Rodolfo Queiroz Laterza¹ e Ricardo Cabral²
O presente ensaio tem como objetivo apresentar as modificações táticas e estratégicas introduzidas pelo general de exército Sergei Surovikin, após assumir o comando das Forças Russas e aliados proxies na Ucrânia.
Como alertamos no final de outubro, a Ucrânia perdeu a iniciativa operacional ofensiva entre novembro/dezembro. A partir desse ponto não conseguiram mais usar a superioridade de meios e de efetivo para estabelecer novas ofensivas. Em consequência, a programada ofensiva no eixo de Zaporizhzhia para tomar Tormak e Melitopol, provavelmente não será deflagrada.
O atual comandante do TO da Ucrânia, o General de Exército Sergei Surovikin, fez uma série de movimentos táticos visando prioritariam degradar as capacidades ucranianas, os quais elencamos:
– atraiu os reforços e meios ucranianos que estavam desdobrados de Kherson e Zaporizhzhia para uma zona de destruição em Bahmut, Soledar e Marynka. As perdas ucranianas foram muitos elevadas nas melhores unidades de combate e nas reservas que seriam fundamentais para novas ofensivas, tornando-as inviáveis;
– a destruição sistemática e progressiva da infraestrutura energética ucraniana provoca interrupções temporárias ou permanente de serviços (dependendo da localidade) e prejudica o funcionamento da vida social e econômica do país, impactando severamente o moral e a motivação de resistência;
– ênfase na destruição do potencial de combate das forças ucranianas, em detrimento de controle de território (que exige muito efetivo, meios e logística);
– destruição progressiva e sistemática de radares de contra bateria, de defesa aérea, MLRL, obuses, fortificações e posições defensivas;
– maior agressividade visando destruir o máximo de forças ucranianas;
– destruição do fogo de artilharia (obuses e MLRS) e defesa aérea da Ucrânia – os dois principais componentes de combate que mais infligiram danos às forças russas no conflito;
– retomada da iniciativa em um eixo do front – Donbass – em detrimento de ataques dispersos e mal coordenados em vários eixos de progressão, o que gerava perda de recursos humanos e matérias, além de sobrecarregar a logística;
– construção de linhas defensivas fortificadas em eixos mais frágeis, como Svatovo e Krasny Liman, repelindo ataques ucranianos, tal como os que ocorreram desde o final de outubro/início de novembro.
Observamos que Surovikin prioriza os princípio da economia de meios, manobra e concentração, avançando somente após a consolidação da posição, em detrimento de ataques rápidos e violentos utilizando muitos meios e combatentes, visando conquistar o território que será difícil de manter posteriormente.
A guerra urbana
A retomada da iniciativa nos leva ao problema de eventuais novas ofensivas russas em direção às grandes cidades ucranianas como Kharkiv ou Kramatorsk. Em nosso entendimento, o governo ucraniano não vai decretar “cidade aberta” com retiradas táticas e evacuação; ao contrário, vai lutar e vender caro sua tentativa de conquista pelas forças russas, procurando desgastá-los ao máximo até perderem a iniciativa, como ocorreu após a queda de Severodonetsk.
A conquista de densos núcleos urbanos são operações complexas. As grandes cidades, com metrô, edifícios altos, áreas industriais, muitas residências, hospitais, escolas, centros de distribuição de energia, ruas de variados tamanhos, dentre outros tipos de imóveis, tornam-se uma série de obstáculos para uma força atacante, ao mesmo tempo em que oferecem muitas possibilidades para os defensores. Blindados e helicópteros são vulneráveis, a infantaria deve “limpar” cada imóvel antes de continuar o avanço, tornando-o lento e com alto custo em vidas devido à resistência dos defensores, às armadilhas, aos dispositivos improvisados, às emboscadas etc etc. A fim de facilitar a progressão, os atacantes tendem a cercar determinadas áreas e usar o fogo de artilharia para destruir obstáculos ou eliminar resistência. De qualquer forma, a expectativa é de um número elevado de perdas entre a população civil que não conseguir fugir.
