Um ano de Guerra na Ucrânia

de

Ricardo Cabral e Rodolfo Laterza

Introdução

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. Vladimir Putin, presidente da Federação Russa, nomeou a invasão ao território ucraniano como “Operação Militar Especial”, cujo objetivo seria a “desnazificação e “desmilitarização” da Ucrânia, bem como não permitir que o país aderisse à União Europeia (UE) e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Se o leitor está interessado em saber mais sobre as causas da guerra entre Rússia e Ucrânia, sugerimos uma leitura do ensaio “As causas históricas do conflito no Leste Europeu”, acessível no link: https://historiamilitaremdebate.com.br/as-causas-historicas-da-guerra-russo-ucraniana/.

Em um primeiro momento, a Operação Militar Especial evidenciou ser mais uma demonstração de força visando derrubar o governo de Volodomir Zelensky com a capitulação política do regime ucraniano, estabelecendo um Governo transitório favorável a negociações ditadas pela Rússia.  Um político de fortes conotações populistas, eleito com um discurso anti-corrupção e anti-sistema mais ligado a um grupo de oligarcas que financiaram sua eleição, Zelensky pretendia levar a Ucrânia a um processo irrevogável de adesão à União Europeia e à OTAN, o que em diversas oportunidades Moscou advertiu que era inaceitável.

https://www.poder360.com.br/europa-em-guerra/como-os-mapas-mostram-e-ocultam-informacoes-sobre-a-guerra/

Em nosso entendimento, trata-se de uma invasão com um objetivo político ainda não claramente definido. A fim de dar uma melhor compreensão dos eventos, dividimos a guerra nas seguintes fases:

– 1ª Fase: demonstração de força (fevereiro/março) Invasão da Ucrânia em uma ação de demonstração de força com o objetivo de derrubar o governo Zelensky e impor um governo mais simpático as demandas de Moscou;

– 2ª Fase: avanço russo (março/agosto) os russos avançaram pelas províncias de Kharkhiv, Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, apesar da resistência das Forças Armadas da Ucrânia (FAU) ocupam vastas extensões do território ucraniano. Ao mesmo tempo, Kiev realizou uma grande mobilização geral da sociedade ucraniana e, com apoio da OTAN, formou um novo exército assistido com pacotes de bilhões de dólares em armas e munições. A OTAN disponibilizou suas capacidades C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance)  por sistemas AWACS, AEW e de vigilância por satélite.

– 3ª Fase: contra-ataque ucraniano (setembro/novembro) → o novo exército ucraniano lança uma grande ofensiva e recupera territórios no eixo de Kharkiv a partir de Balakleya com reconquista de Izium, Kupyansk e Krasny Liman, espremendo as forças russas à margem direita do Rio Oskol. Na região de Kherson, após depreciação da logística russa e de centros de comando por ataques sucessivos de barragens de artilharia guiados por drones em funções ataque, vigilância e reconhecimento, as forças armadas russas recuam da margem direita do Rio Dnieper. O Kremlin, pressionado fortemente por setores nacionalistas, militares, políticos ligados ao regime e mídia local pró-guerra, reage decretando mobilização parcial em 24 de setembro, visando corrigir insuficiente efetivo militar empregado para sustentar um perímetro operacional de mais de 1300 km perante uma força militar adversária com efetivo superior em proporção de 6:1.

– 4ª Fase: os russos retomam a iniciativa (a partir de dezembro) → ofensivas limitadas em Donetsk, Zaporizhzhia e Kharkhiv que forçaram as FAU a ceder território com grande quantidade de perdas em sistemas de armas e de pessoal. Kiev decreta uma nova mobilização visando formar um novo exército. Zelensky prorrogou a lei marcial e mobilização geral, com criação de novas brigadas (em número de 22) a serem equipadas com material do Ocidente fornecido pela OTAN, com ênfase em blindados, devido as graves perdas sofridas.

https://www.poder360.com.br/analise/vladimir-putin-ve-toda-a-ucrania-como-parte-da-russia/

A partir de agora vamos detalhar as fases da Guerra da Ucrânia, para uma melhor compreensão dos eventos.

