Prof. Dr. Ricardo Pereira Cabral
– Após o fim da União Soviética, os países, de modo geral, promoveram uma redução significativa dos gastos militares acarretando na diminuição de efetivos e meios de combate;
– Os 20 anos de Guerra ao Terror, caracterizado pelo combate ao radicalismo político e religioso, fizeram com que as Forças Armadas aperfeiçoassem suas capacidades expedicionárias e suas unidades de forças especiais;
– Ao lado da redução dos efetivos investiu-se (e muito) na precisão e letalidade dos meios de combate construindo sistemas de armas muito sofisticados, altamente tecnológicos e de alto valor agregado;
– A logística das FFAA sofreu um processo de dowsizing, com muitas das atividades sendo terceirizadas;
– Os Exércitos se reestruturaram privilegiando as brigadas e a organização de forças tarefas nucleadas em brigadas e batalhões. Houve uma redução das unidade blindadas em favor das unidades mecanizadas. A artilharia rebocada praticamente foi substituída pela autopropulsada e de mísseis (MRLS). Proliferam sistemas ATGMS, MANSUP e SAM;
– Em termos operacionais as FFAA se empenharam em desenvolver suas capacidades C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance) e I2CEWS (Intelligence, Information, Cyber, Electronic Warfare and Space) a fim de ampliaram a consciência situacional no campo batalha;
– A reunião dessas capacidades visavam realizar operações de alta intensidade de armas combinadas, centradas em rede e em múltiplos domínios, mas por curto espaço de tempo;
– A destruição do inimigo, normalmente, dotado de capacidades tecnológicas inferiores, vinha pelo alto grau de eficácia dos sistemas de armas e pelo gap tecnológico e operacional;
– Aplicação de estratégias visando degradar as capacidades de resistência, comando e controle dos países-alvo, além de operações psicológicas e de informações(InformationalPsychological Operations, IPsO) visando desmoralizar e demotivar qualquer forma de oposição;
– O ressurgimento do mercenariato, por intermédio das Companhias Militares Privados, muitas das vezes atuando como braços armados dos interesses de empresas e países em substituição às FFAA;
– O novo cenário internacional levou a um processo de concentração, por intermédio de fusões e aquisições, no setor de defesa, diante da expectativa de redução das encomendas. Tal processo levou a uma cartelização das indústrias de defesa e um aumento dos preços dos sistemas de defesa na maioria dos países;
– Muitos Estados extinguiram seus departamentos de projetos de sistemas de armas e terceirizaram essa função;
– Esse processo atingiu, parcialmente, os Estados Unidos e a China;
A Guerra da Ucrânia mudou tudo isso…..
– A Rússia fez um dowsizing de suas FFAA, mas não no mesmo nível dos países europeus, também não acabou com o serviço militar obrigatório, nem com seus estoques de armas e munições do período soviético;
– Boa parte da indústria de defesa cuja produção excedia as necessidades nacionais e não encontrava mercado no exterior foi colocada para “hibernar”;
– A Guerra da Ucrânia expôs uma série de fragilidades do Exército russo em relação as suas capacidade de desenvolver operações de armas combinadas, centradas em rede e em múltiplos domínios, devido as suas limitadas (em relação a OTAN) capacidades C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance) e I2CEWS (Intelligence, Information, Cyber, Electronic Warfare and Space). No entanto, cumpre ressaltar que o Exército russo está sendo equipado com os sistemas para suprimir essa lacuna;
– Na atual conjuntura (maio/2023) verificamos que os russos estão desdobrando cada vez mais unidades de guerra eletrônica (EW) e cibernética (CW) visando mitigar as operações com drones pelos ucranianos e interceptar/bloquear as comunicações, ao mesmo tempo que ampliam suas capacidades C4ISR e I2CEWS. Tal medida aumentou a eficácia russa em combate, ainda sem uma resposta ucraniana e da OTAN para mitigar seus efeitos;
– A dimensão espacial está se mostrando extremamente importante para os exércitos em luta. Os satélites fornecem informações, localização precisa, sensoriamento remoto, comunicações e redes de internet;
– A guerra cibernética é outro ponto importante atacando os centros de comando, a infraestrutura de modo geral e as comunicações;
– O controle da informação sempre se mostrou importante, atualmente, é fundamental, ações IPSO (InformationalPsychological Operations, IPsO) utilizando os meios de comunicação de massa (as redes de relacionamento, a mídia, influenciadores etc) visando minar o moral do inimigo, disseminar informações falsas entre outros elementos. O público global é bombardeado diariamente por informações que na verdade se preocupam em difundir narrativas de acordo com os seus interesses, sem compromisso com a realidade;
– Desde 2014, o Exército ucraniano e as unidades paramilitares vem sendo treinado por países da OTAN. O interessante era que os ucranianos treinavam com táticas ocidentais em estruturas organizacionais (Batallion Tactical Group, BTG) e armamento soviético, reforçado com vários sistemas de armas da OTAN. Os russos destruíram esse exército duas vezes. Agora na 9ª ou 10ª mobilização, dependendo da fonte, o Exército ucraniano está sendo treinado e equipado completamente com material proveniente da OTAN para uma nova ofensiva;
– Os ucranianos também não abandonaram o serviço militar obrigatório, esse é dos motivos da sua resiliência diante dos russos;
– O ucranianos estão sendo fortemente apoiados pela OTAN, em uma verdadeira guerra por procuração, são sistemas de armas, assessoramento de Estado-Maior, apoio das forças especiais de países pertencentes à OTAN, capacidades C4ISR e I2CEWS que oferecem uma consciência situacional superior a utilizada pelos russo. Detalhe, nem com todo esse apoio, até o momento, fez com que os ucranianos conseguissem expulsar os russos;
– A logística ucraniana é sofrível, o treinamento oferecido pela OTAN é muito sumário, o Estado-Maior e a liderança nas unidades combatentes tem se mostrado aquém das necessidades (apesar de todo apoio que tem recebido da OTAN);
– Ainda com relação a logística, o maior problema está na imensa diversidade de equipamentos diferentes recebidos;
– A principal unidade de manobra do Exército Russo e das Forças Armadas Ucranianas, é o Batallion Tactical Group (BTG). O BTG enquanto unidade de armas combinadas, demonstrou algumas limitações em desenvolver operações em larga escala, de grande intensidade e longa duração;
– O Comando do TO e do Estado-Maior, tanto russo, quanto ucraniano, tem falhado sistematicamente no planejamento das operações, na coordenação e controle das dessas operações e entre os BTG;
– Os DSRG (Sabotage Assault Reconnaissance Group) se revelaram uma das unidades mais interessantes em combate, por serem responsáveis por uma série de missões, tais como: infiltração com o objetivos diversos de reconhecimento, designação de alvos, sabotagem, emboscadas, assassinatos, destruições entre outras ações possíveis;
– Devido ao amplo território a ser defendido pelos russos, DSRG ucranianos tem conseguido realizar operações no interior da área de segurança russa e nas proximidades da fronteira original Rússia-Ucrânia, o que evidencia fragilidades no patrulhamento realizado pela Rosgvardyia e pelas unidades paramilitares encarregadas de proteger a retaguarda;
– Ambos os exércitos falharam muito com relação as operações envolvendo blindados. Ao que parece esqueceram das lições da Segunda Guerra Mundial, da Guerra da Coréia e da Guerra do Yom Kippur, sobre a necessidade de desdobrar as unidades de infantaria, desembarcadas de seus blindados (Infantry Fighting Vehicle, IFV, ou Mechanized Infantry Combat Vehicle, MICV, dependendo de como cada país o designa) para a proteção das suas colunas blindadas;
– As unidades DSRG ou a vanguarda blindada ou mecanizada, muitas das vezes não conseguem limpar a infantaria inimiga aferrado ao terreno, em posições abrigadas, camufladas, dotadas de ATGM e MANSUP;
– O drone tem sido onipresente, em ambos exércitos. O reconhecimento e a designação de alvos só melhorou com sua a introdução em larga escala. No entanto, o drone não é uma panaceia e tem suas limitações, além do fato que as contra-medidas tem limitado o seu nível de eficácia;
o onipresente, em ambos exércitos. O reconhecimento e a designação de alvos só melhorou com sua a introdução em larga escala. No entanto, o drone não é uma panaceia e tem suas limitações, além do fato que as contra-medidas tem limitado o seu nível de eficácia;
– Os drones kamikazes (loitering munition) tem aberto novas possibilidades táticas tanto isolados, quanto em formações (enxames);
– É provável que ainda vejamos nesta guerra, drones operando em conjunto com a aviação de caça ou ataque ao solo;
– A tendência é que os exércitos ampliarem as medidas visando mitigar a eficiência dos drones com emprego de armas anti-drone, sistemas de guerra eletrônica e cibernética;
– O emprego dos helicópteros de ataque, transporte e reconhecimento, além de missões de assalto aeromóvel tem sido mais limitados, devido a ampla disseminação de MANSUP;
– A artilharia autopropulsada e de foguetes (Multiple Launch Rocket System, MRLS)continua a ter importância fundamental nas ações no campo de batalha. Aqui a concentração de fogos, tanto quanto a precisão se complementam. O massivo emprego da artilharia tem suas limitações nos estoques de granadas e foguetes, algo que até então tinha sido considerados por analistas e pelos Estado-Maior;
– Um ponto interessante é o emprego de morteiros autopropulsados, oferecendo mais uma opção de ataque;
– O emprego de drones em funções ISTAR (intelligence, surveillance, target acquisition, and reconnaissance) aumentou a eficácia da artilharia russa e ucraniana de modo geral;
– Devido a sua superioridade aérea, os russos tem empregado sua aviação de ataque ao solo com um certo grau de liberdade, limitada apenas pontualmente pelas baterias de mísseis. Mais recentemente, a VKS tem desdobrado aviões com pods de guerra eletrônica em determinados setores da linha de frente. Os sistemas antiaéreos e antimísseis tem sido os alvos prioritários da VKS;
– A ampla difusão das PMC e da diversificação de suas atribuições que vão desde a logística de modo geral, manutenção e operação de sistemas de armas. O mesmo ocorre com suas frações combatentes presentes na linha de frente, empregando efetivos que vão de operadores de forças especiais até BTGs e brigadas;
– A engenharia russa manteve a sua tradição de ser de alto nível, nas operações ofensivas levantando campos de mina e fazendo destruições a fim de limpar o terreno, lançando pontes etc. Na defensiva, construíram uma série de obstáculos para blindados como fossos anticarro, “dentes de dragão”, campos minados, estacas e ouriços de ferro, cercas de arame farpado, todos esses obstáculos batido por fogos tensos de posições fortificadas (bunkers), espaldões, trincheiras interconectadas, além do lançamento de uma série de dispositivos explosivos improvisados (IED). A engenharia ucraniana também merece destaque na criação de obstáculos, principalmente, nas áreas urbanas, na construção de bunkers e trincheiras;
– Diante dos resultados aquém dos esperados apresentados pelas FAU, a OTAN tem fornecido à Ucrânia meios cada vez mais modernos de seu arsenal, em resposta a Rússia tem começado a desdobrar as armas mais sofisticadas de seu arsenal os mísseis hipersônicos, os foguetes hiperbáricos, loitering munition (drones kamikazes), caças de 5ª Geração (Su-57 Felon), um novo MBT no estado da arte (T-14 Armata) entre outras. Estamos assistindo uma escalada, onde a Rússia não teria resposta caso a OTAN resolvesse fornecer o melhor do seu arsenal.
Conclusão
A Guerra da Ucrânia está oferecendo uma série de lições para as forças armadas de todo o mundo. A curva de aprendizagem tanto dos russos, quanto dos ucranianos (ou seria melhor dizer da OTAN) assombra pela velocidade com que conseguem assimilar novas táticas e sistemas de armas e responder visando mitigar ou anular seus efeitos.
A intensidade dos combates e sua duração na Ucrânia estão provocando uma reformulação das estruturas combatentes e logísticas das Forças Armadas. A logística precisa ser repensada a fim de dar conta das necessidades dos exércitos envolvidos em operações de alta intensidade por longos períodos.
As unidades de manobra BTG e Brigada estão mostrando suas limitações, talvez venhamos assistir o “retorno” da divisão como principal peça de manobra dos exércitos.
Blindados (MBT e IFV), artilharia autopropulsada e de foguetes, o emprego de drones e a disseminação pelo campo de batalha de unidade de guerra eletrônica são agora elementos fundamentais entre os sistemas de combate básicos dos exércitos.
O desenvolvimento das capacidades de C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance, and Reconnaissance), I2CEWS (Intelligence, Information, Cyber, Electronic Warfare and Space) e ISTAR (intelligence, surveillance, target acquisition, and reconnaissance) a fim de ampliaram a consciência situacional no campo batalha e a eficácia dos vários sistemas de armas. A reunião dessas capacidades visando realizar operações de alta intensidade de armas combinadas, centradas em rede e em múltiplos domínios, por longos períodos de tempo tornou-se premente.
Até o momento não se vislumbra uma vitória decisiva de algum dos lados ou uma solução diplomática, a tendência, neste momento, é que a guerra continue.
Imagem em Destaque: https://ecfr.eu/article/unsettled-the-impact-of-the-russia-ukraine-crisis-on-the-middle-east-and-north-africa/
Referência Bibliográfica
– WATLING, Jck. REYNOLDS, Nick. Meatgrinder: Russian tactics in the second year of the war: how they changed as lessons were learned. RUSI. 19/5/2023. Disponível no site: https://static.rusi.org/403-SR-Russian-Tactics-web-final.pdf . Acessado em 20/05/2023
– https://mil.in.ua/en/articles/russian-army-psyops-units/
– https://www.japantimes.co.jp/news/2023/04/26/world/pentagon-lessons-ukraine-china-combat/
– https://www.army.gov.au/sites/default/files/2019-11/bsp_2017_chief_of_army_history_conference_lores_1.pdf (texto muito interessante do Exército Autraliano, Recomendo!!!)
– https://www.cityam.com/ukraine-is-a-real-life-learning-curve-of-the-price-of-modern-war-and-defence/
– https://www.cityam.com/ukraine-is-a-real-life-learning-curve-of-the-price-of-modern-war-and-defence/
– https://www.cnbc.com/2023/05/19/russias-military-has-adapted-is-now-a-formidable-enemy-for-ukraine.html
Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.
“Estamos assistindo uma escalada, onde a Rússia não teria resposta caso a OTAN resolvesse fornecer o melhor do seu arsenal.”
Boa noite. Poderia citar exemplos?
Na visão do HMD, a OTAN teria uma superioridade qualitativa com os principais armamentos dos países integrantes da OTAN, principalmente dos EUA, como os blindados M1A2 Abrams, os F-35, as fragatas, os bombardeios estratégicos, isso na escala convencional.