Ms. Rodolfo Queiroz Laterza
1. INTRODUÇÃO: ANTECEDENTES HISTÓRICOS E CONTEXTOS SOCIOPOLÍTICOS
Aproximadamente trinta milhões de curdos vivem no Oriente Médio — principalmente em uma região que abrange territórios do Irã, Iraque, Síria e Turquia — e os curdos compreendem quase um quinto da população da Turquia (um total estimado em setenta e nove milhões). O PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) estabelecido por Abdullah Ocalan em 1978, tem travado uma violenta guerra de insurgência desde 1984 contra as autoridades turcas por maiores direitos culturais e políticos, principalmente com o objetivo de estabelecer um estado curdo independente. O conflito em curso resultou em mais quarenta mil mortes, conforme estimativas diversas.
A recente incursão da Turquia no norte da Síria está testando os esforços dos EUA para equilibrar entre um importante parceiro de contraterrorismo no Oriente Médio e um importante aliado geopolítico na guerra na Ucrânia.
No centro da disputa entre Ancara e Washington, está o apoio dos Estados Unidos às Forças Democráticas da Síria (SDF), uma milícia com mais de 80 mil combatentes de maioria curda com a qual Washington fez parceria para combater o grupo Estado Islâmico (IS).
Em particular, o PKK, o Partido Democrático do Povo (conhecido pelo acrônimo HDP, um partido pró-curdo de esquerda que concorre a eleições parlamentares na Turquia) e a Unidade de Proteção do Povo (conhecido como YPG, o braço armado do Partido da União Democrática Síria (PYD) com laços com o PKK) têm se agitado cada vez mais contra o governo, conduzindo numerosos ataques contra as autoridades turcas no sudeste.
O regime turco vê o SDF como uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que trava uma guerra de décadas pela independência contra a Turquia. Os EUA consideram o grupo, conhecido como PKK, uma organização terrorista, mas se recusam a cortar os laços com o SDF, que Washington vê como a força de combate mais eficaz contra o Estado Islâmico.
Em julho de 2015, um cessar-fogo de dois anos entre o governo da Turquia e o PKK entrou em colapso após um atentado suicida, perpetrado por supostos militantes do autoproclamados do Estado Islâmico que matou quase trinta curdos perto da fronteira com a Síria. Após a tentativa de golpe em julho de 2016, Erdogan reprimiu suspeitos de conspiração, prendeu cerca de cinquenta mil pessoas e aumentou os ataques aéreos contra militantes do PKK no sudeste da Turquia. Erdogan também começou a conduzir operações militares na Síria contra o YPG e o autodeclarado Estado Islâmico.
Em 2016, a Turquia lançou sua primeira invasão da Síria com o objetivo de privar os combatentes curdos de uma base ao longo de sua fronteira. Mais duas incursões militares que se seguiram em 2018 e 2019, proporcionou a Turquia e suas milícias árabes aliadas o controle de grandes áreas do território sírio.
A mortalidade no conflito do PKK na Turquia atingiu o pico no inverno de 2015/2016. Nessa época, o conflito estava concentrado em vários distritos urbanos de maioria curda no sudeste da Turquia. Nesses distritos, milícias juvenis apoiadas pelo PKK ergueram barricadas e trincheiras para reivindicar o controle do território. As forças de segurança turcas restabeleceram o controle desses centros urbanos em junho de 2016. Já a taxa de militantes do PKK mortos por membro da força de segurança do estado aumentou quatro vezes desde julho de 2015.
Além da Turquia, os combatentes curdos sírios têm lutado contra o Estado Islâmico, como parte do SDF – uma aliança de combatentes árabes e curdos apoiada pelos Estados Unidos – e criaram uma região semiautônoma no norte da Síria. Em setembro de 2014, Abdullah Ocalan, líder do PKK, pediu aos curdos que iniciassem uma “resistência total” contra o Estado Islâmico. No final daquele mês, a cidade de Kobani, controlada pelos curdos, foi sitiada e eventualmente capturada, resultando no êxodo de dezenas de milhares de curdos sírios para a Turquia.
A Turquia ameaçava uma nova ofensiva terrestre há meses, mas sua campanha centrada em fogos de artilharia e da aviação na região se acelerou, depois que um atentado terrorista em Istambul matou seis pessoas e feriu dezenas em novembro. A Turquia culpou o PKK e seus grupos associados pelo ataque. Tanto o PKK quanto o SDF negaram envolvimento.