1ª Fase: Demonstração de força (fevereiro/março)

Nesta fase, as Forças Armadas da Federação Russa avançam com rapidez em território ucraniano, nas oblasts de Kiev, Sumy, Kharkiv, Luhansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson, chegando a controlar quase 40% do território leste da Ucrânia.  O avanço rápido, entretanto, complicou a operação logística, considerando que naquele momento se esperava uma rápida conclusão do planejamento estabelecido com a rendição do Governo ucraniano e um possível golpe militar ucraniano.  A operação de demonstração de força visava provocar uma completa alteração no status quo político e institucional.

A “Operação Militar Especial” avançou pelos seguintes eixos de progressão:

– Eixo Norte → progressão partindo de Belarus em direção à Kiev;

– Eixo Noroeste progressão em dois sentidos uma por Chernikov e outra a partir de Sumy tendo como direção geral Kiev;

– Eixo Leste progressão em direção geral à Kiev, em um movimento de pinça, neste eixo está a cidade de Karkhiv que foi cercada;

– Eixo Sudeste → na direção da região de Donbass, completar a conquista da região e proporcionar segurança e independência das regiões separatistas russófonas de Donetsk e Luhansk, também em um movimento de pinça e formação de saliência com flancos se estreitando gradativamente;

– Eixo Sul partindo da Crimeia em direção à Kherson, foram abertos dois eixos de progressão; em direção Norte, para Kryvyi Rih e Zaporizhzhia ao longo de duas linhas principais; de Beryslav, ao longo da margem do Rio Dnieper,l e de Snihurivka-Bereznehuvate para o Norte.

– Bloqueio naval → a Frota do Mar Negro do Mar Negro bloqueia Odessa, Berdyansk e Mariupol, essas duas cidades no Mar de Azov.

A “operação militar especial” era uma guerra limitada visando destruir e ocupar os centros de gravidade ucranianos: ocupar o centro político, derrotar rapidamente as FFAA Ucranianas e desmobilizar a população para uma guerra de resistência. No entanto, os meios militares disponibilizados estavam aquém das necessidades para se atingir os objetivos políticos e militares, além de falhas operacionais.

No entanto, os meios de combate e os efetivos militares disponibilizados, se mostraram aquém das necessidades para se atingir os referidos objetivos políticos e militares, além de falhas operacionais várias que minaram o êxito dessa primeira etapa do conflito. O efetivo militar, provavelmente, era em torno de 190 mil soldados, incluindo 45-50 mil das milícias separatistas de Donestsk e Luhansk e funcionários de empreiteiras militares privadas, notadamente a PMC (Private Military Company) Wagner

A frustração das expectativas com relação a rápida mudança de governo em Kiev fez o Kremlin reavaliar seu objetivos de guerra: concentrar seus esforços em ocupar completamente Donetsk e Luhansk, além de conquistar e manter Zaporizhia e Kerson. Kharkov passou a ser uma frente secundária, mantendo-se uma “buffer zone” ao norte da cidade e uma ocupação em zona tampão na fronteira russa, na região de Belgorod. Nessa altura da guerra, os russos evitaram o combate nas grandes cidades, buscando uma estratégia de cerco e ruptura das linhas de transporte rodoviárias e ferroviárias e de comunicação, buscando estrangular o sistema logístico ucraniano na região.

Os Estados Unidos e a União Europeia, no âmbito da OTAN, passam a fornecer material bélico inicialmente de origem soviética que estavam estocados na reserva estratégica dos países do Leste Europeu que foram integrantes do extinto bloco militar Pacto de Varsóvia, amplo treinamento militar e informações estratégicas e táticas à Ucrânia que elevaram seu nível de consciência situacional no Teatro de Operações, além da “assessoria” ao Estado-Maior ucraniano no planejamento e condução das operações.

