Passagem de Humaitá

de

Prof. Dr. Ricardo Pereira Cabral

Durante a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, a Passagem de Humaitá foi uma manobra perigosa para a Marinha Imperial e os comandantes da Esquadra no Teatro de Operações, o Vice-Almirante Joaquim Marques Lisboa, Marquês de Tamandaré, e o também Vice-Almirante Joaquim José Inácio (futuro Visconde de Inhaúma), recearam, com certa razão, em fazê-la, sem as devidas preparações, ou seja, como o maior conhecimento do trecho do rio em que teriam que navegar e preparar a logística.

As Fortalezas de Curupaiti e Humaitá faziam parte do complexo defensivo paraguaio de defesa da capital Assunção.

Curupaiti era um conjunto de posições defensivas, constituídas de fortificações e trincheiras que estava cerca de 5,5 quilômetros ao sul da Fortaleza de Humaitá sendo parte deste complexo defensivo. Sua ala direita estava sobre o rio Paraguai, cuja margem estava forrada de vegetação fechada, encobrindo o terreno alagado, inviabilizando um desembarque das tropas aliadas. Havia entre 32 e 35 canhões apontados para o rio, que poderiam causar grandes danos aos navios que tentassem ultrapassá-la para tentar um desembarque acima da fortificação.Além destes, havia outros 58 canhões apontados para terra, incluindo o El Crisitiano, um canhão de 12 toneladas, construído a partir dos sinos de bronze das igrejas do Paraguai, de onde se tirou o seu nome.

A artilharia estava protegida sob duas linhas paralelas de trincheiras, uma de vigilância e outra de resistência, prontas para flanquearem as colunas atacantes aliadas com viva fuzilaria. A primeira trincheira tinha pouco mais de um metro de largura e dez de profundidade. A segunda, mais elevada, seguia a escarpa estendida entre o rio e a lagoa López e tinha cerca de três metros de largura por 2,8 metros de profundidade. O lado exterior da trincheira possuía estacas afiadas e organizadas em forma de abatis, ocultando a artilharia.

A fortaleza de Humaitá foi construída em uma curva côncava afiada no rio e compreendia mais de uma milha de baterias de artilharia pesada no topo de um penhasco baixo. O canal tinha apenas 200 metros de largura e corria a uma curta distância das baterias; uma barreira de correntes pesadas poderia ser levantada para bloquear a navegação e deter o transporte sob fogo das armas. Torpedos (minas navais de contato improvisadas) poderiam ser liberados ou ancorados no córrego. Em seu lado terrestre, a fortaleza era protegida por terrenos intransitáveis e por 13 quilômetros de trincheiras com 120 canhões pesados e uma guarnição de 18 000 homens.

As operações no rio tinham que levar em consideração as variações sazonais e a falta de cartas de navegação, ou seja, as manobras dos navio couraçados e as canhoneiras tinham de ser feitas durante o período de cheia e pelo trecho do rio mais próximo à fortaleza.  Outras dificuldades eram as correntes que os paraguaios lançaram de uma margem a outra nas proximidades de Humaitá e de torpedos (minas aquáticas de contato improvisadas). Todos esses obstáculos era batido por fogos das fortalezas e as margens foram fortificadas de modo a não permitirem a aproximação de pequenos barcos ou chatas para um assalto anfíbio com chance de sucesso. A maior preocupação da Marinha Imperial era fazer a passagem sobre Curupaiti e depois não conseguir avançar para fazer a passagem por Humaitá, ficando presa no trecho de rio entre as duas fortalezas.

O rompimento do Impasse

A derrota na Batalha de Curupaiti (22/9/1866) levou D. Pedro II a promover uma série de mudanças no comando das forças brasileiras. O General Luís Alves de Lima e Silva, Marquês de Caxias assumiu o comando das Forças Brasileiras, a fim de superar as divisões existentes entre os generais brasileiros, e destes com os aliados Bartolomeu Mitre (Argentina) e Venâncio Flores (Uruguai).

Em 2 de dezembro de 1866, o Vice-Almirante Joaquim José Inácio, Visconde de Inhaúma, assumiu o comando da Esquadra em substituição a Tamandaré. As forças navais continuaram a bombardear a fortaleza (sem grandes resultados), fazendo pequenas incursões e o reconhecimento do rio afim de possibilitar a passagem e a realização de um assalto as margens do rio.