Depois que o YPG e o SDF consolidaram o controle sobre o território capturado do Estado Islâmico no norte da Síria, a Turquia e as milícias sírias apoiadas por Ancara, incluindo o Exército Sírio Livre (FSA), moveram-se para recapturar cidades e expulsar os curdos. As tropas turcas e a FSA lançaram um ataque à cidade de Afrin em janeiro de 2018, capturando a cidade em março de 2018. A Turquia continua ameaçando atacar outras áreas controladas pelos curdos dentro da Síria, incluindo Manbij, e apesar de compartilharem um inimigo comum, muitos dos ataques aéreos da Turquia têm como alvo combatentes curdos em vez de militantes do Estado Islâmico.
Os militares turcos atacam regularmente as bases do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) no Iraque. Em 2018, Tayyip Erdogan, presidente turco, disse que lançaria uma operação formal contra os curdos no Iraque. O governo iraquiano emitiu queixas formais contra as incursões turcas em seu território soberano. Em janeiro de 2019, o governo turco alegou que militantes separatistas curdos ligados ao PKK realizaram um ataque a uma base do exército turco no norte do Iraque que resultou em danos ao equipamento militar e nenhuma vítima.
Em dezembro de 2018, Donald J. Trump, presidente dos EUA, anunciou que os norte-americanos começariam a retirar tropas da Síria, os curdos sírios, que lutaram em grande parte como membros das Forças Democráticas Sírias (SDF), apoiadas por Washington, expressaram preocupação de que a Turquia aumentasse sua ataques contra eles. Ilham Ahmed, o líder da maior organização política dos curdos sírios, pediu aos governos ocidentais que criem uma força de observação internacional ao longo da fronteira Síria-Turquia.
Em janeiro de 2019, Trump ameaçou sancionar a Ancara caso os militares turcos atacassem as forças curdas apoiadas pelos EUA na Síria e o conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, indicou que Washington continuaria a buscar garantias de Erdogan de que os curdos sírios não seriam atacados. À medida que a guerra civil síria diminui, Erdogan e Trump continuaram a discutir opções para estabelecer uma zona segura e se os Estados Unidos recuperarão as armas fornecidas aos curdos sírios.
A aliança dos combatentes curdos também convergiu no Iraque, onde o Estado Islâmico avançou em direção à região autônoma curda no norte do país. Os Peshmerga — como são chamados os combatentes do Exército Regional do Curdistão iraquiano — juntaram-se às forças de segurança iraquianas e receberam armas e assistência financeira dos Estados Unidos.
Os EUA tentaram evitar uma escalada entre os dois grupos, durante crises anteriores, mas analistas e ex-funcionários dos EUA estão menos otimistas sobre os esforços de mediação de Washington desta vez. O conflito contínuo, especialmente uma invasão terrestre, comprometeria gravemente os ganhos duramente conquistados pelo mundo contra o ISIS e desestabilizaria a região”, disse um porta-voz do Pentágono.
O SDF veio a público, pedindo mais apoio de seu aliado. Mazloum Abdi, o chefe do grupo, tem repetidamente exigido uma mensagem “mais forte” dos EUA para impedir um ataque turco. O SDF publicamente manifestou-se declarando que está suspendendo as operações contra o Estado Islâmico para se concentrar novamente em se defender de um ataque turco. Diante do contexto adverso, o Pentágono recentemente afirmou que reduziu as patrulhas no norte da Síria por causa dos cortes nas SDF. Mas a influência do SDF com os EUA é limitada em comparação com a de Ancara.
A Turquia tem por objetivo geopolítico imediato estabelecer um cinturão de segurança ao longo de sua fronteira. Ao que parece não quer se arriscar a incursionar por toda região do Rio Eufrates e realizar operações antiterroristas que resultariam em possibilidades de perdas militares substanciais, que exigiria uma logística a qual não está preparada, principalmente considerando que seria uma linha de perímetro operacional por demais ampla para controlar. Outro ponto a ser considerado é político: incursões militares podem ser vistas com imperialistas ou tentativas de reviver o Império Otomano, trazendo problemas políticos.
As ações militares turcas na região do Curdistão sírio anteriores foram negociadas no formato Astana, com a Rússia e o Irã.
Moscou usou crises anteriores para consolidar sua posição como um polo de influência na Síria, fechando acordos com a Turquia e o governo de Assad. Tais acordos permitiram aos sírios ganharem território às custas dos curdos. Analistas diversos dizem que a influência do Kremlin não diminuiu, apesar de estar envolto em uma guerra difícil e custosa com a Ucrânia e OTAN. Em nosso entendimento, nesta altura do conflito, é a Rússia que tem mais influência para dissuadir a Turquia sobre o prosseguimento de uma incursão do que os EUA na região do Curdistão sírio e iraquiano.
