por exemplo, escreveu sobre a conveniência de ser seletivo sobre em quais tecnologias investir, a ideia é que, em muitos casos, seria ideal almejar a “suficiência” em vez da mais alta qualidade, para tornar a massa acessível. Não se precisa dos melhores mísseis antitanque, por exemplo, mas de um número maior de mísseis mais baratos, mas adequados.

https://www.defesaaereanaval.com.br/aviacao/franca-assina-contrato-para-helicopteros-nh90-tth-atualizados-para-forcas-especiais

Outro exemplo que surge nos debates sobre a modernização militar francesa é o novo helicóptero NH90 da França, destinado a substituir o helicóptero Puma, desenvolvido na década de 1960. O que o exército francês supostamente queria era algo relativamente simples e “robusto”. Em vez disso, o que eles obtiveram foi uma máquina sofisticada e complexa com um alto preço de compra e de manutenção difícil e cara. O helicóptero de ataque Tiger também é excelente, mas caro e difícil de se manter operacional, uma reclamação compartilhada pela Alemanha.

https://tecnodefesa.com.br/airbus-helicopters-tiger-de-alemanha-franca-e-espanha-garantidos-para-alem-de-2030/

Goya lamenta o fato de que, desde o fim da Guerra Fria, os militares franceses sofreram reduções significativas em quase todos os principais sistemas de armas. As mais novas armas da França, incluindo suas fragatas e obuses, são soberbas – e, como ele observa sobre o caça Rafale, sua qualidade compensa até certo ponto o número reduzido em comparação com os sistemas mais antigos que eles substituíram. (A força aérea francesa tem em torno de 100 Rafales junto com aproximadamente outros 92 Mirage 2000s. Sua marinha tem 42. No entanto, Goya afirma que o “Rafale pode fazer muitas coisas e mesmo a longa distância, mas eles não podem estar em todos os lugares.” Muitos oficiais ficariam satisfeitos se pudessem renunciar aos novos veículos blindados que estão entrando em serviço (o Véhicule Blindé de Combat d’Infanterie, Jaguar e Griffon) e o Véhicules Blindés Multi-Rôles (VBMR), programa Scorpion, em favor de versões recém-fabricadas de equipamentos mais antigos e mais baratos. Os itens antigos devem desaparecer porque estão gastos e cada vez mais difíceis de manter, mas devem ser substituídos por veículos de alto desempenho equipados com os mais recentes e melhores aparelhos de alta tecnologia que a indústria francesa pode fornecer?

https://www.planobrazil.com/2019/01/06/afv-brasil-nexter-jaguar-ebrc/

Em 2028, o recém-aposentado major-general Charles Beaudouin supervisionou os programas de tecnologia do exército francês e pode ser considerado um Comando de Futuros do Exército de um homem só. Beaudouin gerenciou o desenvolvimento de vários programas de alta tecnologia que agora estão entrando em serviço, reconhecidamente com grandes despesas. Seus argumentos são semelhantes aos de Goya, embora ele rejeite mais claramente a ideia de construir uma força de baixa tecnologia e defenda uma mistura high-low technology que requer uma priorização estrita. O caminho a seguir é pensar em tecnologia que visa ser boa o suficiente e aceitar a ideia de ter equipamentos menos eficientes, mas “em massa”, ao lado de equipamentos de superioridade no campo de batalha. Resumindo: invista no que realmente precisa.

Um exemplo bem-sucedido da França fazendo isso é o CAESAR. De acordo com Beaudouin, o exército francês investiu no obuseiro e não sacrificou nada em termos de alcance, cadência de tiro e precisão. Para compensar, o exército francês optou por se contentar em colocar o canhão em um chassi de caminhão com cabine blindada, em vez de uma plataforma blindada e rastreada como o alemão PzH 2000. O resultado é um canhão muito mais barato de comprar e sustentar, ao custo de comprometer outras capacidades consideradas menos vitais.

https://twitter.com/ChuckPfarrer/status/1605351770116722688/photo/1

Olhando para a guerra da Ucrânia em busca de insights, Beaudouin observa com aprovação que os russos optaram por investir em certas tecnologias, especialmente aquelas associadas a antiacesso e negação de área (A2/AD) e mísseis hipersônicos, negligenciando totalmente os antigos sistemas aéreos, terrestres e marítimos. Embora se possa questionar as escolhas dos russos, ele insiste que a própria ideia de investimento seletivo pode ser um bom caminho para as forças europeias, à medida que tentam recuperar massa enquanto investem em tecnologia. É uma questão de identificar e direcionar certas áreas-chave que prometem mudar o jogo.

Mas a massa pode ser restaurada?

Investir seletivamente em certas tecnologias pode trazer alguma economia, mas o fato é que a França e outros países europeus terão que gastar muito mais dinheiro se quiserem recuperar algo como a massa que agora cada vez mais pensam que precisam. Este ano, a França se comprometeu a gastar muito mais dinheiro, mas não o suficiente para restaurar a massa.

No final de janeiro, Macron anunciou a intenção de seu governo de aumentar significativamente o orçamento de defesa da França. Em seu discurso, ele destacou a necessidade de aumentar os estoques da França e reinvestir nas forças militares de apoio, o que muitas vezes é chamado de “cauda”, que historicamente foi bastante reduzido para manter o máximo possível do “dente” . Após o discurso de Macron, Goya reclamou que simplesmente reconstruir as forças armadas absorveria todo o dinheiro novo, não sobrando nada para aumentar a força. A nova proposta de Lei de Programação Militar, lançada em abril deste ano, confirma sua visão. Embora exija gastos de € 413 bilhões (ou R$ 2.242.590.000.000) nos próximos cinco anos, a nova lei na verdade não exige o aumento da força, embora exija aumentos significativos na frota de drones e nas capacidades de defesa aérea, juntamente com mais gastos em inteligência, capacidades de combate a minas terrestres e guerra cibernética. A França também busca aumentar suas forças de reserva. Caso contrário, o número de brigadas permanecerá o mesmo e o tamanho das frotas naval e aérea aumentarão apenas marginalmente.

https://www.economist.com/europe/2021/03/31/the-french-armed-forces-are-planning-for-high-intensity-war

Lembro que a França tem um orçamento militar em torno de € 50 bilhões e com a nova previsão os gastos se elevariam os gastos militares a € 82.6 bilhões. A França se comprometeu a aumentar seu orçamento militar a 2% do PIB algo em torno de 60 bilhões de euros, a conta não está fechando…

Visão do General Pierre Schill: Repensando o Lego Army

Em 13 de fevereiro de 2023, general Pierre Schill, chefe do estado-maior do exército francês, apresentou a um grupo de jornalistas sua nova visão para o futuro do exército francês. Curiosamente, a resposta de Schill ao dilema qualidade versus massa é manter o curso, principalmente investindo na capacidade do exército de fazer melhor o que já foi projetado para fazer, em outras palavras, trabalhar para melhorar sua qualidade.

Schill deixou claro que o exército manteria seu tamanho atual, que consiste em 77.000 soldados destacáveis (de um efetivo total de aproximadamente 120.000). Ele explicou que havia pouco valor em simplesmente comprar mais tanques, obuses, etc. Em vez disso, sua visão era focar na resiliência e coesão, para permitir que o exército fizesse um trabalho melhor de guerra de alta intensidade em seu tamanho atual e, idealmente, ter estoques maiores para que pudesse durar mais tempo. Também significava afastar-se da mentalidade expedicionária e de algumas das qualidades que estavam entre suas virtudes.

https://www.theatlantic.com/photo/2017/10/operation-barkhane-frances-counter-terrorism-forces-in-africa/543834/

Schill comparou o exército francês a peças de Lego. Ele observou que operou juntando tijolos e montando-os, muitas vezes na hora, em pacotes de força destacáveis. Suas virtudes eram a modularidade, mas isso também significava reunir forças juntando pedaços de várias unidades para fornecer a elas capacidades específicas, conforme necessário. Essas capacidades ele tendia a “dosar” em pequenas quantidades, algo que conseguia na maioria das vezes por causa da intensidade relativamente baixa do combate que a França experimentava. Assim, por exemplo, o destacamento francês para o Mali, em 2013 contou com apenas quatro CAESARs, pois pensava-se que não eram necessários mais. Além disso, as várias forças-tarefa de valor batalhão que os franceses implantaram no Mali consistiam em fragmentos retirados de vários regimentos que faziam parte de várias brigadas.

Schill calculou que para o exército prevalecer em uma luta de alta intensidade contra um exército de capacidade igual, várias coisas deveriam acontecer: as unidades que compunham batalhões desdobrados precisavam estar mais bem preparadas para fazer pleno uso das muitas capacidades que possuíam. Isso implicou menos formações “ad hoc” reunidas a partir de vários tijolos e mais forças pré-montadas com mais capacidades orgânicas. Também significou elementos de comando e controle mais robustos para alcançar maior coerência. O exército francês, indicou, que teria exatamente o mesmo número de regimentos e brigadas, mas estes seriam mais “completos”. Por último e provavelmente o mais controverso, o exército teve que investir muito mais em certas capacidades que lhe faltavam, ou nas quais havia subinvestido anteriormente. Isso inclui capacidades de defesa aérea (incluindo anti-drone), cibernética e artilharia de longo alcance. Dado o limite do tamanho da força, invariavelmente adicionar novas capacidades exigia cortar outras. Unidades de combate, portanto, podem acabar com menos veículos de combate. Ele deu dois exemplos específicos: alguns dos novos veículos blindados Serval e Griffon atualmente sendo construídos e entregues seriam convertidos em plataformas de defesa aérea. No entanto, o número total permaneceria o mesmo, portanto, haveria menos designados para o propósito original.

Quanto à massa, Schill falou em dobrar o tamanho do componente de reserva da França e criar unidades de reserva designadas, contra o sistema atual em que a maioria dos reservistas simplesmente se conecta a unidades existentes. Este foi um acordo que deu ao exército francês um pouco da massa que buscava, mas nada como as dimensões da era do recrutamento durante a Guerra Fria ou da sua necessidade em um cenários de guerra de alta intensidade e duração.

Conclusão

Alguns críticos como Goya sugeriram que a visão de Schill, confirmada pela Lei de Programação Militar, significava que a França no final não levava a sério a guerra de alta intensidade. Philippe Chapleau observou da mesma forma que, mesmo com os grandes aumentos orçamentários previstos, os militares franceses estavam fazendo pouco mais do que reconstruir, mas fundamentalmente permaneceriam o que eram. Uma avaliação mais justa pode ser que a França suponha que um verdadeiro exército de massa está além de seu alcance político e fiscal, então o melhor que pode é tentar otimizar a força que possui, que é projetada para manobra e não para poder bruto.

Isso seria bom o suficiente? Parte da resposta, pelo menos para a liderança francesa, é recorrer à visão mais antiga de que as armas nucleares evitam a necessidade de um exército de massa destinado a enfrentar um igual como a Rússia. De fato, a nova Lei de Programação Militar enfatiza o lugar crítico da dissuasão nuclear no pensamento estratégico francês. A França também presume, ainda, que em tal luta não estaria sozinha, daí a insistência de Macron em um esforço de defesa europeu mais amplo em paralelo com o compromisso sério com a integração na OTAN. A esperança é que os militares europeus combinados possam oferecer o tipo de massa necessária para uma guerra convencional.

A França, ao que parece, está mantendo o rumo. Isso significa que terá um exército de alto nível que seria capaz de manobrar em torno das forças russas e presumivelmente enfretá-las em pedaços, mas não por muito tempo. O que acontecerá então provavelmente dependerá dos Estados Unidos e do restante da OTAN, e da questão de saber se a dissuasão nuclear provará seu valor.

O autor

Michael Shurkin é membro sênior não residente do Atlantic Council e diretor de programas globais da 14 North Strategies. Ele era um cientista político sênior na RAND Corporation e também atuou como analista político na CIA. Ele tem um Ph.D. em história moderna da Europa pela Yale University.