A questão logística

Além do pouco conhecimento a cerca daquele trecho do rio, havia dificuldades logísticas a serem superadas.

Não haviam estradas e os caminhos carroçáveis ou tropa de mulas levavam meses para chegar ao Teatro de Operações, a única opção viável era pelo rios da Prata, Paraná e Paraguai.

Munições e suprimentos vinham do Rio de Janeiro trazidos por navios a vapor.

Afonso Celso de Assis Figueiredo, Visconde de Ouro Preto, Ministro da Marinha, atendendo as demandas de Tamandaré e Joaquim Inácio, disponibilizou meios para a construção de um pequeno arsenal, com uma oficina mecânica e um estaleiro, na Isla del Cerrito, próximo a foz do rio Paraguai, para realizar reparos. Também foram construídos armazéns, um depósito de carvão, um moinho de pólvora e um hospital.

Outra providência foi o estabelecimento de serviço de vapores a fim de abastecer e atender, exclusivamente, as necessidades da Marinha. Vejam a dificuldade que era abastecer a esquadra que estava em operação de guerra nos rios Paraná-Paraguai, trecho do Rio de Janeiro até o porto de Montevidéu (Uruguai) tinha 1099 milhas náuticas (2.036 km). De Montevidéu seguiam até Corrientes (Argentina) pelo rio da Prata-Paraná, mais 651 milhas (1.206 km), de lá seguiam para Cerrito 14 milhas (26 km).

Passagem de Curupaiti

Em 5 de agosto de 1867, Mitre apresentou um plano para capturar a Fortaleza de Humaitá. Os principais pontos do plano era que as forças terrestres deveriam flanquear a fortaleza, enquanto que as forças navais deveriam forçar a passagem. Após conferência com os Aliados e com os comandantes brasileiros, Caxias, comandante-em-chefe das Forças Imperiais, ordenou que o almirante Joaquim José Inácio forçasse a passagem sobre Curupaiti, apesar do argumentos em contrário deste.

As 6:40 h do dia 15 de agosto de 1867, a Esquadra Imperial, sob o comando do vice-almirante Joaquim José Inácio iniciou a operação de passagem da Fortaleza de Curupaiti. A Esquadra se constituía de 10 encouraçados, 8 canhoneiras e 3 chatas, dividida em duas divisões:

– a 1ª Divisão: couraçados Cabral, Herval, Silvado e Lima Barros e a canhoneira Barroso;

– a 2ª Divisão: couraçados Brasil, Mariz e Barros, Colombo e Bahia e a canhoneira Tamandaré.

Acompanhava as duas divisões dez navio de madeira que deveriam apoiar pelo fogo as divisões que realizavam a passagem.

Amarrado ao lado couraçado Brasil estava o navio mensageiro a vapor Lindoya. Os couraçados Cabral e Colombo rebocavam uma chata cada.

Em frente a fortaleza, o rio se dividia em dois canais: um mais profundo e de corrente mais forte, mas era mais próximo das baterias paraguaias; o outro, era mais raso e estava cheio de “torpedos” (minas aquáticas), informação que os brasileiros não possuíam no início da operação. O vice-almirante José Joaquim Inácio optou pelo canal mais profundo.

Durante a passagem, o fogo paraguaio provocou danos nos navios brasileiros. O Tamandaré foi o mais atingido e teve que ser rebocado pelo Silvado.

Em 21 de dezembro de 1867, chegaram ao Teatro de Operações três monitores:  Pará, Alagoas e Rio Grande. Os monitores eram movidos por dois motores a vapor de ação direta, cada um acionando uma hélice de 1,3 m; tinham uma blindagem constituída de um cinturão: 51 – 102 mm, a torre de 76-152 mm e o convés de 12,7 mm; deslocavam 500 ton; tinham uma borda livre de 30 cm; como armamento possuíam um canhão cano curto Whitworth de 70 libras, instalado em uma torre rotativa, a velocidade máxima era de 8 nós e levara uma tripulação de 43 homens.