Os Estados Unidos e seu aliados deram início a um processo de aplicação de seguidas séries de sanções unilaterais à Rússia visando debilita-la economicamente e pressionar politicamente para que cessasse a invasão da Ucrânia.

https://twitter.com/War_Mapper/status/1519104715233058816/photo/1

2ª Fase: Avanço russo (março/agosto)

A principal característica dessa fase é que, apesar do baixo efetivo, as forças russas avançaram sobre o território ucraniano em ritmo bem irregular, mas continuo, em parte devido a “rasputisa” que ocorre tradicionalmente em março e abril com a chegada da primavera e a resistência muito maior do que a esperada por parte das FAU. Cumpre ressaltar que os ucranianos possuíam o terceiro maior exército da Europa, vinha sendo treinado pela OTAN e pelos Estados Unidos há anos, além disso diversas unidade militares e paramilitares tinha experiência de combate adquirida contra as milícias pró-Rússia no Donbass desde 2014.

Nesta fase, os EUA e a OTAN começam a fornecer às FAU uma grande quantidade material bélico de maior potência (MRLS, baterias SAM, obuses, ATGMs etc), aumentaram o acesso as capacidades C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance) ampliando a consciência situacional dos ucranianos, além de “assessorar” as operações em todo o teatro de operações (TO).

https://www.businessinsider.com/ukrainians-turn-personal-vehicles-into-technicals-to-fight-russia-2022-9

Nessa fase verificamos que os ucranianos utilizaram largamente mísseis anticarro guiados (anti-tank guided missile, ATGM) como o Javelin e o TOW (EUA) NLAW (Reino Unido), mísseis portáteis antiaéreos ( man-portabl air defense system, MANPADS) como o Stinger (EUA), RBS 70 NG (Suécia) e o Mistral (França) além de vários tipos de drones (unmanned combat aerial vehicle, UCAV) com destaque para Bayraktar TB3 (Turquia) e começaram a empregar em larga escala technicals (pick 4×4 com grande mobilidade off-road que recebe armamentos, como metralhados pesadas, canhões de 20 mm, mísseis anticarro ou antiaéreo).

A OTAN intensificou sua atuação no treinamento de novas formações militares ucranianas. Nesse estágio do conflito na Ucrânia, podemos afirmar que se trata de uma guerra por procuração entre aquele bloco mm militar e os russos.

Você quer saber mais sobre C4ISR? recomendamos a leitura do estudo intitulado “A importância dos sistemas C4ISR na Guerra da Ucrânia” no link: https://historiamilitaremdebate.com.br/a-importancia-dos-sistemas-c4isr-na-guerra-da-ucrania/

O exército ucraniano, as formações paramilitares e de “voluntários” (na verdade mercenários) ofereceram poderosa resistência nos oblasts onde era grande a pressão russa. Lembramos que desde 2014 as Forças Armadas Ucranianas (FAU) estavam recebendo treinamento dos Estados Unidos e assessoria técnica da OTAN, além de estarem envolvidas em confrontos de variada intensidade em Donbass com forças separatistas apoiadas pela Rússia.

No entanto, essas unidades foram sendo sistematicamente destruídas pelo exército russo que usava ampla superioridade de fogo baseada em artilharia e bombardeios por mísseis de cruzeiro. Começam a surgir na mídia informações que unidades de forças especiais ocidentais e efetivos militares de países membros da OTAN participam da guerra como “voluntários”, agravando o cenário.

Enquanto sofria derrotas táticas no campo de batalha e resistia exitosamente em algumas áreas, Kiev promovia uma nova mobilização e, com o apoio da OTAN, preparava um novo exército mais bem treinado e equipado.

Esse período foi marcado por ações midiáticas ucraniana que elevaram a moral e justificavam os volumosos aportes de recursos feitos pelos países da OTAN, algo em torno de US$ 84 bilhões de dólares.

https://www.rand.org/blog/2015/02/rand-experts-discuss-the-options-for-ukraine.html

As forças ucranianas infligiram significativas perdas às forças russas. Uma grande vitória tática ucraniana foi o afundamento do cruzador Moskva. Outro feito foi o ataque à base de Melitopol, na Ucrânia, além de ataques a bases aéreas russas inclusive na Crimeia e no próprio território russo. Nesses dois eventos, observamos que os ucranianos revelaram capacidades técnicas até então desconhecidas, aproveitando-se por exemplo de uma falha incrível da Marinha russa em subestimar os sistemas de armas fornecidos pela OTAN e em proteger seus meios capitais e instalações.

Devido ao ritmo irregular do avanço e do volume de perdas, Moscou substituiu o comandante das tropas russas o general de exército Alexander Dvornikov pelo coronel-general Gennady Zhidko, vice-ministro da defesa.

Cumpre ressaltar que as forças russas eram uma combinação das milícias de Luhansk e Donetsk, unidades compostas por mercenários cujo maior efetivo pertencem ao Grupo Wagner, unidades da Rosguardia (Guarda Nacional) russa integradas majoritariamente por formações chechenas, batalhões de voluntários e unidades do exército regular. Este conjunto de forçar gerou problemas de coordenação e controle das unidades que refletiram em um baixo nível de interoperabilidade, pois os diversos tipos de unidades operavam muitas vezes de forma autônoma e com baixo nível de integração ou coordenação. Ademais, cumpre ressaltar que tais forças enfrentaram um exército ucraniano bem treinado, equipado e comandando, empregando efetivos e meios bem aquém das necessidades de um TO amplo e complexo. O mais interessante é que mesmo assim as forças estavam avançando.

https://forcaaerea.com.br/uav-turco-bayraktar-tb2-tem-alcance-otimizado/

Nesse momento da guerra, o comando, controle e coordenação das forças russas no campo de batalha era um desafio adverso devido a autonomia/liberdade de ação das várias formações acima mencionadas. Outro grande desafio para as forças da Federação Russa era lidar com as capacidades bastante superiores em C4ISR que a OTAN estava disponibilizando para as FAU mostrando as fragilidades e deficiências do dispositivo russo. Chamo atenção para esse ponto: conhecer o dispositivo do inimigo, identificar suas fragilidades e atacar com os meios adequados proporcionou uma grande vantagem tática ao ucranianos que iria refletir na estratégia e no planejamento das operações como veremos na próxima fase.

Esta fase finaliza com os russos controlando grandes extensões do Donbass e do sul ucraniano, estendendo além do defensável suas linhas de comunicação e a linha de contato com as forças ucranianas. O resultado desse erro estratégico é que várias extensões da linha de frente eram defendidas de maneira sumária, com forças de defesa ou com reservas estratégicas insuficientes. Existiam grandes quantidade de “zonas cinzentas” que não eram controladas, nem fortificadas. Este fato não passou desapercebido pelos ucranianos e a OTAN, que planejaram uma contraofensiva a fim retomar o território mal defendido.  

https://www.ft.com/content/f5fb2996-f816-4011-a440-30350fa48831

3ª Fase: Contra-ataque ucraniano (setembro/novembro)

Nesta fase, um novo exército ucraniano reequipado com bastante material de origem soviética legado por países do Leste Europeu, dispondo de uma grande quantidade de sistemas de artilharia ocidentais de obuses autopropulsados e rebocados (destacando-se o M-777 americano) e sistemas múltiplos de lançamento como o M270A1 Multiple Launch Rocket System (MLRS) e o M142 High Mobility Artillery Rocket System (HIMARS) e treinado pela OTAN é lançado contra os russos.

Na ofensiva, os ucranianos recuperam milhares de quilômetros quadrados de território em Kharkiv e lançam ataques ousados à Crimeia e ao próprio território russo. Um dado interessante, as FAU foram treinadas pela OTAN para a guerra de armas combinadas, mas continuavam usando táticas e formações russas típicas como BTGs (Battalion Tactical Group), conjugando táticas ocidentais com as táticas tradicionais do Exército soviético, dentre as quais destacamos:

            – guerra de armas combinadas são uma abordagem de guerra que busca integrar diferentes sistemas armas de combate (infantaria, blindados, artilharia, drones, helicópteros e aviação por exemplo) de um exército em manobra de fogo e movimento para alcançar efeitos mutuamente complementares;

            – a ordem de batalha de uma divisão blindada por exemplo, o paradigma moderno da doutrina de armas combinadas, consiste em uma mistura de unidades de infantaria, blindados, artilharia, reconhecimento/vigilância e helicópteros, todas coordenadas e dirigidas por uma estrutura de comando unificada;

– a divisão pode ser constituída de vários tipos de brigadas em que vários sistemas estão atuando de forma coordenada na conquista de um objetivo;