2. Operação Claw-Sword das Forças Armadas Turcas no norte do Iraque e Síria
Na noite de 19 de novembro, o Ministério da Defesa turco anunciou a condução da Operação Claw-Sword no norte da Síria e Iraque. O motivo foi o atentado terrorista em Istambul, atribuído pelas autoridades de Ancara a grupos terroristas ligados aos curdos.
Segundo o Ministério da Defesa turco, a Força Aérea do país atingiu alvos em Qandil , Asos , Khakurk no Iraque e Kobani, Tel Rifat, Derik na Síria. Fontes oficiais disseram que todas as aeronaves de combate operavam no espaço aéreo turco. Outros recursos afirmam que a aeronave violou o espaço aéreo sírio várias vezes. Como resultado da operação, 89 alvos foram atingidos – abrigos, bunkers, cavernas, túneis, quartéis-generais e depósitos de munição. Os militares turcos também relataram a destruição de “um grande número de terroristas”.
As Forças Democráticas da Síria (SDF) anunciaram a morte de 11 civis como resultado do bombardeio. Um membro do SDF e 15 soldados do exército do governo sírio que estavam em áreas controladas pelos curdos também foram mortos.
À noite do dia 19/11/22, o SDF disparou mais de 15 foguetes e projéteis de artilharia contra a base militar turca em Dabiq, no norte da província de Aleppo. Além disso, a Turquia relatou o bombardeio de seu posto de controle na fronteira com a Síria, resultando em um soldado e oito policiais feridos. A operação turca no norte da Síria, inicialmente prevista para junho, começou oficialmente. No entanto, mudanças significativas na natureza da luta contra os grupos curdos não devem ser esperadas.
Antes disso, as Forças Armadas turcas de vez em quando bombardeavam as posições dos curdos na Síria do ar. A declaração do governo turco sobre uma nova etapa na luta contra grupos terroristas, antes de mais nada, é necessária para o público doméstico dentro do contexto de caça aos terroristas que realizaram o ataque em Istambul. Além disso, esta etapa mais uma vez pressionará os governos da Suécia e da Finlândia para romper ou limitar seus laços com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, já que precisam do voto turco para serem aceitos na OTAN.
A principal questão que permanece obscura no momento é o envolvimento do exército turco. As Forças Armadas turcas se limitaram a apenas ataques combinados de artilharia, aviação e UAVs sem a participação de forças terrestres. Embora imagens do movimento de colunas de blindados nas áreas fronteiriças à Síria já tenham aparecido na Web, de acordo com a experiência dos últimos anos, isso não é um sinal garantido do início de uma invasão militar em grande escala.
Ainda no âmbito das operações militares turcas da Operação Garra-Espada, caças F-4 e F-16 e drones turcos atacaram instalações curdas de petróleo e gás. De acordo com relatos da mídia, cerca de 12 refinarias de petróleo foram atingidas no dia anterior. Incêndios eclodiram em vários campos. Ataques de foguetes a posições e instalações de infraestrutura dos curdos também ocorreram na área de Ain al-Arab, Al-Qahtania, Afrin e Hasaka .
O comandante de alto escalão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, Rezan Gelo, foi morto com munições guiadas com precisão em Qamishli.
De acordo com a mídia síria e curda, um drone turco atingiu o campo Al-Kho , que abrigava parentes de combatentes do EI. Seis pessoas foram presas enquanto tentavam fugir.
Em 25/11/22, mais de seis aeronaves táticas da Força Aérea Turca F-16 decolaram na direção da parte norte do Iraque de três bases aéreas no leste da Turquia para realizar ataques aéreos nas posições do PKK.
A operação das Forças Armadas turcas no norte da Síria e no Iraque continua e, no momento, não há pré-requisitos para sua conclusão. A administração Erdogan está considerando a opção de iniciar operações no território dos estados vizinhos.
A Turquia espera que esta fase da operação aérea termine em dezembro. Depois disso, as forças armadas conduzirão uma campanha terrestre em grande escala na Síria e no Iraque com o apoio das forças pró-turcas.
Os turcos desejam criar uma zona tampão ao sul da Turquia, a fim de proteger seu território do transbordamentos das ações de curdos e do IS na região.
O ataque ao campo de detenção de terroristas em Al-Khol, bem como a suspensão das operações das Forças Democráticas da Síria contra os extremistas do EI, é outra confirmação disso.
Em 26/11/22, a Força Aérea e unidades de artilharia do Exército turco lançaram diversos ataques contra alvos curdos ao longo da linha de contato, incluindo Ain Divar , Derik , Ziyaret , Zor Magar , Tel Rifat e ao sul de Afrin.