Em 13 de fevereiro de 1868, os três monitores encouraçados, o Alagoas, o Pará e o Rio Grande, além de outras embarcações de madeira realizaram uma nova passagem por Curupaiti, vindo se juntar ao restante da Esquadra que estava em “Porto Elisário”, na verdade era um ancoradouro, longe dos fogos inimigos, que os navios da marinha Imperial usavam para se abastecer.

A operação teve início às 21:30 h, com os vapores de madeira abrindo fogo contra a fortaleza de Curupaiti enquanto os monitores realizavam a travessia.  A operação durou cerca de uma hora.

Por que entre a primeira e a segunda passagem decorreram quase seis meses?

Novo problema tático

https://pt.wikipedia.org/wiki/Passagem_de_Humait%C3%A1#/media/Ficheiro:Emergency_tramway_past_Curupayty.png

Após a primeira passagem o Vice-Almirante José Inácio enviou a canhoneira blindada Barroso para fazer um reconhecimento das águas próximas a Humaitá rio acima, constatando-se a existência de três correntes paralelas, flutuando em pontões, bloqueando o rio.

Um navio couraçado a vapor poderia romper as correntes? teoricamente sim, mas não se sabia o diâmetro das correntes e tinha que se levar em consideração a velocidade necessária para rompe-la e a corrente contrária do rio.

O Visconde de Ouro Preto colocou o problema tático nos seguintes termos, os navios teriam que avançar em fila única no canal estreito: se o primeiro não conseguisse romper a corrente, não poderia voltar nem virar, nem recuperar-se o suficiente para uma segunda tentativa. Os navios ficariam presos sob a mira dos canhões de Humaitá. O bloqueio dos navios da esquadra nas correntes dariam oportunidade aos paraguaios de tentarem abordar a(s) embarcação(ões) que ficassem presas nas correntes. Outras abordagens alternativas, sugeridas por Mitre, como o de cruzar as correntes, com o envio de um pequeno destacamento, apoiado pela artilharia ou render a casa de corrente ou explodi-la se quer foram considerados. A paralisia da esquadra entre as duas fortalezas deu início a novos embates entre a Marinha e o Exército, e entre os brasileiros e Mitre.

Ouro Preto determinou a construção de uma linha de abastecimento através do Chaco, com dois pequenos ancoradouros improvisados “porto Palmar”, onde os navios de madeira estava ancorados, situado abaixo da Fortaleza de Curupaiti e o já citado “porto Elisário” (rio acima); ambos estavam fora do alcance dos canhões paraguaios. Durante um tempo era possível navegar por um riacho chamado Quîá. Desse ponto a Marinha Imperial, com grande esforço, construiu uma ferrovia. A princípio movida por tração animal, mais tarde por um motor a vapor improvisado, a linha carregava artilharia, pequenos barcos a vapor, munição, carvão e outros suprimentos. Esta linha de abastecimento transportava cerca de 65 toneladas de suprimentos por dia, seus vagões ficavam quase flutuando no chão pantanoso

As instalações do “porto Elisário” era precárias. Os navios estavam a salvo dos canhões de Humaitá, mas as condições sanitárias eram, no mínimo, precárias expondo as tripulações as doenças.

Durante todo o tempo em que os navios da Marinha Imperial ficaram entre as duas fortalezas, Humaitá foi bombardeada e o foram feitos reconhecimentos no trecho do rio em que a passagem deveria ser feita.

O sistema de correntes de Humaitá tinha uma fragilidade que foi constatada pelos brasileiros. A doutrina militar do período, determinava que uma barreira de correntes nunca deveria repousar sobre suportes flutuantes ocos, pois o inimigo poderia facilmente afundá-los. O ideal era que a corrente estivesse presa a suportes flutuantes sólidos, como toras grossas de madeira ou mastros de navios condenados. No entanto, as correntes lançadas pelos paraguaios eram apoiadas em canoas, e em três pontões. Por três meses, os encouraçados brasileiros atiraram nesses pontões e canoas, afundando todos eles, levando a corrente para o fundo, já que o rio tinha cerca de 640 m de largura, e a corrente não podia ser esticada sem suportes intermediários. A corrente foi assim enterrada sob a lama do rio, não oferecendo mais nenhum obstáculo para a navegação.

Passagem de Humaitá

Como a Esquadra Imperial não recuava, os paraguaios retiram os canhões pesados de Curupaiti e reforçaram as posições Humaitá. Na localidade de Timbó, foi instalada uma nova bateria, com 6 canhões de 8” e 8 de 32 libras.

