Luciano Hickert
Os eventos ocorridos no século passado, marcados pela divisão da sociedade gaúcha a ponto do emprego de armas, ainda são pródigos em ensinamentos para a atualidade. Podem parecerem distantes, mas os fatos ocorridos em 1923 ainda refletem na cultura gaúcha, influenciando desde os lenços nos trajes típicos até o comportamento dos gaúchos nas urnas.
Em diversas partes do mundo as disputas históricas se repetem, como pode ser observado na guerra da Ucrânia ou no Oriente Médio. Nessas áreas, parece que as divisões e tensões permaneceram adormecidas, aguardando o momento para aflorarem em guerras e conflitos. No Rio Grande do Sul os conflitos de 1893 a 1895, com grande violência e crueldade, foram suplantados de uma vez por todas somente em 1923.
Passado cem anos da revolta que levou a morte de centenas de gaúchos, que peleavam entre si, ocorreu neste ano de 2023 a primeira reeleição após a chamada Revolução Federalista. Pela primeira vez, desde o Pacto das Pedras Altas, foi reeleito um governador do estado, justamente oriundo da principal cidade conquistada pelos revolucionários, da cidade de Pelotas.
As instituições estaduais, em especial a Brigada Militar, desempenharam papel central na condução da crise. Os partidos políticos e as forças de segurança lograram neutralizar os revoltosos, diminuir os efeitos sobre a população inocente e forçaram uma paz conciliadora. Diferentemente da revolução federalista do final do século XIX, não foram observados os abusos e degolas, e as hostilidades permaneceram no campo de batalha, com os maragatos desenvolvendo um combate irregular, evitando o encontro decisivo.
Não menos importante foi o papel do Exército Brasileiro, que se manteve neutro durante o conflito e logrou estabelecer o acordo possível para a época, garantindo anistia e mudança da constituição para os maragatos, e a manutenção do governador reeleito, para os chimangos. Assim, foi do Ministro da Defesa, à época, o papel de pacificador do estado, agente estabilizador das disputas.
Já com a paz acordada, seria o Rio Grande do Sul, mais uma vez, uma fonte de agitação política nos anos seguintes, que influenciaria o cenário nacional, culminando nas revoltas tenentistas da década de 1920 e na revolução de 1930. O modelo da república velha começava a ser severamente questionado a partir do Sul, com novas forças políticas demonstrando força, como será mais explicado a seguir, nesse breve resgate da história.
O Brasil, na década de 1920, politicamente estava controlado pela política do café com leite, em que se alternavam no governo federal representantes das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. Nesse acordo, eram priorizados os interesses da elite agrária do país, sobretudo das áreas mais ricas produtoras de café. O término da Grande Guerra reorganizara as relações internacionais, normalizando demanda e preços de produtos, dificultando a economia de países exportadores de produtos básicos, como o Brasil.
A crise política era também impulsionada por novas ideias fortalecidas na Primeira Guerra, como a revolução bolchevista na Rússia crise do modelo liberal. Nesse ambiente, ocorreu também a politização dos quartéis, com o surgimento de movimentos da década de 1920, como as revoltas do forte de Copacabana e a Coluna Prestes, no final daquela década.
No Rio Grande do Sul, duas correntes antagônicas duelavam pelo poder no estado. Uma de inspiração mais positivista, que se mantinha no poder desde o século XIX, com uma estrutura bem consolidada, e outra com inspiração liberal. Os liberais faziam oposição ao governo e questionavam as eleições, assim como a estrutura montada para a perpetuação no poder do Partido Republicano Riograndense (PRR), sob liderança de Júlio de Castilhos e, posteriormente, Borges de Medeiros.
Segundo Pereira, 2006, a luta política ocorrida no Rio Grande do Sul durante a República Velha estava fortemente embasada nas doutrinas liberal e positivista. O liberalismo baseava tanto a doutrina dos Federalistas 1893- 95, quanto dos Assisistas ou Maragatos em 1923. Já o positivismo foi adotado como a doutrina dos republicanos em 1893-95, e dos chimangos ou Borgistas em 1923. Além disso, o perfil autoritário das lideranças de ambas as facções facilitou a eclosão da revolução.
O movimento político-militar de 1923, também chamado como “Revolução Libertadora” ou “Revolução Assisista” teve como causa imediata as eleições para presidente do estado em 1922. O pleito eleitoral opôs de um lado Borges de Medeiros, representando o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), e de outro Joaquim Francisco de Assis Brasil, candidato por um frente única de coalização formada por três setores oposicionistas, dentre os quais se destacavam Raul Pilla e Fernando Abbot, além de diversos outros dissidentes republicanos, como os Pinheiro Machado e os Menna Barreto (FÉLIX, 1987, p. 138).
As eleições de 1922 ocorreram de forma extremamente tumultuada por conflitos e acusações de fraude eleitoral por parte de ambos os lados, mas com contundentes reivindicações advindas dos oposicionistas. Em janeiro de 1923 o anúncio oficial do pleito consagrou Borges de Medeiros como presidente legalmente eleito.
As oposições, alegando que o resultado havia sido fraudado, optaram por iniciar uma guerra civil com o intuito de convulsionar o estado e obrigar a intervenção do Presidente Arthur Bernardes na política gaúcha, depondo Borges de Medeiros. Tinham esperança de que seria possível o Governo Federal intervir no estado, contra a estrutura montada pelos de lenços brancos. Contudo, o governo estadual conseguiu assegurar o apoio federal e neutralizou o esforço maragato, que se identificava como de lenços vermelhos.
A crença dos liberais oposicionistas de intervenção federal no estado devia-se, principalmente, ao fato de que durante as eleições para presidente nacional em 1922, Borges de Medeiros apoiou a chapa de Nilo Peçanha contra Arthur Bernardes”. Bernardes acabou como vencedor daquele pleito nacional e a relação entre Borges e o poder federal ficou fragilizada (LOVE, 1971, p.216-7).
A revolta armada ocorreu através da atuação de lideranças militares de destaque em suas respectivas regiões: Honório Lemes na fronteira oeste (O Leão do Caverá), Zeca Neto e Estácio Azambuja no centro-sul e Felippe Portinho, Menna Barreto e Leonel Rocha no norte e nordeste.
As forças maragatas utilizaram a tática de guerrilha, com duas variações de combates: a guerra psicológica e a guerra de movimento. Nos estudos do Coronel Bento (2003) a guerrilha de movimento foi usada para fustigar, inquietar e confundir os Chimangos, com um poderio militar maior, pois contavam com a força da Brigada Militar, bem armada e adestrada. Já a guerra psicológica era empregada com a utilização de informações superdimensionadas, ludibriando as forças regulares acerca da capacidade numérica e bélica do exército libertador.
Um dos aspectos de destaque ao longo da guerra foi a utilização do órgão de imprensa oficial do estado noticiando os episódios da guerra civil, buscando desqualificar a atuação dos adversários do governo, construindo uma imagem negativa através da criminalização dos participantes. Uma verdadeira guerra de narrativas, com a imprensa rotulando os maragatos como bandidos, esvaziando o sentido político que os impelia às armas.
Em suas memórias, Netto (1978), afirma que a vitória na batalha de Canguçú, alguns dias antes da tomada de Pelotas, foi crucial para rearmar seu exército, com graves limitações logísticas. Nessa batalha, Netto conseguiu retirar do adversário cerca de 40 armas e algumas centenas de cartuchos. Já Pelotas estava pouco defendida, sendo alvo compensador (RIBEIRO apud BENTO,2003).
A Revolução de 1923 teve como um episódio singular a tomada de Pelotas, no dia 29 de novembro de 1923, pelas tropas do quarto Exército Libertador, comandado pelo General Zeca Netto. (MAGALHÃES, 2012). As grandes cidades da região, como Rio Grande e Bagé, não chegaram a ser ameaçadas. Pelotas foi a exceção, o que mostrou o poderio militar dos Libertadores (CARONE,1985).
Outro aspecto na tomada de Pelotas foi a neutralidade das forças federais na cidade, através do 9 Batalhão do Exército, o qual permitiu a entrada das tropas revolucionárias, não contribuindo com os rebeldes no assalto à cidade e nem sua defesa (CALDAS,1995).
O conflito armado caracterizado por guerrilhas rurais, altamente móveis, se encerrou no mês de dezembro através da intervenção do Presidente Arthur Bernardes, que enviou ao estado o Ministro de Guerra Setembrino de Carvalho para mediar um acordo de paz que colocasse um fim na guerra civil.
Os graves problemas ocasionados pela crise política fizeram com que o governo federal interviesse no estado. O governo de Borges de Medeiros foi mantido no poder, mas a constituição foi alterada. Em Bagé a paz foi selada entre as principais lideranças da oposição e forças federais. Coube a Assis Brasil o poder de ajustar os termos para a paz perante o Ministro de Guerra e o governo federal (NETTO, 1983, p.107). Assim, o governo federal reconheceu a legitimidade para a atuação dos oposicionistas no âmbito regional, e o Ministro de Guerra conseguiu assegurar um armistício. (TRUSZ, 2013, p. 22).
O pacto assinado em dezembro no município de Bagé ficou conhecido como Pacto de Pedras Altas e em linhas gerais, vedava a reeleição para presidente do estado e para intendentes municipais, e previa eleições diretas para vice-presidente. Com essas mudanças, garantiu-se uma renovação das pessoas no poder. O acordo também previa a adequação das eleições municipais e estaduais a legislação federal, garantia a representação das minorias na Assembleia e no Congresso e concedia anistia aos revolucionários (ANTONACCI, 1981, p. 110; LOVE, 1971, p.223).
Assim, um movimento que colocou gaúchos de todas as regiões do estado em clima de guerra e insegurança foi superado, e as mudanças legislativas proporcionaram a médio prazo a alternância no poder tão reivindicada por grande parte da população. Estruturas que buscavam se eternizar no poder tiveram que se modernizar e se adaptar, e ideias novas puderam ser implementadas no estado e exportadas para todo país, em especial por Getulio Vargas, uma liderança liberal surgida nesse clima de agitação política.
Os mortos de ambos os lados dos combates, em especial nas regiões da campanha, não pereceram em vão. As populações das regiões dos combates incorporaram diversos costumes até hoje são pouco estudados. Os territórios percorridos pelo Leão do Caverá e outros líderes da revolução ainda merecem ser melhor explorados, e o suor dos combatentes merece ser melhor analisado por nossos estudantes, civis e militares.
Tanto chimangos quanto maragatos tiveram ações de coragem e destemor dignos dos melhores guerreiros, superando o terreno inóspito, o clima difícil e os diversos desafios da época, arriscando suas vidas por ideias nobres como de justiça e lealdade. Após a paz celebrada, os gaúchos não guerrearam mais entre si, fazendo história na década seguinte ao encilharem os seus cavalos na capital federal.
Imagem de Destaque: General José Antônio Mattos Netto e seus oficiais, Revolução de 1923 – https://cantinhogaucho.blogspot.com/2016/11/estuda-tche-revolucao-de-1923.html
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENTO, Claudio Manuel.Os 80 Anos da Tomada de Pelotas. In RS: Modernidade(1890-1930).Porto Alegre. Ediplat,2003,11, p.149-176.BRASIL. Revolução de 1923. Pesquisado em 15 Fev 2023, no site HTTPS://www.eb.mil.br/exército.
BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tao (coords). Império. Passo Fundo: Méritos, 2007. V. 2. Coleção História Geral do Rio Grande do Sul.
______ República Velha (1889-1930). Passo Fundo: Méritos, 2007. V3. T1. Coleção História Geral do Rio Grande do Sul.
BRITTO, Juliano Silveira de. “ A Revolução de 1923, e uma Breve Incursão à Imprensa Pelotense”. In: ALVES, Francisco das Neves.(org). Política e Imprensa no Rio Grande do Sul: ensaios. Rio Grande: Editora da Furg, 2007, p. 71-103 CALDAS, Pedro Henrique. Zeca Netto & A Conquista de Pelotas. Porto Alegre: Est, 1995.
______ A República Velha: Evolução Política. São Paulo: Difel, 1983.
CARONE, Edgard. A República Velha: evolução política(1889-1930). São Paulo. Difel,1985.
FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e Cooptação Política. Porto Alegre: Ed da Universidade, 1996.
FRANCO, Sérgio da Costa (org). Memórias do General Zeca Netto. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2003.GORGS, 2018. Revolução de 1923 os 95 anos da pacificação. Pesquisado em 18 Fev 2023. https://gorgs.org.br .
MAGALÃES, Mário Osório. Pelotas Princesa. Pelotas. Diário Popular,2012. Moreira, Regina Luz 2020. Revolução Gaúcha de 1923.