Na noite de 25/26 de novembro de 2022, três foguetes atingiram a base americana de Al-Shaddadi, ao sul de Hasaka. O Comando Central dos EUA confirmou o ataque e disse que não houve vítimas. Acusações sobre autoria deste ataque expuseram as tensões entre os EUA e a Turquia: os americanos culparam as milícias pró-iranianas que operam no Iraque. No entanto, a mídia ocidental acredita que foi a Turquia que disparou contra a base militar dos EUA, pois de acordo com a mídia curda, os russos e turcos conversaram sobre uma possível operação terrestre das Forças Armadas turcas.
Segundo informações não confirmadas, a liderança do agrupamento das Forças Armadas da Federação Russa aprovou a entrada de um contingente terrestre em território sírio e apelou às formações curdas para que abandonassem as terras a norte da autoestrada M4.
O comandante das “Forças Democráticas da Síria”, Mazlum Abdi, disse que os combatentes curdos não recuarão um único passo. Ele disse que os turcos planejam a primeira etapa da ofensiva nas direções de Ain al-Arab , Manbij e Tel Rifat. Atualmente, o número de ataques aéreos e bombardeios de artilharia diminuiu. A atividade da aviação turca ao longo das fronteiras com a Síria e o Iraque praticamente deu em nada. Apenas alguns UAVs de ataque “Bayraktar” e “Anka” operam no ar.
3. Considerações finais
O comando militar turco está planejando a fase mais agressiva da campanha contra os grupos curdos e se preparando para isso. Na web temos várias imagens da transferência de equipamentos não identificados com pessoal na parte norte da Turquia para a fronteira com a Síria. Considerando as declarações beligerantes das principais lideranças políticas e militares da Turquia sobre a entrada iminente de um contingente militar no norte da Síria, a fase de operação terrestre pode começar em um futuro próximo.
É possível que o início de ações de grande escala no terreno seja anunciado, após a reunião do Conselho de Segurança Nacional da Turquia, sob a presidência de Erdogan. Provavelmente, o principal objetivo tático-operacional das Forças Armadas Turcas será estabelecer o controle sobre as cidades de Tell Rifaat, Manbij e Ain al-Arab, no norte da Síria.
As autoridades turcas continuam pressionando pela criação do chamado “cinturão de segurança” ao longo das fronteiras do sul do país. Os grupos curdos temem a repetição do “cenário afegão”, em caso de retirada do contingente americano, e intensificaram os contatos com os russos. Como mencionamos anteriormente, a liderança em Ancara está sendo pressionada internamente para iniciar uma operação terrestre no norte da Síria. Isso forçará os turcos a gastar recursos já finitos e, ao mesmo tempo, pressionar a Rússia que atuou como fiador de uma trégua no norte da Síria.
Ao mesmo tempo, as hostilidades com a Turquia, provavelmente, forçarão o SDF curdo a interromper as operações contra as células adormecidas do Estado Islâmico, levando a outra rodada de tensão e aumento da atividade terrorista na região. Uma operação militar terrestre na região curda no norte da Síria e do Iraque, provavelmente, irá criar sérios embaraços à Rússia quanto à estabilidade do regime sírio de Bashar Al- Assad e aos Estados Unidos perante seu apoio militar e econômico às milícias curdas abrigadas no grupo armado SDF e no Governo Regional do Curdistão iraquiano, já pressionado com crises internas no país e disputas políticas de facções políticas curdas diversas.
Ademais, conforme analisado, a Turquia irá se deparar com novos e críticos desafios, principalmente em manter o controle de uma extensa faixa territorial no norte da Síria e do Iraque, além de já se ver sobrecarregada no conflito armado contra o PKK em sua região sudeste, que resulta anualmente em centenas de baixas em suas formações militares e policiais, situação agravada pela persistente crise econômica que o país atravessa.
Glossário:
FSA: Exército Sírio Livre
IS: Estado Islâmico
HDP: Partido Democrático do Povo
PKK: Partido dos Trabalhadores do Curdistão
PYD: União Democrática Síria
SDF: Forças Democráticas da Síria
YPG: Unidade de Proteção do Povo
Imagem de Destaque: https://gramaticadomundo.blogspot.com/2013/01/imagine-que-o-povo-curdo.html
Autor: Delegado de Polícia, Mestre em Segurança Pública, historiador, pesquisador em geopolítica e conflitos militares
Fontes consultadas:
https://www.al-monitor.com/
https://carnegieendowment.org/
https://www.fpri.org/
https://www.kurdistan24.net/en
https://jamestown.org/
https://worldview.stratfor.com/
Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública