Rodolfo Laterza
1. INTRODUÇÃO
A indústria de defesa é um dos setores críticos em tecnologia intensiva na estrutura produtiva de um país, absorvendo mão de obra qualificada e gerando valor agregado para a produção nacional.
O desenvolvimento da indústria de defesa em um Estado – Nação depende não apenas de motivação política, mas de fatores de intervenção desenvolvimento como continuidade de políticas setoriais pelo Estado, aderência pelas elites dirigentes aos programas de desenvolvimento implantados, resiliência geopolítica diante de pressões de potências externas, subvenções estatais nos planos financeiros, comerciais, institucionais e tributários, marco regulatório específico e que traga segurança jurídica de longo prazo, demanda agregada do Estado por produtos produzidos pelas empresas públicas e privadas envolvidas na cadeia produtiva e formação de estruturas de pesquisa e desenvolvimento integradas, políticas voltadas à exportação, integração com a política de relações exteriores, bem como apoio político suprapartidário com engajamento de correntes ideológicas diversas na implantação e efetivo das medidas direcionadas ao segmento.
Neste contexto, uma análise dos exemplos de países emergentes que desenvolveram suas indústrias de defesa a partir do final dos anos 80, como a Turquia e a Coreia do Sul, é um paradigma pertinente para se buscar soluções e reflexões sobre o desenvolvimento da base industrial de defesa no Brasil, que infelizmente não possui o tratamento político e institucional em nível estratégico que exige, impedindo o fortalecimento desenvolvimento tecnológico soberano no Brasil, ainda que iniciativas inúmeras tenham ocorrido em diferentes contextos recentes mas sem resultados tangíveis como aqueles vigentes naqueles países.
Este estudo apresentará as características e principais detalhes das realidades institucionais e jurídicas das emergentes e crescentes indústrias de defesa turcas e sul coreanas.
2. A REALIDADE DA TURQUIA
Em uma única década, a Turquia aumentou consideravelmente sua autonomia na fabricação de armas e conquistou vários triunfos no mercado de exportação, especialmente na área de produção de drones.
Publicada pela primeira vez em 2010, a “Visão 2023”, concebida pelo Gabinete do Primeiro-Ministro, envolveu uma multiplicidade de objetivos destinados a tornar a Turquia uma potência independente.
A crescente desconfiança de Ancara entre os países da Europa Ocidental e América do Norte, juntamente com o desenvolvimento acelerado da indústria de defesa do país, levou ao colapso das exportações de armas dos EUA para a Turquia em 81% entre 2010 e 2020.
De 2011 a 2015, a Turquia foi o terceiro maior destinatário mundial de armamento dos EUA, mas caiu para o 19º lugar entre 2016 e 2020.
As autoridades turcas fizeram do desenvolvimento dessas indústrias uma de suas prioridades: em 2018 o executivo chegou a colocá-las sob seu controle direto ao extinguir a subsecretaria de indústrias de defesa (SSB) e estabelecer uma presidência para administrá-las.
Em dez anos, o setor da indústria de defesa deu um salto considerável: enquanto em 2000 apenas uma empresa turca figurava entre as 100 maiores empresas de armamento, hoje são sete.
De um faturamento de um bilhão de dólares em 2002 para onze bilhões em 2020, suas indústrias de defesa fizeram da Turquia o 14º maior exportador de equipamentos militares. De 2010 a 2019, o país vendeu material bélico para 28 nações.
O objetivo da autonomia estratégica parece prestes a ser alcançado: de 2015 a 2019, a Turquia importou 48% menos de seus materiais e tecnologias de guerra do que de 2011 a 2015.
O país conseguiu desenvolver todos os aspectos de sua indústria de defesa: de suas duas empresas que ingressaram em 2020 na lista das 100 maiores empresas militares do mundo, uma fábrica hardware – FNSS Defense Industries – e a outra, Havelsan, é especializada em software.
O melhor símbolo do triunfo da Turquia na frente industrial militar é seu extraordinário sucesso na área de drones militarizados.
Do drone armado Bayraktar TB2 ao drone de vigilância Akinci, a Turquia tornou-se especialista nessas aeronaves não tripuladas graças ao engenheiro Selçuk Bayraktar, agora um herói nacional.