O Exército Imperial, liderado por Caxias, iniciou uma manobra visando flanquear Humaitá e isolá-la por terra na altura de Tayí.

A Marinha Imperial acabara de receber os já citados monitores fluviais blindados Para, Alagoas e Rio Grande fabricados no Arsenal do Rio de Janeiro. O rio havia subido com as cheias e o cenário estava propício para a passagem, mas o Vice-Almirante José Inácio considerava que não era possível. A decisão estava tomada, o chefe de divisão Delfim Carlos de Carvalho se voluntariou para comandar a operação.

Em 19 de fevereiro 1868, antes da movimentação dos navio, o General Argolo liderou uma ação diversionária para atrair a atenção dos paraguaios.

A tática utilizada seria diferente da utilizada em Curupaiti, os navios avançariam de madrugada, aos pares, e após a passagem de cada dupla foguetes de sinalização seriam lançados pelo navio maior. A ordem de batalha foi a seguinte:

– Encouraçado Barroso e monitor fluvial Rio Grande;

– Encouraçado Bahia (nau capitânea) e monitor fluvial Alagoas.

 – Encouraçado Tamandaré e monitor fluvial Pará.

Um fato a se destacar foi quando o Bahia e o Alagoas passavam pela artilharia paraguaia um tiro cortou o cabo pelo qual o Alagoas e o Bahia estavam presos, que acabaram se separando. Às 4:50 h, o Bahia seguiu em frente, mas o Alagoas teve que descer o rio. O Alagoas recebeu ordens de abandonar a tentativa; mas o 1º Tenente Joaquim Antônio Cordovil Mauriti ignorou as ordens e avançou sozinho contra as barreiras. Um tiro das baterias danificou seu motor e teve que suspender a passagem pela segunda vez. Após os reparos, o Alagoas fez nova tentativa de avanço, o monitor ficou sob fogo da artilharia paraguaia por duas horas e assim permaneceu até as 5:30 h quando conseguiu atravessar.

Os encouraçados Lima Barros e Silvado bombardearam as posições paraguias. Enquanto isso, as forças terrestres lançaram um ataque diversionário na posição Cierva. Os paraguaios previram que a tentativa brasileira poderia ser feita durante a noite e, ao detectar o avanço dos encouraçados, soltaram foguetes ao longo da superfície da água para iluminar o rio e abriram fogo. Os paraguaios acenderam fogueiras em três pontos distintos em pontos das margens do Chaco visando confundir os pilotos. No período da passagem, o nível do rio estava elevado, havia de 12 a 15 pés de água sobre as correntes, facilitando a passagem da esquadra. Enquanto os navios se mantinham perto do banco do Chaco, a maioria dos tiros atingiram a praia. Mas mesmo assim, os navios foram atingidos várias vezes.

Os brasileiros não sabiam que os paraguaios tinham estabelecido uma outra bateria a alguns quilômetros do rio em Timbó, quando eles passaram, a artilharia causou tanto danos à esquadra, quanto em Humaitá. Este fato ocorreu porque esta bateria estava mais próxima da superfície do rio. Enquanto o Alagoas passava por Timbó, cerca de 20 canoas partiam da margem com a intenção de abordá-lo, ao serem avistados forma sendo metralhados pelo monitor e após pesadas baixas recuaram.

Considerações finais

A Passagem de Humaitá foi um grande feito da Marinha Imperial, rompendo um impasse que já durava meses e abrindo caminho para a invasão de Assunção. No entanto, o êxito da Esquadra não foi acompanhado por operações mais ousadas em terra que possibilitassem destruir as forças de Solando Lopéz, que conseguiu retirar uma parte das tropas e abandonar a capita para se empenhar numa resistência sem sentido.

Imagem de Destaque: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:A_Passagem_de_Humait%C3%A1.jpg

Bibliografia

DORADIOTO, Francisco. Maldita Guerra. Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.

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FIGUEIREDO, Afonso Celso (Visconde de Outro Preto). A Marinha de Outrora. Edição Kindle. Editora RCMP, 2016.

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FRAGOSO, Augusto Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Vol. 3. Rio de Janeiro: Bibliex, 2010.

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Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.

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