Horatio Lorde Nelson, o herói  polêmico, segundo Alfred Thayer Mahan e sir John Knox Laughton – Parte 1

de

Francisco Eduardo Alves de Almeida[1]

A biografia tem percorrido um trajeto acidentado na história. Enaltecida no passado, passou a ser desprestigiada no século XX, em razão principalmente dos ataques da Escola dos Annales. No entardecer do século passado, ela parece ter vindo para se estabelecer com maior intensidade. Interesse do público, congregado a novas pesquisas e descobertas, têm feito da biografia um gênero interessante para o leitor comum. Mesmo críticos severos da biografia como Jacques Le Goff, digno representante da terceira geração dos Annales, na introdução de sua obra magistral São Luiz, pareceu render-se à legitimidade e importância desse gênero historiográfico nos estudos contemporâneos. Diria ele em 1989 que a “biografia era o ápice do trabalho do historiador”.[2]

Nos países de língua inglesa, em especial no Reino Unido (UK), houve um enorme interesse do público no trabalho biográfico, a partir do século XIX. Segundo Peter Gay, nesse período houve um verdadeiro ‘apetite biográfico’.[3] Em razão desse interesse, muitas biografias desmascaram reputações até então intocadas, de modo a enaltecer virtudes burguesas e indicar caminhos que não deviam ser trilhados. Vivia-se no UK o chamado período vitoriano.

Por outro lado, biografias que discutissem heróis navais tinham grande interesse popular no mundo anglo-saxão, pois o poder marítimo foi o instrumento que permitiu por cerca de trezentos anos que o Império Britânico dominasse as linhas de comunicação mundiais. Esse domínio significou uma supremacia comercial relevante. Segundo Paulo Visentini “a supremacia naval também foi determinante para que a Inglaterra tenha sido pioneira no desenvolvimento capitalista industrial”.[4] Assim o mar foi fundamental para os interesses britânicos.

Por sua história naval passaram nomes que suscitam o imaginário nacional britânico e a necessidade de disseminar trabalhos biográficos sobre seus feitos. Francis Drake, Walter Raleigh, Robert Blake, George Monck, George Anson, Edward Hawke e John Jervis foram representados e construídos como heróis e formadores da Marinha Real (RN) e da própria nacionalidade britânica no século XIX, suscitando um grande número de biografias. O propósito de tal construção era claro e inquestionável: enaltecer os feitos e ações de homens tornados heróis que “construíram” a nação que surgia vigorosa, a partir do mar. Entretanto o nome mais reverenciado e biografado foi e tem sido até hoje o de Horatio Lorde Nelson (1758-1805).

Oficial de marinha com maior número de biografias escritas no UK, Nelson tem sido discutido e analisado nas escolas de altos estudos navais de todo o mundo, como o tipo ideal de “herói” e líder militar, sendo enaltecido com um belo monumento em sua memória no centro de Londres na Trafalgar Square. Sua influência no imaginário popular britânico tem sido muito acentuada.

Nascido em plena Guerra dos Sete Anos, cedo entrou para a RN, distinguindo-se em combate, até liderar as forças navais britânicas no Mediterrâneo contra a França no início do século XIX. Vencedor de três grandes batalhas navais no período napoleônico, Aboukir, Copenhagen e Trafalgar, veio a falecer nessa última. Por suas ações consideradas heróicas, teve um funeral solene na Catedral de Saint Paul, no qual compareceram o rei da Inglaterra e toda a hierarquia real e governamental. Em torno de seu nome criou-se uma aura de invencibilidade em combate e no cumprimento do dever profissional. O rei Jorge III diria logo após sua morte que “os transcendentes e heróicos serviços do Visconde Lorde Nelson permanecerão, segundo penso, para sempre no imaginário do meu povo”[5]. E assim permaneceram.

Entretanto a vida privada de Nelson estava longe de ser tão triunfal. Sua atitude perante o sexo feminino demonstrava uma imaturidade sentimental que deixava perplexos seus mais chegados companheiros. O capitão Fremantle, um de seus amigos mais próximos, disse em 1795 o seguinte: “jantei com Nelson… Dolly a bordo [o objeto de desejo de Horatio, a cantora lírica Adelaide Correglia]…ele [Nelson] se tornou ridículo com aquela senhora”[6]. Nesse ano, Nelson completaria oito anos de casado com Frances Nisbet. O grande escândalo ocorreria poucos anos depois, quando, como contra-almirante, reencontrou Emma Hamilton, esposa do embaixador britânico no Reino das Duas Sicílias, Sir William Hamilton e com ela manteve um relacionamento amoroso até a sua morte, culminando com o nascimento de uma filha, Horatia, quando Emma ainda mantinha-se casada com o sempre passivo Sir William. Um escândalo na sociedade britânica, moralista e preconceituosa, em especial com membros de seu próprio círculo. 

Emma Hamilton, Pastel de Johann Heinrich Schmidt, c. 1800, propriedade de Lord Nelson – https://en.wikipedia.org/wiki/Emma,_Lady_Hamilton#/media/File:Johann_Heinrich_Schmidt_-_Emma,_Lady_Hamilton.jpg

Ademais, Nelson desobedecia frontalmente ordens emanadas de seus superiores, se elas ferissem seus anseios de glória e honra e significassem contemporizar com seus inimigos. Em Nápoles, por ocasião da revolta jacobina em 1799 contra o rei das Duas Sicílias, Nelson aceitou a rendição dos revoltosos, quando já ocorria a prometida anistia geral. Em seguida, determinou o julgamento do príncipe Caracciolo, um dos líderes da revolta. Depois de especificada a culpa de Caracciolo pelo tribunal, concordou com sua execução pública, apesar da promessa de anistia, fato que maculou sua biografia. Apesar desses percalços, Nelson continuou a ser o grande paradigma de herói para o inglês comum. Esses pecados foram relevados em prol da defesa da Grã-Bretanha (GB) em sua luta contra Napoleão.  

Em 2005 houve grandes comemorações no UK no aniversário de duzentos anos de sua morte na batalha de Trafalgar. Foi incentivada pelo governo britânico a produção de novas biografias desse herói. O mito heróico de Nelson continuou presente, passados 200 anos de sua morte em Trafalgar. Muitas das biografias de Nelson, escritas anteriormente, já tinham se tornado clássicas, duas delas, inclusive, transformaram-se em marcos na historiografia naval. A primeira, escrita em 1895 pelo historiador britânico Sir John Knox Laughton, e a segunda pelo historiador norte-americano Alfred Thayer Mahan em 1897, exatamente no período que Peter Gay apontou como o ápice do período vitoriano no UK.

O inglês Sir John Knox Laughton (1830-1915) professor de história do King´s College em Londres foi o primeiro intelectual britânico que estudou a história naval de seu país em bases científicas no século XIX. Em 1893 tornou-se secretário e fundador do Navy Records Society, instituição de produção historiográfica que até hoje dissemina e incentiva a pesquisa de história naval no UK. Em 1907 foi elevado a cavaleiro da Ordem do Banho, vindo a ser considerado um dos mais importantes intelectuais ingleses do século XIX[7].

Seguidor do historiador alemão Leopold Von Ranke por convicção e método, Laughton escreveu cerca de vinte e três livros, sendo que três deles foram ou biografias completas ou ensaios biográficos de marinheiros ingleses. Em 1895 lançou no mercado editorial essa conhecida biografia sobre Nelson, complementada por um ensaio sobre esse personagem naval escrito em seqüência. Em toda a sua obra, Nelson aparece como o protótipo do herói nacional, responsável pela derrota naval de Napoleão, impossibilitando o desembarque francês no UK.

Além dessa visão heróica de seu personagem, Laughton foi o grande responsável pelo estabelecimento da profissão de historiador naval no UK, tradição que perdura até hoje no King´s College com pesquisadores do quilate de Andrew Lambert e Geoffrey Till. Laughton, apesar de acreditar em Deus, não era um religioso, no entanto era um conservador típico vitoriano, espelhando uma característica típica de sua classe social.

Um fato interessante era que Laughton utilizava amplamente o método comparativo em suas pesquisas, no entanto acreditava que o historiador não deveria conjeturar o futuro, tarefa que imputava aos políticos. Para ele o passado e o presente eram os instrumentos de trabalho do historiador profissional. Ele conseguiu ainda disponibilizar e organizar diversos arquivos históricos que estariam perdidos ou mesmo indisponíveis para pesquisa. Por sua atuação marcante, Laughton tem sido considerado por diversos historiadores ingleses como o pai da historiografia naval moderna.[8] 

O oficial da marinha norte-americana Alfred Thayer Mahan (1840-1914) em 1890 lançou o seu clássico livro The Influence of Sea Power upon History 1660-1783[9] no qual procurou explicar, a partir da história naval inglesa, as razões desse predomínio e como consequência, formulou uma teoria de emprego de poder marítimo muito discutida nas escolas de altos estudos navais ocidentais. Para ele o mar era o centro das disputas entre estados e, por conseguinte, quem o dominasse prevaleceria no difícil e sempre tumultuado ambiente internacional. O nome de Mahan está intimamente ligado ao da Escola de Guerra Naval norte-americana, onde lecionou estratégia e história naval por muitos anos, vindo a ser um de seus primeiros professores. Apesar de não ser historiador acadêmico como Laughton, Mahan escreveu cerca de vinte livros, a maioria abordando assuntos relativos à história, estratégia, política e relações internacionais. Em razão de suas limitações teórico-metodológicas, Mahan relutava em pesquisar documentação primária arquivística, preferindo, ao invés, utilizar obras prontas e a partir delas formular conceitos estratégicos navais. Uma dessas formulações foi o que viria a ser o poder marítimo (sea power).

Mahan foi criado em uma profunda fé religiosa protestante e seu modo de proceder era conservador e moralista, refletindo essa postura diretamente nos seus textos. No que diz respeito a sua visão de poder, ele indicou que existiam seis elementos fundamentais que compunham o poder marítimo; a posição geográfica, a conformação física, o tamanho do território, o tamanho e caráter da população e por fim o caráter do governo. No elemento caráter da população, Mahan afirmou que a propensão natural para o mar constituía um importante fator para o fortalecimento desse poder marítimo. Nesse elemento, Mahan citava freqüentemente Horatio Nelson, representante ideal desse fator, que para ele corporificava o heroísmo britânico no seu sentido mais puro. A partir das ações estratégicas e táticas desse personagem, Mahan constituiu parte de sua teoria de poder, enaltecendo a ofensiva, a batalha decisiva e a liderança em ação de combate, fatos que emanavam da personalidade de Nelson. Para Mahan, Nelson era o “herói” naval por excelência. Em razão desse interesse, Mahan escreveu uma biografia sobre Nelson em 1897 em dois volumes, que se tornou um clássico da literatura naval[10]. Como uma exceção ao seu método de pesquisa, Mahan procurou retratar a vida de Nelson, a partir de documentação primária, transformando seu trabalho em uma obra de referência. Para Mahan, Nelson possuía as qualidades que o fizeram a “corporificação” do poder marítimo da GB, daí o título de seu livro[11]. O que mais fez Mahan admirado no UK foi a sua inclinação natural pela história naval britânica e sua afeição por tudo que vinha das ilhas, apesar de ser norte-americano. Por essa biografia foi premiado e enaltecido como um dos grandes nomes da historiografia naval contemporânea[12].

Ambos biógrafos eram personagens do século XIX e assim escreviam para um público ávido por biografias de heróis, especialmente se representassem o nacionalismo inglês, seguindo uma tendência de enaltecimento de heróis típica desse século. Segundo Sabina Loriga, muitos autores do século XIX consideravam que “o espírito de uma época ou civilização não podia ser entendido a não ser por intermédio da realização pessoal de grandes protagonistas”[13] e como tal os grandes homens é que faziam a história, em uma concepção muito comum naquele período. As biografias de ambos autores vieram a se agregar a outras que reafirmaram o poder carismático e heróico de Nelson na memória de seu país, reafirmando a “aura” do personagem invencível no imaginário britânico. 

A presente série de artigos pretende pesquisar as similaridades e discordâncias entre as visões de Laughton e Mahan ao descreverem seu biografado, utilizando o método comparativo. Não se deseja escrever uma nova biografia de Nelson, ou mesmo analisar pontos obscuros de sua trajetória, mas sim discutir as percepções que Laughton e Mahan tiveram de seu “herói” e verificar se percebiam as qualidades e defeitos de Nelson da mesma maneira, apesar de provirem de países distintos, de meios sociais desiguais, de percepções de vida e de profissões diferentes.

Esta análise complementará, de modo amplo, o papel dos dois autores como historiadores do poder marítimo, demonstrando a importância dessas biografias para o estudo da história naval. Qual seria o papel do exemplo pessoal heróico nessa afirmação do predomínio naval? Como esse exemplo influenciou esses biógrafos? Quais as características de liderança de Nelson apontadas por Laughton e Mahan ? Como os biógrafos encararam as máculas reconhecidas de Nelson? De que maneira essas biografias auxiliaram a reafirmar a imagem de Nelson como “modelo de herói” para o UK?   Seria Nelson um personagem efetivamente polêmico?      

Pouco se tem discutido acerca das biografias escritas por Laughton e Mahan. Mesmo fora do Brasil poucos historiadores, notadamente norte-americanos e ingleses, chegaram a pesquisar especificamente essas biografias. Trabalhos sobre história naval, assim como pesquisas específicas sobre heróis, como percebidos pela historiografia, ainda são raros no Brasil, preteridos por assuntos mais atrativos aos historiadores nacionais.

É sempre oportuno mencionar o historiador Peter Gay que afirmou que “toda a história é em alguma medida psico-história e a psico-história não pode ser toda a história”.[14] Ele concluiu sua idéia sobre a importância da psicologia para o historiador, afirmando que “o historiador profissional tem sido sempre um psicólogo…ele opera com uma teoria sobre a natureza humana…atribui motivos, estuda paixões, analisa irracionalidades…descobre causas e sua descoberta geralmente inclui os atos mentais”.[15]  Motivos, paixões, irracionalidades e causas são o que se procurará analisar nos textos de Laughton e Mahan.

Dessa forma, o objetivo geral dessa série de artigos será comparar as biografias de Horatio Lorde Nelson escritas por Sir John Knox Laughton e Alfred Thayer Mahan, de modo a apontar similaridades e diferenças de percepção utilizando o método comparativo, de modo a demonstrar se o que Laughton e Mahan eram e acreditavam interferiu no modo como eles perceberam e escreveram sobre Lorde Nelson

A vida de Horatio Lorde Nelson suscitou interesse dos pesquisadores desde a sua morte em 1805. Sem considerar os manuscritos e os documentos arquivísticos publicados, foram escritos na forma de poemas, elogios e panfletos diversos cerca de 41 trabalhos no século XIX. Foram, também publicadas 31 biografias completas sobre ele nesse século, segundo levantamento documental e biográfico de Leonard W. Cowie[16].

A primeira biografia relevante de Lorde Nelson foi escrita quando ele ainda vivia. Ela foi escrita em 1802 por John Charnock[17] que muito o admirava, logo após a batalha de Copenhagen, tendo inclusive devotado mais de um terço do texto descrevendo essa batalha e suas preliminares. Charnock foi um voluntário na RN e utilizou extensivamente informações orais e cartas escritas por Nelson fornecidas pelo capitão William Locker. Essa biografia recebeu o título de Biographical Memoirs of Lord Viscount Nelson with observations, critical and explanatory.

A segunda biografia que merece comentários foi a escrita por James Harrison em 1806[18] logo depois da morte de Nelson em dois extensos volumes. Muito do que foi discutido por Harrison em seu vasto trabalho incluiu cartas escritas e recebidas por Nelson e parte de sua correspondência (cerca de 139 cartas) com Emma Lady Hamilton. Essa obra recebeu críticas de Laughton por discutir anedotas e informações que não puderam ser comprovadas por outros pesquisadores que trabalharam com o tema. Em que pese essas observações de Laughton, o trabalho de Harrison é bem documentado e não deve ser abandonado.

A terceira biografia escrita no século XIX que merece registro foi a escrita por Robert Southey em 1813[19]. Robert Southey ficou conhecido no Brasil por escrever uma história do Brasil sem ter visitado o nosso país, a partir apenas de documentação coletada na Inglaterra e em Portugal. O livro de Southey é considerado um clássico da literatura naval, sendo muito comentado por Peter Gay em sua grandiosa obra em cinco volumes A Experiência Burguesa da Rainha Vitória a Freud. Para sua biografia Southey baseou-se em comentários de seu irmão Tom Southey, um tenente a bordo do navio HMS Bellona, que participou ativamente da campanha do Báltico conduzida por Nelson. Além dessa fonte de informações, Southey utilizou cartas e documentos fornecidos pelo irmão de Nelson, do Duque de Clarence, Lorde Hood e Lady Nelson. 

A quarta obra destacada publicada sobre Nelson foi a compilação de suas cartas e despachos por Sir Nicholas Harris Nicolas. Nessa monumental obra de sete volumes escrita entre 1844 e 1846 Sir Nicholas compilou 3.500 cartas e despachos do herói inglês. Essa publicação é considerada a referência para quem pretende escrever uma biografia sobre Nelson[20]. Muitas dessas cartas estão arquivadas atualmente na Biblioteca Britânica (British Library). 

A quinta biografia relevante escrita no século XIX foi a de Sir John Knox Laughton escrita em 1895 que servirá de referência para esse estudo comparativo[21]. Esta obra deve ser lida em conjunto com outro trabalho de Laughton de 1899 que levou o nome de The Nelson Memorial: Nelson and his companions in arms[22].  As duas obras devem ser lidas conjuntamente, pois além de serem complementares, elas são referências para quem estuda a vida de Nelson, apresentando o resultado da investigação conduzida por Laughton que primou por seu rigor metodológico e uma pesquisa arquivística de mérito.

A sexta biografia escrita no século XIX, que merece registro, foi a obra de Alfred Thayer Mahan que será a obra de referência para a comparação com o trabalho de Laughton. Recebeu o título de The Life of Nelson: the embodiment of the sea power of Great Britain em dois volumes. Mahan nessa biografia utilizou extensivamente documentação primária, em especial as cartas de Nelson. A relevância desse trabalho reside em seu nível de detalhamento e a importância que Mahan teve e tem na estratégia naval. Sua visão de Nelson o correlaciona continuamente com a concepção estratégica naval por ele formulada, sendo assim um trabalho original e criativo. 

Embora não existam biografias de Nelson escritas no Brasil no século XIX, é importante mencionar que foi escrita no Brasil em 2009 pelo Almirante Armando Vidigal uma biografia sobre esse personagem publicada postumamente em 2011. Trabalho excepcional de síntese e reflexão, essa obra do Almirante Vidigal foi a primeira a ser escrita no Brasil sobre esse herói, que era uma referência para o autor. Tive, junto com o meu amigo e colega de turma da Escola Naval, o CMG William de Sousa Moreira. a grata satisfação de trabalharmos juntos na revisão desse livro, a pedido do próprio Almirante. O destino, como sempre implacável, nos surpreendeu com o falecimento de nosso estimado mestre e amigo antes de que ele visse seu livro lançado no mercado editorial nacional. Uma perda para mim e o William que até hoje sentimos.              

A questão central básica norteadora desta série é “de que maneira Sir John Knox Laughton e Alfred Thayer Mahan descreveram o herói Nelson em suas biografias? Seriam as percepções idênticas? Quais as diferenças entre essas percepções ?” Presume-se que ambos perceberam Nelson como militar de formas semelhantes, variando em intensidade e duração textual, no entanto na discussão de sua vida privada as visões parecem ter sido distintas. Laughton, por ser vitoriano e pouco dado a grandes paixões, procurou criticar moderadamente as “escapadas” amorosas de seu herói, em especial seu relacionamento com Lady Hamilton, que resultou em uma filha adulterina, procurando mencionar certos aspectos pouco lisonjeiros da conduta de Nelson de modo superficial ou simplesmente nada mencionando. Mahan, por outro lado, por ser um admirador explícito de Nelson procurou enaltecer com maior intensidade os aspectos militares heróicos e geniais de Horatio Nelson, ao mesmo tempo em que procurou criticar intensamente as “escapadas” de seu herói, em razão de sua religiosidade extremada e conservadorismo social exagerado.

Como dito em 1889 Sir John Knox Laughton lançou no mercado editorial britânico Nelson, seu primeiro trabalho biográfico sobre esse herói naval inglês. Livro baseado em larga documentação primária, tornou-se uma obra fundamental para quem trabalha com a vida de Nelson. Sete anos depois, Laughton lançou o seu segundo trabalho biográfico sobre esse personagem, The Nelson Memorial,[23] um “complemento ao trabalho de 1889”, segundo suas próprias palavras.[24] Ao todo foram 240 páginas divididas em 11 capítulos para o Nelson e 351 páginas em oito capítulos para o The Nelson Memorial.

   Foi um trabalho apoiado em provas coletadas durante a pesquisa, fundamentalmente a correspondência pessoal de diversos personagens que conviveram com Nelson e nas próprias missivas do herói com pessoas de seu relacionamento. Foi, com certeza um trabalho rigoroso e científico por parte de Laughton, sempre preocupado com o método histórico.   

Por outro lado, a vida de Nelson para Laughton se inseria como um estudo de caso típico, ao procurar demonstrar a singularidade de sua personalidade e ações e o mais interessante, demonstrar o ponto de vista de Nelson sobre determinado fato ou situação, quase como a descrição de um caso extremo, dentro do universo naval britânico no século XVIII. Nelson, para Laughton, era a “corporificação do valor, heroísmo, patriotismo e devoção”.[25]

Quanto ao contexto da época em que Nelson viveu, Laughton procurou inseri-lo no ambiente naval e social do período, apontando as escolhas, as incertezas e as opções oferecidas a ele durante sua carreira naval, além de seus sentimentos em relação a outros personagens.

Seu modo de pensar vitoriano o fez refletir sobre se determinado ponto discutível da vida de seu herói deveria ser explorado ou simplesmente evitado. Laughton se encaixou perfeitamente no que Gay afirmou ser a prática de respeitar a invasão de privacidade de olhos indiscretos, ocultando ou pouco discutindo casos de cobiça, fraqueza extrema ou sensualidade do seu biografado. As experiências erótico-amorosas  de Nelson foram pouco discutidas por ele, ao contrário de Mahan. Afinal, pode-se imaginar Laughton pensando consigo mesmo “por que expor aspectos amorosos de Nelson, se o mais importante foi o que ele realizou em defesa da GB?.

Da mesma forma, como mencionado, Alfred Mahan lançou o seu livro The Life of Nelson. The embodiment of the sea power of Great Britain em dois volumes em 1897, um ano depois do The Nelson Memorial. O primeiro volume, que abarcou o início da vida de Nelson até o choque com o almirante Lord Keith, seu comandante no Mediterrâneo em 1799, totalizou 454 páginas em 13 capítulos. O segundo volume abarcou desde 1799 até a sua morte em Trafalgar, perfazendo 398 páginas com mais dez capítulos.

Sua preocupação em detalhar os diversos aspectos da vida do herói naval foi maior que a de Laughton, mais preocupado com a uniformidade biográfica. Mahan procurou apontar Nelson como um caso extremo, ao indicar a excepcionalidade de sua personalidade e de suas ações, além de seu universo, por meio de sua documentação ativa. O envolvimento de Mahan foi total, quase um casamento. Considerando sua falta de experiência e pouca propensão a pesquisa arquivística, sua biografia foi um trabalho monumental, trabalhoso e paradigmático. Para Mahan, a biografia de Nelson tinha como propósito “apresentar os traços [de Nelson] em sua totalidade, sem suprimir nada e em proporções relativas devidas para produzir sem embaçar ou distorcer aspectos vistos por lentes imperfeitas”[26]. Estudar-se Nelson e a Marinha britânica do século XVIII sem o livro de Mahan é uma lacuna importante em qualquer pesquisa.

Por certo, algumas vezes, o estilo rebuscado das palavras no texto dificultava o entendimento do que ele efetivamente desejava. Como exemplo, ao descrever como Nelson se sentia em relação ao amor, Mahan procurou não citar Emma explicitamente, mas por detrás de suas afirmativas ela lá se encontrava todo o tempo. O mais interessante era que Mahan estava descrevendo o casamento de Nelson com Frances Nisbet e não sua futura relação com Emma[27].

Seu texto chega a ser excessivamente laudatório do desempenho profissional de seu herói, isso não significando que perdoasse as escapadas sexuais de Nelson e seus erros de julgamento em certas ocasiões. Com uma personalidade “misturada com fortaleza e fraqueza, com grandes erros e virtudes, porém com um charme por todos percebidos”[28] Nelson era seu modêlo. Pode-se perceber claramente sua admiração explícita pelo seu biografado. Laughton foi mais contido que Mahan, embora o admirasse ao extremo. Disse Mahan que “raramente um homem foi mais favorecido no seu tempo de existência e nunca tão afortunado no momento da morte”[29] que Nelson.  Seu modo de pensar teve reflexos diretos na descrição, em especial na sua análise da conduta de Nelson em relação a Emma. Suas críticas sobre essa conduta foram mais contundentes que as de Laughton, fruto de sua religiosidade extremada que pouco perdoava desvios de conduta. E essa parece ser uma grande diferença em relação a percepção que Laughton teve de seu herói, pelo menos naquilo que foi escrito. Por certo, por provir de uma outra cultura, a norte-americana, pouco influenciada pelo modo britânico vitoriano de ser, Mahan não economizou adjetivos para classificar certos atos de Nelson e de Emma. Sua religiosidade e moralismo tiveram maior impacto no seu texto e isso não foi escondido por ele, demonstrando claramente que a imparcialidade, embora procurada por qualquer historiador, é de difícil controle. Como qualquer ser humano  o historiador é um produto de seu tempo e de suas experiências de vida.  

