O Épico Samurai da Guerra Genpei (1180-1185)

de

Prof. Esp. Douglas Magalhães Almeida

O arquipélago japonês é repleto de histórias de guerras fabulosas de seus samurais, mas possivelmente o mais memorável conflito tenha sido a Guerra Genpei, ocorrida entre clãs nas origens do status samurai entre 1180 e 1185. Narrada através dos séculos, a conhecemos através do épico escrito chamado Heike Monogatari, ou O Conto dos Heike.

O Heike Monogatari é um registro em forma de prosa narrativa que foi compilado a partir das histórias recitadas por uma tradição oral de monges errantes e cegos Biwa Hôshi, que atravessavam o império contando inúmeras histórias para ganharem a vida por onde passassem. O primeiro monge budista conhecido a recitar a história da Guerra Genpei foi Shôbutsu, que vinha da tradição religiosa do secto Tendai, ainda próximo ao ano de 1220. A partir dali diversos outros chegam a ser citados fazendo a narração do evento que em forma de lirismo musical era chamado de Heikyoku (literalmente Música dos Heike). Dentre eles podemos citar Akashi Kakuichi (1300-1371), fundador da Escola Ichikata de Biwa Hôshi, que teria feito a primeira escrita da tradição oral sobre a guerra.

Compilado de uma coleção de histórias orais recitadas por monges errantes, a obra tem um forte tom religioso que enfatiza aspectos do Budismo como “transitoriedade” e “impermanência”, além de se fundar nas noções sobre o Dharma, o ensinamento de Buda, e no Karma, ou as consequências das ações individuais. Para além disso, é talvez o épico mais proeminente no Japão nas fontes documentais sobre a história dos samurais, trazendo acontecimentos históricos romanceados para erigir conceitos de heroísmo marcial, abordando temas como coragem, crueldade, poder, glória e sacrifício.

Apesar de repleto de liberdades poéticas, mitologias, personagens fictícios para enaltecer virtudes marciais e momentos bastante romanceados, a obra relata um momento único na história japonesa e dos samurais. A Guerra Genpei culminou de enfrentamentos atritosos entre dois clãs principais: Minamoto, também chamados de Genji; e os Taira, também chamados de Heike; o que dá nome à guerra usando as primeiras sílabas de cada, “Gen” e “Hei” (que foneticamente assume a forma de “Pei”). Ambos os clãs, unidos às casas familiares de seus vassalos realizaram aquele que seria o maior conflito de toda a história do Império Yamato.

A rivalidade entre os clãs havia se enraizado devido a dois episódios: a Rebelião de Hôgen (1156) e a Rebelião de Heiji (1159), quando os Minamoto perderam as graças imperiais e os Taira ascenderam no poder de forma que o patriarca Taira no Tadamori (1096-1153) conseguiu o privilégio de ter um filho com uma concubina imperial importante, dando a luz à Taira no Kiyomori (1118-1181). Este jovem, descendente de uma família de samurais caçadores de piratas no Mar do Japão, frequentou desde sua infância o Palácio Imperial de Kyoto, conseguindo inclusive se inserir na família imperial e posteriormente até casar sua filha com o Imperador Takakura (1161-1181), assim se tornando sogro do monarca e avô do futuro príncipe regente.

Taira no Kiyomori foi o primeiro guerreiro a chegar ascender a um cargo aristocrático em 1167, assumindo como Ministro-Chefe do Governo Imperial, ou Daijô-Daijin. Como tal, ficou marcado como uma figura manipuladora e arrogante que conforme a romantização do Heike Monogatari elucida, o próprio se sentia acima dos ensinamentos de Buda, o que de acordo com a narrativa teria causado a desgraça que se abateria sobre o clã.

A despeito das características narrativas a guerra começa motivada por uma disputa imperial pelo trono entre o genro de Taira no Kiyomori e o Príncipe que teve a regência usurpada, Mochihito. Sabendo da mobilização desse último para avançar sobre a capital, Kiyomori ordenou sua prisão e tropas se enfrentaram na primeira batalha, em 1180 sobre a Ponte do Rio Uji, enquanto o príncipe Mochihito tentou inutilmente se esconder em um templo budista aliado.

Apesar da derrota, essa fagulha levou ao clã Minamoto mobilizar suas tropas e de seus aliados na tentativa de desbancar o poderio Taira, em uma sequência de batalhas que registram momentos únicos de táticas e estratégias que inspiraram samurais mesmo séculos posteriores. Dentre esses destacamos quatro eventos.

Em 02 de Junho de 1183 ocorreu a Batalha de Kurikara, nome do vale por onde as tropas dos Taira, até então vitoriosos, avançavam, mas foram enganados ao verem diversos estandartes de clãs sobre as montanhas dando a entender que o inimigo tinha superioridade numérica. Enganados, combateram ao entardecer as forças de Minamoto no Yoshinaka quando um rebanho de touros raivosos com palha em chamas presas em seus chifres avançaram em fúria esmagando os Tairas desmoralizados em fuga. Essa batalha marcou a mudança na vitória durante a batalha para os Minamotos.

Depois em 09 de fevereiro de 1184, um desenrolar dramático ocorreu dentro do clã Minamoto, quando Minamoto no Yoshinaka resolveu unir suas tropas para tentar disputar em campo de batalha a liderança do clã. Nesse dia, sobre novamente a ponte do Rio Uji, quase quatro anos depois do início da guerra, desembainhou sua katana para enfrentar os irmãos Minamotos, Noriyori e Yoshitsune, que defendiam a honra de seu patriarca. A batalha terminou com a fuga de Yoshinaka para Kyoto, onde na Batalha de Awazu enfrentou as tropas de ambos, até ser derrotado.