–  incursões com grupos de reconhecimento, sabotagem e assalto ( conhecidos pela sigla DSRG ou seja Sabotage Assault Reconnaissance Group ) nas linhas de contato e na retaguarda das forças russas. As forças paramilitares e PMC como o Grupo Wagner utilizam muito essa táctica que atualmente está disseminada no TO Ucrânia;

– concentrações de artilharia, principalmente com o emprego de obuses e MLRS), inovando no uso intensivo de drones nas função de vigilância, reconhecimento e ataque);

– o ataque padrão liderado por unidade blindadas e mecanizadas apoiadas pela artilharia guiada por drones.

https://www.strifeblog.org/2018/04/20/the-multi-domain-battle-doctrine-or-the-art-of-gambling-on-future-warfare/

Uma das coisas mais impressionantes nesta guerra é a curva de aprendizagem russa e a rapidez com que adaptam suas táticas no campo de batalha, apresentando soluções originais aos desafios das FAU/OTAN.

Cumpre ressaltar, que apesar das FAU se aproveitarem da fragilidade do dispositivo defensivo russo, pagaram um preço muito alto com perdas elevadas de material e pessoal devido à superioridade aérea e da artilharia russa.

Além das perdas territoriais, o russos também tiveram que lidar com perdas elevadas de material e pessoal.

Diante desse novo contexto, em outubro de 2022, o Kremlin trocou o comando da Operação Especial do coronel-general Gennady Zhidko para o general Sergei Surovikin. Este perante a nova situação, mudou a estratégia de guerra russa, cedendo terreno em Kharkov (nordeste) e em Kherson (sul) a fim de encurtar suas linhas de defesa e melhorar sua logística. Ao mesmo tempo preparou um nova linha defensiva com campos minados, obstáculos anti-blindados (fossos e “dentes de dragão”), principalmente ao longo do eixo de Svatovo – Kreminna e em Zaporizhzhia, reposicionando as reservas móveis e reforçando, na medida do possível, as formações na linha de frente.

Apesar do recuo e reajustamento do dispositivo, os russos não deixaram de ser agressivos, seja pelo emprego de contra-ataques, seja emprego de drones kamikaze, sistemas de artilharia dotados de munições guiadas, larga utilização de mísseis e da aviação tática.  O objetivo era degradas ao máximo os ativos militares ucranianos.

Você quer compreender melhor as mudanças promovidas pelo general Sergei Surovikin? recomendamos o ensaio “As modificações táticas e na estratégia russa introduzidas pelo General Surovikin no Teatro de Operações da Ucrânia” no link: https://historiamilitaremdebate.com.br/as-modificacoes-taticas-e-na-estrategia-militar-russa-introduzidas-pelo-general-segei-surovikin-no-teatro-de-operacoes-da-ucrania/

Em outubro de 2022, diante do novo contexto estratégico que exigia um maior empenho dos recursos russos, o Kremlin decretou uma mobilização parcial com o objetivo de recrutar cerca de 300 mil combatentes para propósitos de recompletamento, reforço das unidades em combate e fortalecimento das capacidades logísticas. A Base Industrial de Defesa (BID) russa começou a ter suas capacidades ampliadas a fim de sustentar as forças russas em combate, operando muitas vezes em regime de três turnos.  Isso é um dado interessante, pois enquanto o Ocidente estava empregando cada vez mais os seus estoques de munições e armas ao ponto de faltar alguns itens no arsenal de vários países integrantes, os russos estavam usando seus enormes estoques da Era Soviética, sem mobilizar sua BID.  

Em resposta ao avanço ucraniano, as Forças Armadas da Federação Russa começaram a atacar de forma sistemática a infraestrutura energética e de transportes da Ucrânia, além das instalações que davam suporte às FAU, ocasionando a perda de 40% de energia para o país.

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63094013

Ainda em outubro de 2022, Vladimir Putin oficializou a anexação das regiões de Donetsk e Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson ao território russo através de referendos condenados pela maioria da comunidade internacional, caracterizando uma mudança de fronteiras do espaço pós soviético.