Comentários HMD

Os Exércitos europeus atualmente são uma fração do que eram durante a Guerra Fria, passaram anos com orçamentos militares reduzidos e promovendo seguidos processos de downsizing, tendo como resultado e redução drástica de suas capacidades militares. A defesa europeia depende, fundamentalmente dos Estados Unidos e das armas nucleares para manter um alto grau de dissuasão.

A questão do Lego Army é mais profunda, unidades modulares, sejam elas brigadas (no caso dos EUA) ou batalhões (caso da Rússia) não exclui a manutenção de grandes unidades como as divisões e corpo de exército que tenham mais capacidades como por exemplo aviação militar (drones e helicópteros), baterias de lançadores de mísseis, unidade de guerra eletrônica e inteligência. Além de outros peças de manobra prontas para serem desdobradas em caso de necessidade tática.

A questão do efetivo é fundamental, exércitos pequenos podem ser extremamente potentes e manobráveis, mas não tem como durar na ação por longo tempo contra exércitos maiores pela simples necessidade de recompor unidades desfalcadas e destruídas. A capacidade expedicionária e modularidade não podem ser um fim em si mesma.

A Guerra da Ucrânia está evidenciando a necessidade de amplas reservas de homens (serviço militar obrigatório), capacidades C4ISR (consciência situacional, Situational Awareness, SA), forças blindadas, artilharia de mísseis e autopropulsada, drones (de ataque e intelligence, surveillance and reconnaissance, ISR), robusta A2/AD (Anti-Access/Area Denial) e logística para atender guerra móveis, de alta intensidade e longa duração. Outro ponto, brigadas modulares e grupos de batalha de batalhão, mesmo reforçados em capacidade com outras peças de manobra, já demonstraram em combate e em jogos de guerra suas limitações em uma guerra de armas combinadas de alta intensidade e longa duração. Os russos estão reformulando seus grupos de batalha de batalhão, brigadas e divisões para atender a novas demandas táticas e a futuros cenários da Guerra da Ucrânia.

Há necessidade de investimento em desenvolvimento tecnológico em sistemas de armas com grandes capacidades reunidas em uma mesma plataforma mais precisos e letais, de preferência com grande parte com conteúdo nacional. Outro ponto a necessidade de constituição de amplas reservas dessas plataformas e munição.

https://www.planobrazil.com/2019/01/06/afv-brasil-nexter-jaguar-ebrc/

Um ponto importante a ressaltar é que um sistema de armas de grande capacidade em uma plataforma de alto valor agregado e no estado da arte custa muito caro (malthusianismo militar) e são difíceis de repor. A questão em que capacidades investir é fundamental, lembrando que na guerra, todas as escolhas são cobradas em sangue.

Lembro que tudo na área de defesa requer pesquisa, desenvolvimento, planejamento e um alto volume de recursos por longo tempo para que se construa uma força realmente eficaz e com capacidade dissuasória. Os projetos nessa área são de longa duração. Em defesa não se improvisa e o pior que o Estado pode fazer é gastar pouco e/ou muito mal em forças mal armadas ou capacitadas para fazer frente a um inimigo de igual poder.

Tradução, inserção de imagens e comentários do Prof. Dr. Ricardo Pereira Cabral

Imagem de Destaque: https://www.nytimes.com/2022/08/15/world/africa/mali-france-military-operation.html

Referência Bibliográfica

Why the French Army Will Continue to Prioritize Quality Over Mass

French Army at a Turning Point

https://sputniknewsbrasil.com.br/20180112/artilharia-tatica-de-guerra-russia-barragem-10264925.html

Programa SCORPION – Nexter e Texelis – Vencem o 4×4 VBMR leve

https://www.themoscowtimes.com/2023/01/24/russian-military-reforms-target-nato-expansion-collective-west-gerasimov-a80023

https://www.dw.com/en/are-russias-plans-to-reform-its-army-realistic/a-64547012

Deixe um comentário

Gostou dos artigos e postagens?

Quer escrever no site?

Consulte nossas Regras de Publicação e em seguida envie seu artigo.

Siga-nos nas Redes Sociais