Seja qual for a interpretação mais conveniente, se a de Laughton ou Mahan, deixo aos leitores a decisão de qual explicação será a mais conveniente e pertinente. Como sempre os heróis são referências nem sempre compreensíveis. Ao final da série talvez os leitores tenham uma compreensão de quem era esse homem que continua sendo um farol para todos os marinheiros do Mundo. Talvez com esses artigos o leitor possa compreender que nem sempre os heróis são seres imaculados sem defeitos. Muito pelo contrário, são personagens de carne e osso, cometendo erros e acertos, mas no entanto com atitudes que deixaram marcas em suas sociedades, dignas de reconhecimento. Ao final da série a decisão será do leitor.

No próximo número teremos o início da trajetória de Horatio Lorde Nelson segundo seus biógrafos Alfred Thayer Mahan e John Knox Laughton.

*Imagem em destaque:

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Young_Nelson.jpg


[1] Oficial de Marinha graduado em Ciências Navais pela Escola Naval (1978) . Graduado em História (UFRJ), com  mestrado e doutorado em História Comparada (UFRJ) e pós-doutorado em Ciência Política pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Coordenador e Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval. 

[2] BORGES, Vavy Pacheco. Grandeza e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 209.

[3] GAY, Peter. O Coração Desvelado. A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. V.4. Trad: Sergio Bath. São Paulo: companhia das Letras, 1999, p. 171.

[4] VISENTINI, Paulo Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. História do Mundo Contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2008, p.19.

[5] HARRISON, James. The Life of honorable Horatio Lord Viscount Nelson. V.1. London :Ranelagh Press, 1806, p.2.

[6] MORRISS, Roger. Nelson. The Life and Letters of a hero. London: Collins & Brown, 1996, p.63.

[7] SCHURMAN, Donald. The Educaion of a Navy. London: Cassell, 1965, p.83.

[8] LAMBERT, Andrew. The Foudations of naval history. London: Chatham, 1998, p. 61.

[9] MAHAN, Alfred Thayer. The Influence of Sea Power upon History 1660-1783. Boston: Little Brown 1890.

[10] MAHAN, Alfred Thayer. The Life of Nelson:the embodiment of the sea power of Great Britain. 2v. Boston: Little Brown, 1897.

[11] ‘Embodiment’ traduzido por corporificação.

[12] SUMIDA, Jon. Inventing Grand Strategy and teaching command: the classic works of Alfred Thayer Mahan reconsidered. Washington: John Hopkins University Press, 1997, p.xi.

[13] LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, J. Jogos de escalas: a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p.233.

[14] GAY, Peter. Freud para historiadores. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p.13.

[15] Ibidem, p. 25.

[16] COWIE, Leonard W. Lord Nelson 1758-1805, a bibliography. London: Meckler, 1990.

[17]  CHARNOCK, John: Biographical memoirs of Lord Viscount Nelson, with observations, critical and explanatory. H.D. Symonds & J. Hatchard, London, 1802. 

[18] HARRISON, The Life of the Right Honourable Horatio Lord Viscount Nelson. 2v. London: Ranelagh Press, 1806.

[19] SOUTHEY, Robert. The Life of Nelson. London: Cassell and Co, 1909.

[20] NICOLAS, Harris Nicholas. The despatches and letters of vice-admiral Lord Viscount Nelson. 7v. London: Henry Colburn, 1844-1846.

[21] LAUGHTON, John Knox. Nelson. London: MacMillan and Co, 1895.

[22] LAUGHTON, John Knox. The Nelson Memorial:Nelson and his companions  in arms. London: George Allen, 1899.

[23] Idem.

[24] LAUGHTON, John Knox. The Nelson Memorial. op.cit. p. 344.

[25] LAUGHTON, John Knox. The Nelson  Memorial.op.cit. p. 3.

[26]  MAHAN, Alfred Thayer. The Life of Nelson v1. op.cit. p. 3.

[27] MAHAN, Alfred Thayer. The Life of Nelson v1. op.cit. p. 67.

[28] Ibidem, p. 3.

[29] Ibidem, p. 2.

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