Em 22 de março de 1185, já tendo passado o falecimento de Taira no Kiyomori por uma doença terrível que o deixara com forte febre, os Taira haviam se refugiado em um palácio improvisado para seu herdeiro Príncipe Antoku e em fortificações na ilha de Shikoku. Ali ocorreu a Batalha de Yashima, na região que é hoje Takamatsu. Perseguidos pelos Minamoto, conseguiram fugir acossados até seus navios e se lançar ao mar afim de navegar para as ilhas mais ao sul. Nesse momento em que os Tairas estavam embarcados um novo personagem heroico surge, Nasu no Yoichi, que de acordo com o épico foi capaz de atirar a uma distância fantástica sua flecha contra um leque sobre um dos mastros inimigos assim os desmoralizando mesmo diante dos Deuses dos Ventos. Este ficou sendo considerado o maior arqueiro do Japão, mantendo sua referência até hoje na cultura japonesa.

Por fim, seguindo a perseguição aos navios do clã Taira que se dirigiam para se refugiar em suas fortalezas localizadas na ilha mais ao sul, Kyushû, em 25 de Abril de 1185 os Minamoto cercaram as naus inimigas na grande batalha da Baía de Dan-no-Ura, no estreito de Shimonoseki. O combate envolveu navios sendo abordados com combates nos conveses pelos samurais e saraivadas de flechas atiradas contra os barcos de ambos os lados. O desfecho se deu quando pela tarde o Taguchi Shigeyoshi, comandante dos Taira feito refém, se rendeu desistindo e afirmando que em um dos navios estava Antoku, o príncipe regente neto do falecido Taira no Kiyomori. Assim, Minamoto no Yoshitsune saltou pelos navios até alcançar a embarcação, que em um momento dramático levou ao príncipe e sua avó, a viúva Taira no Tokiko, se lançarem juntos nos mares revoltosos abraçando a espada sagrada relíquia da casa imperial, seguido do suicídio massivo do clã que não desejava ser capturado pelos Minamoto.

Essa última batalha é também o final da Guerra Genpei, possuindo um teor ainda mais romantizado que boa parte dos capítulos da obra e dando um ar repleto de símbolos e mitologias, como narra a origem sobre os Heikegani. A lenda dessas criaturas fabulosas é de que os Taira que se lançaram ao mar, afundaram com suas armaduras, e devido a sua raiva e o karma deixado pelo patriarca Taira no Kiyomori, não teriam sido capazes de morrer mesmo sob as ondas. Assim, os carangueijos que devoraram seus corpos assumiram o espírito de ira desses samurais, trazendo em sua carapaça o que parece ser o semblante de um homem irritado. Esse mito está baseado em uma espécie de carangueijos da região de Shimonoseki que de fato têm esse aspecto de rostos em suas carapaças nas costas.

A vitória do Clã Minamoto e de seus aliados representa mais do que o fim de um longo conflito dos primeiros samurais do Japão, esse momento inaugura toda uma nova configuração histórica, política e social no arquipélago. Com a morte do príncipe Antoku o trono imperial passa a ser assumido por um novo monarca indicado pelo patriarca vitorioso Minamoto no Yoritomo, o qual recebe diversas graças como o título de Seii-Tai Shôgun em 1192, fundando a partir da cidade de Kamakura o primeiro Shogunato no Japão. Seu governo se caracteriza com o ápice da ascensão dos samurais como uma aristocracia marcial separada da aristocracia cortesão ligada à Casa Imperial, assim assumindo de facto as decisões político-administrativas e militares no âmbito interno e externo para o Império Yamato.

O evento da Guerra Genpei se tornou ainda mais marcante pela forma como sua história romanceada foi difundida através das eras, não só pelos cantos de monges Biwa Hôshi, como também por pinturas de Yamato-e, ilustrações de impressões coloridas por blocos de madeira no estilo de Ukiyo-e e através de peças vívidas de teatro Noh e Kabuki. Ainda houve grande incentivo durante o período Edo (1603-1868) por Tokugawa Ieyasu afirmar sua descendência a partir da linhagem dos Minamoto que lhe renderia a legitimação para se declarar fundador do terceiro Shogunato. Em seu tempo houve estímulo ao Tôdô, as guildas de tocadores de Biwa, difundindo para as quatro principais ilhas do Japão a canção sobre os eventos do Heike Monogatari.

Até nos tempos contemporâneos essa guerra teve um papel central na formação do pensamento japonês. Visto que sua narrativa inspirou a identidade dos samurais do período feudal, o conceito do Bushido desenvolvido em meio ao período Meiji por Nitobe Inazô, em 1900, assumiu características que eram respaldadas nos estudos de formação do nacionalismo nipônico. Naturalmente no Japão de hoje em dia é comum as crianças começarem a ler o Heike Monogatari para aprenderem o próprio idioma, enquanto admiram as histórias antigas de bravura e glória dos samurais.

Bibliografia

BRYANT, Anthony J.  Early Samurai: AD 200 – 1500.Oxford: Osprey Publishing Ltd, 2001.

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TURNBULL, Stephen. The Gempei War 1180-85: the great samurai civil war. Oxford: Osprey Publishing Ltd, 2016.

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KITAGAWA, Hiroshi; TSUCHIDA, Bruce T. The Tale of the Heike, Vol. I e II. Tokyo: Tokyo University Press, 1989.

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TYLER, Royall. The Tale of the Heike. London: Penguin Classics, 2014.

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WALKER, Brett. História concisa do Japão. São Paulo: EDIPRO, 2017.

Historiador pela UFF, especialista em História Militar pela UNIRIO. É Coordenador da Academia Nipo-Brasileira de Estudos de História & Cultura Japonesa do Instituto Cultural Brasil Japão. Realiza pesquisas no âmbito dos estudos asiáticos em especial acerca da memória e história dos samurais.

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