Apesar dos consideráveis avanços obtidos nos últimos anos, a Turquia ainda não pode prescindir da expertise de potências estrangeiras.
Os produtos apresentados como “feitos localmente” geralmente contêm materiais ou tecnologias de origem estrangeira: o tanque de guerra principal, o Altay, será equipado com um canhão Rheinmetal alemão, os helicópteros de combate TI29 ATAK com motores LHTEC dos EUA e os submarinos da classe Reis são alimentado por motores Siemens da Alemanha.
A Turquia tem o cuidado de escolher seus parceiros em países onde os perigos de uma crise diplomática parecem mínimos.
Por exemplo, as empresas sul-coreanas Doosan e S&T Dynamics fornecerão o motor para o tanque Altay, que deveria ser fornecido pelos alemães antes de se retirarem do projeto em 2018, quando Berlim impôs seu embargo. Quanto aos helicópteros T129ATAK, eles substituirão seu motor americano por um modelo ucraniano, fornecido pela Motor Sich, o qual, devido a ataques russos de precisão no contexto da guerra da Ucrânia, inviabilizou a produção naquela empresa, o que exigiu uma reprogramação para aquisição de outros parceiros, como a China.
3. CONTEXTO JURÍDICO DA INDÚSTRIA DE DEFESA TURCA
Em 6 de julho de 2022, foi publicado o Decreto Presidencial nº 1.548, de 17/09/2019, que determina os procedimentos e princípios para a contratação de bens e serviços a serem realizados no âmbito da alínea b) do artigo 3º da Lei de Licitações nº 4.734 (“Decreto Presidencial”) pelo Ministério da Defesa Nacional da Turquia.
De acordo com o aditamento anterior, datado de 13 de maio de 2022, nos contratos celebrados em liras turcas relativos a compras de bens e serviços e obras de construção adquiridas no âmbito do Decreto Presidencial, excluindo obras adquiridas no âmbito do Programa de Investimento em Segurança da NATO, diferenças de preço adicionais podem ser calculados e/ou esses contratos transferidos de acordo com os Princípios Relativos à Implementação do Artigo Provisório 5º da Lei nº 4.735.
Entretanto, a origem da formação do marco legal da indústria de defesa turca está na Lei 3.238, aprovada em janeiro de 1986, criou a Administração de Desenvolvimento e Apoio à Indústria de Defesa (DIDA) e estabeleceu o Fundo de Defesa. A DIDA tem um Conselho composto pelo primeiro-ministro, chefe do estado-maior, comandantes de serviço, vários gabinetes e funcionários da Organização de Planejamento do Estado, a DIDA decidirá sobre várias propostas e determinará as prioridades de fabricação de armas.
Paralelamente ao seu papel como agência de aquisições, de acordo com Erdem, a DIDA busca incentivar empresas turcas privadas e empresas estrangeiras a investir na Turquia, para transferir licenças, tecnologia e know-how.
Quando as empresas nacionais produzirem esses produtos militares, o fundo dará a garantia de comprar esses produtos por um determinado período de tempo, como três ou cinco anos.
A Lei 3.238 também estabeleceu que a DIDA adquiriria o patrimônio das fundações militares criadas anos antes para arrecadar fundos para investimentos militares.
A Turquia também tem uma específica lei de joint ventures para defesa. Neste contexto, a República da Turquia tem atualmente dois tipos de implementações de compensação: militar e civil.
As implementações de compensações militares na Turquia são regulamentadas pela Lei sobre o Estabelecimento da Subsecretaria para Indústrias de Defesa 1 e pela Diretiva de Participação/Compensação Industrial 2 emitida pelo Ministério da Defesa Nacional da Turquia.
A proporção mínima de compromisso em compensações militares deve ser igual a 50% do valor do contrato de aquisição para acordos de participação/compensação da indústria.
A chamada “Lei Omnibus” alterou alguns artigos do Contrato Público e introduziu um novo parágrafo declarando que “…a compra de bens e serviços envolvendo participações industriais/ implementações de compensação que pretendem fornecer inovação (yenilik), localização (yerlilesme) e transferência de tecnologia (teknoloji transferi) ficará isento do âmbito da Lei dos Contratos Públicos. ” Assim, com a Lei Omnibus, os referidos bens e serviços ficam excluídos do âmbito de aplicação da Lei dos Contratos Públicos.