A Ucrânia em outra ação midiática destrói parte da ponte que liga o território russo à Criméia, resultando em ataques retaliatórios e punitivos russos à infraestrutura do país, mediante emprego de drones kamikaze Geranium-2 (originalmente uma versão do Shaheed -136 iraniano) e mísseis de cruzeiro.

Em novembro, as forças russas começaram a receber os primeiros reforços, permitindo estabilizar vários pontos da linha de frente (principalmente repelindo tentativas das FAU de cercar Kreminna e avançar para Svatovo). Devido as perdas de pessoal e material as FAU/OTAN aos poucos foram perdendo a iniciativa.

A FAU/OTAN não levou em consideração a resiliência e a capacidade defensiva das forças russas. Então lançaram uma grande ofensiva em várias frentes, o avanço acontecia, mas há uma alto preço. O lançamento de uma ofensiva, sem levar em consideração o volume de baixas e perdas de equipamentos militares e as capacidades defensivas do inimigo tende a não conseguir atingir seus objetivos militares.  Esse erro custou muito caro aos ucranianos. 

https://twitter.com/JominiW/status/1620626767366209537/photo/1

4ª Fase: Os russos retomam a iniciativa (dezembro – dias atuais)

Em 11 de janeiro de 2023, ocorreu nova troca do comando russo do Teatro de Operações na Ucrânia, assumiu o atual Chefe do Estado-Maior do Exército, o general de exército Valeri Guerasimov, o qual terá como adjuntos os generais Sergei Surovikin, Oleg Salioukov e Alexei Kim. Troca de comando durante uma operação militar não é algo novo, mas os russos inovaram com tantas trocas do comandante do TO.

Durante janeiro, as forças russas retomaram a iniciativa com ações ofensivas na região de Donbass, mais precisamente em Donetsk (atacando as cidades de Bakhmut, Vuhledar, Marinka e Soledar, com destaque para a atuação do Grupo Wagner), Luhansk e em Kharkiv. A conquista de Bakhmut permitirá às forças russas avançarem em direção à Kramatorsk e Slavyansk, últimas fortificações ucranianas em Donetsk.

No entanto, atualmente, o ritmo do avanço russo é lento, provavelmente devido ao fato de não estarem empenhando todo o seu potencial ofensivo e evitarem assaltos frontais a forças ucranianas ainda superiores em efetivo e capacidade C4ISR. A maior parte dos analistas, entretanto, espera um ataque russo ainda no inverno, antes da fase da rasputisa (degelo, ainda mais problemático na primavera) o que poderia novamente prejudicar a mobilidade de suas unidades blindadas.

Importante ressaltar que a esperada grande ofensiva russa, segundo grande parte dos analistas, teria como objetivo para recuperar o terreno perdido para as FAU nas áreas em Kharkiv e Kherson, além conquistar o máximo de novos territórios a fim de consolidar o seu domínio sobre as regiões de Kharkiv, Luhansk, Donetsk, Zaporizhzhia e Kherson (justamente as regiões anexadas pelo Kremlin).

Nesta fase da guerra, unidades ucranianas estão sendo muito desgastadas pelos ataques russos e na insistência de defenderem posições mesmo diante da superioridade de fogos russa e da iminência de serem cercadas, um bom exemplo foi a batalha de Soledar e agora ocorre em Bakhmut.

https://www.forbes.com/sites/davidaxe/2022/12/24/russia-electronic-warfare-troops-knocked-out-90-percent-of-ukraines-drones/?sh=20153b57575c

Muitas das “inovações” ucranianas no campo de batalha como o emprego de UCAVs e os technicals passaram a ser neutralizados quando os russos desdobraram seus meios móveis de guerra eletrônica e cibernética, UCAVs (reconhecimento, vigilância e ataque), drones kamikazes entre outros meios que permitiram um aquisição de alvos mais rápida dando vantagens para o emprego de mísseis guiados.

 No final de dezembro, os ucranianos iniciaram uma nova mobilização (supostamente a 9ª), enquanto aguardam a chegada de mais uma grande leva de equipamentos militares do Ocidente. Dessa vez, tendo em vista o esgotamento dos estoques de material da era Soviética nas antigas repúblicas populares do Leste Europeu, a OTAN começou a oferecer uma quantidade maior do seu próprio inventário das unidades ativa: blindados, obuses rebocados e autopropulsados, sistemas MRLS, drones, ATGMs, bem como uma grande quantidade de munição, dentre outros tantos itens. Por sua vez, Kiev insiste que a OTAN lhes forneça caças, tanques, blindados de combate a infantaria, de mais munição e apoio financeiro.

O problema é que a guerra está esgotando rapidamente os estoques de sistemas militares e munições da aliança militar atlântica, comprometendo sua estratégia de defesa inclusive. Os custos desse apoio perdem cada vez mais sustentação nos parlamentos e na população dos países ocidentais.

Para mais sobre formação do novo exército ucraniano, recomendamos “sobre a formação de novas tropas nas Forças Armadas da Ucrânia” no link: https://historiamilitaremdebate.com.br/sobre-a-formacao-de-novas-tropas-nas-forcas-armadas-da-ucrania/ .

Mesmo em desvantagem, os ucranianos resistem lançando ataques contra instalações militares russas, que se não provocam grande perdas entre os russos, pelo menos elevam o moral da população e tem grande repercussão na mídia ocidental (que os governo ocidentais usam para justificar o elevados gastos militares na Ucrânia, mesmo diante da perspectiva de uma recessão econômica). Aqui percebe-se a interferência da OTAN na realização desses ataques e na condução das operações da FAU.

https://www.euractiv.com/section/global-europe/news/new-russian-offensive-underway-in-ukraine-says-nato/

Conclusão

Em nosso entendimento, consideramos que não se deve esperar avanços muito grandes por parte dos russos na provável ofensiva de inverno. O general de exército Valeri Guerasimov, a princípio, provavelmente não irá fragilizar sua linha de frente e/ou estender suas linhas de comunicação como ocorreu na ofensiva de março-junho, sabendo que as FAU/OTAN estão preparando uma ofensiva na primavera com um novo exército mais bem equipado e treinado do que os anteriores, com no mínimo mais 22 brigadas e cerca de 100 mil novos combatentes.

Os russos estão mostrando que sua curva de aprendizagem é rápida, são ousados nas decisões táticas, demonstram grande capacidade de adaptação, apresentam soluções inovadoras e tem se mostrado extremamente corajosos em buscar soluções estruturais para os problemas de desempenho no campo de batalha.

Ressalto versatilidade tática, a capacidade bélica e a resiliência da Rússia na Ucrânia. Os russos estão lutando uma guerra por procuração contra uma aliança internacional (A OTAN e seus aliados) que dispõe de maiores capacidades militares e econômicas do que as suas. Ainda não está claro quando os russos ou a Aliança Atlântica vão atingir o seu ponto culminante, mas que nesse nível de atrição esse ponto vai chegar em breve vai, só não sabemos quando.

Por sua vez as FAU tem demonstrado uma imensa capacidade de adaptação e resiliência diante de um dos mais competentes exércitos contemporâneos. Não é fácil lutar utilizando táticas que não foram praticadas em exercícios ou em jogos de guerra. O combatente ucraniano é desafiado a empregar sistemas de armas que até então lhe eram desconhecidos. Aqui existe uma dúvida real de quem opera realmente os sofisticados sistemas de armas que a OTAN fornece, ainda mais no nível de eficácia apresentado.

Essa guerra está oferecendo inúmeras lições e um campo de prova para novos sistemas de armas e táticas de guerra.

É preciso ficar atento ao resultado da ofensiva de primavera ucraniana e se em caso de um resultado desfavorável, a Aliança Atlântica manterá o seu apoio. A mesma pergunta pode ser feita aos russo, quais serão as consequências de um derrota russa na Ucrânia?

Diante da possibilidade de uma derrota militar ou da perspectiva de uma invasão da Crimeia, os russos já deixaram claro que irão usar armas nucleares. Ante essa possibilidade, quais serão as consequências do emprego de armas nucleares táticas pelos russos na Ucrânia?

Na atual conjuntura falar do fim do conflito é especulação, pois ambas forças beligerantes acreditam na solução por meios militares para angariarem maior poder de barganha e influência em uma eventual negociação diplomática a médio prazo.

Bibliografia

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Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.

Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública

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