Os licitantes, no âmbito da referida legislação, devem se comprometer a cumprir as taxas mínimas de compromisso do protocolo de compensação – ICP, conforme estabelecido em seu respectivo Contrato Principal de Fornecimento. As categorias de ICP obrigatórias são as seguintes:
- Categoria A – Contribuição de produção local: Os contratantes devem fabricar um produto de alta tecnologia como um todo ou em parte na Turquia usando qualquer instalação existente na Turquia;
- Categoria B – Investimento: Os contratantes devem fabricar um produto de alta tecnologia como um todo ou em parte na Turquia e construir uma nova instalação de produção na Turquia para tal produção;
- Categoria C – Cooperação Tecnológica: Esta opção exige que os contratantes tragam suficiência tecnológica para a indústria turca por compromissos do ICP; e
- Categoria D – Exportação: Os contratantes devem fornecer exportação da Turquia por compromissos ICP.
Os compromissos enquadrados nas Categorias C ou D só podem ser cumpridos em conjunto com os compromissos incluídos na Categoria A e/ou na Categoria B.
4. A INDÚSTRIA DE DEFESA DA COREIA DO SUL
Na Coreia do Sul, o governo há muito pressiona e incentiva o desenvolvimento industrial de defesa e continua a fornecer apoio extremamente forte e consistente ao setor.
O acordo de US$ 14,3 bilhões assinado com a Polônia em julho, que inclui 48 aeronaves leves de combate FA-50, 980 tanques K2 Black Panther e 672 obuses autopropulsados K9 Thunder adicionais, é de longe o maior já feito para a indústria de defesa da Coréia do Sul.
Em janeiro de 2022, as empresas sul-coreanas venderam um número não revelado de sistemas de defesa aérea de médio alcance Cheongung Block-2 para os Emirados Árabes Unidos no valor de US$ 3,5 bilhões, e em dezembro passado eles ganharam um contrato de US$ 667 milhões para fornecer artilharia e veículos de reabastecimento de munição para o Exército australiano.
O país também vende navios de guerra, submarinos, docas de plataformas de desembarque, aeronaves de treinamento, bem como uma variedade de armas, guerra eletrônica e sistemas de comunicação.
Esse notável desenvolvimento da indústria de defesa sul coreana é apoiado por duas novas leis que foram introduzidas em 2021: a Lei de Desenvolvimento da Indústria de Defesa e a Lei de Promoção de Inovação em Ciência e Tecnologia de Defesa, ambas as quais entraram em vigor sob o antecessor de Yoon, Moon Jae-in, e visam alcançar o que a Coreia do Sul chama de uma indústria de defesa “voltada para a exportação”.
Essa abordagem institucional e desenvolvimentista permitiu o suporte ao cliente em áreas como flexibilidade de pagamento, empréstimos, pacotes de compensação de saída, transferências de tecnologia, investimentos e colaboração industrial.
5. PRINCIPAIS DETALHES DA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO DA INDÚSTRIA DE DEFESA SUL COREANA
Com a missão de melhorar as capacidades de defesa e promover a indústria de defesa, a Administração do Programa de Aquisição de Defesa (DAPA) da República da Coreia do Sul (ROK) foi criada em 2006 como o órgão administrativo central para aquisição de defesa.
A DAPA planeja, executa e supervisiona a aquisição de armas, equipamentos militares e suprimentos em nome do Ministério da Defesa Nacional (MND) em todos os domínios.
Além disso, a DAPA negocia os requisitos dos produtos e serviços de defesa, autoriza créditos de compensação, dita os termos e condições e faz alterações nos cronogramas de entrega ou nas entregas exigidas.
A DAPA controla todas as negociações formais sobre preço, transferência de tecnologia, compartilhamento de trabalho local e pacotes de compensação.
Para participar de programas governamentais que exigem coprodução ou codesenvolvimento local, os contratantes de defesa estrangeiros muitas vezes formam um consórcio com as principais empresas de defesa coreanas, como a Korea Aerospace Industries (KAI), a Korean Air, a Hanwha, a LIG NEX1, a Hyundai e outras.
Trabalhar com parceiros locais é considerado essencial para empreiteiros de defesa estrangeiros, a fim de superar as barreiras linguísticas, proteger redes com os principais tomadores de decisão, obter inteligência do mercado local e enfrentar os desafios administrativos e logísticos relacionados aos processos de aquisição.
A DAPA, como agência do governo central, administra a política de compensação, enquanto as avaliações de tecnologia e confiabilidade são conduzidas pela Agência de Defesa para Tecnologia e Qualidade (DTaQ), uma organização sob a DAPA.
Uma obrigação de compensação pode surgir para um contratado estrangeiro caso o valor do contrato do programa de defesa exceda US$ 10 milhões.
De acordo com as diretrizes mais recentes, um mínimo de 50% ou mais do valor estimado do contrato principal seria alocado para compensação de contratos com fornecedores concorrentes.
Para contratos de fonte única, um mínimo de 30% ou mais do valor estimado do contrato principal seria aplicado a uma compensação.
De acordo com os últimos dados da DAPA publicados em 2021, cerca de 62% dos programas de compensação avaliados em US$ 497 milhões foram administrados na forma de exportação de peças e componentes de sistemas de armas.
Outros tipos de transações de compensação incluíram aquisição de equipamentos e transferências de tecnologia.
Além disso, empresas estrangeiras de um total de 8 países participaram dos programas de compensação da Coreia do Sul de 2016 a 2020.
A indigenização da tecnologia de defesa da Coreia do Sul tem aumentado constantemente. De acordo com os dados da Korea Defense Industry Association anunciados em 2021, a taxa geral de indigenização da indústria de defesa da Coreia do Sul cresceu de 70,7% em 2015 para 75,5% em 2019.
Em agosto de 2021, a DAPA revelou uma nova política industrial, conhecida como Capacidade de Defesa da Coreia, que prioriza o fornecimento de artigos de defesa fabricados na Coreia em vez de produtos de defesa produzidos no exterior vinculados a contratos de aquisição de defesa.
Essa nova política exige que todas as aquisições de defesa adotem uma cota de 80% a 20% entre produtos locais e estrangeiros, respectivamente.
Imagem de Destaque: https://defence.pk/pdf/threads/7-turkish-defense-companies-entered-top-100-defense-companies-2020.681209/
Referências Bibliográficas
https://www.airforce-technology.com/comment/turkey-domestic-defence-industry/
https://www.businessinsider.com/new-ships-jets-mark-rise-of-south-korea-defense-industry-2023-3
https://defense-korea.com/
https://www.economist.com/asia/2022/02/12/south-korea-wants-to-become-one-of-the-worlds-biggest-arms-exporters
Is South Korea’s booming defence industry here to stay?
https://www.mfa.gov.tr/turkish-defence-industry-products.en.mfa
https://www.taylorfrancis.com/chapters/edit/10.4324/9780429466793-19/defense-industry-republic-korea-richard-bitzinger&ved=2ahUKEwig4bqU6KL_AhV6pZUCHSBbBD44ChAWegQIFxAB&usg=AOvVaw1S_YtTPOuFZK9nLXbsJML3
https://www.trtworld.com/opinion/tanks-drones-jets-how-turkiyes-defence-industry-became-a-global-force-12798372
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Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública
Ótimo artigo.
Nós últimos 10 anos a BID da Turquia cresceu exponencialmente. A BID da Coréia do Sul era mais antiga, porém cresceu na mesma toada…
Para um brasileiro é triste de ver, pois este crescimento se deu enquanto nas terras brasileiras víamos a nossa BID definhar…
O plano de atrelar as pequenas empresas brasileiras da BID com grandes conglomerados da área de engenharia, caso da Mectron com a Odebrecht, da Andrade Gutierrez na construção naval, acabou com o advento da “Lava-jato”, cujas cabeças principais, Moro incluso, impediam acordos de leniência destas empresas com a AGU. A impressão é que desejavam a quebra dessas empresas.
Então, seguimos, aos trancos em barrancos, em saltos e abandonos, em soluços, geração após geração.
Já a Coréia do Sul e a Turquia sabem para onde querem ir…
O site HMD agradece o seu elogio e comentário.
Ótimo artigo,lembrando que a Coreia do Sul só produzia arroz a 60 anos atrás.Ver este tipo de artigo nos deicha muito triste mas ao mesmo tempo com o sonho de ser realizados tais feitos indústrias que estes países fizeram acontecer aqui no Brasil.