Tendo em vista a estratégia adotada até agora por Sergei Surovikin, os russos devem cercar as cidades, tirando as condições de subsistência e forçando-as a rendição, em vez de tentar invadi-las como aconteceu em cidades médias de Severodonetsk, Mariupol e agora em Soledar e Bahmut.
Caso resolvam invadir as grandes cidades, necessitarão mobilizar mais combatentes e empenhar mais equipamentos. No momento, não estamos considerando a possibilidade de uso de uma nuclear tática.
A OTAN
O crescente envolvimento da OTAN é uma preocupação crescente de se chegar a uma guerra aberta com consequências desastrosas para a humanidade.
A Aliança Atlântica praticamente esgotou suas possibilidades de fornecimento de sistemas de armas menos sofisticados. No momento, restam os seus equipamentos em estado da arte reservados para a defesa nacional. A sua perda em combate por si só seria muito ruim, sua captura pelo russos seria catastrófica em todos os sentidos.
Observamos que militares da OTAN estão operando muito dos equipamentos fornecidos devido à falta de mão-de-obra ucraniana alta e qualificada para manejo de tais sistemas Não só os sistemas C4ISR no Estado-Maior ucraniano, mas sistemas de combate na linha de frente (tais como estações de radar, lançadores de múltiplos de foguetes, diversos tipos de baterias de mísseis etc.). São os famosos conselheiros militares e “mercenários”. Em relação a esses, os ucranianos (subvencionados pelo Ocidente) estão atraindo até jihadistas sírios para recompor suas desfalcadas unidades.
A Guerra no Inverno
A chegada do inverno está provocando mudanças no ritmo de combate, apesar dos contendores estarem acostumados. O inverno na Ucrânia costuma ser muito duro, exigindo uniformes e equipamentos especiais para o combate na neve. A manutenção do fluxo de suprimentos vai forçar o sistema logístico. A tendência dever ser de diminuição do ritmo dos combates.
Lembremos que o terreno no leste da Ucrânia é cortado por rios, alagadiços, grande áreas de cultivo (que foram drenadas e podem ser inundadas). Os bosques podem ocultar BTGs inteiros e os pequenos cursos d´água tem uma mata ciliar que permite a progressão se o clima estiver fechado com nuvens baixas. Nesses locais uma parte considerável das estradas de rodagem e de ferro foram construídas sobre taludes oferecendo coberturas e abrigos ao avanço de tropas com veículos apropriados.
A OTAN e os russos costumam usar forças especiais e forças tarefas blindadas para inquietar o inimigo e manter a iniciativa. As forças podem se aproveitar do clima ruim para realizar ataques pontuais contra objetivos sensíveis do inimigo.
Unidade de Comando
O maior problema no TO que Surovikin tem enfrentado é a autonomia operacional de determinados elementos armados que, teoricamente, estão sobre seu comando. As milícias das repúblicas de Luhansk e Donetsk, as forças chechenas, os mercenários (em especial a PMC Wagner) lutam ao lado do Exército Russo e das tropas terrestres da SRV sem coordenação e tem muita iniciativa de combate que não é coordenada com o Estado-Maior do TO. Isso tem se mostrado um problema para um comando que tem na economia de forças, manobra e concentração como seus principais princípios de guerra.
A logística russa melhorou bastante, já os ucranianos tem parte do sistema logístico da OTAN à sua disposição, mas a corrupção atrapalha a ambos países.
Tática
Uma constatação, as forças russas já se adaptaram as táticas anti-carro, anti-aérea e de emprego de UCAV da OTAN. Ademais, estão conseguindo reduzir significativamente o seu grau de eficácia. No entanto, sabemos que o desequilíbrio é permanente. A chegada dos reforços dentre os 150 mil mobilizados ainda em treinamento deve permitir aos russos a iniciativa operacional ofensiva por um tempo. Lembremos que os ucranianos não tem mais tantas reservas em armas e unidades assim para continuar lutando na intensidade atual, principalmente diante da estratégia de Kiev de defender o terreno até o último homem. A questão a se considerar é por quanto tempo os ucranianos continuaram a combater? Ou até quando a OTAN está disposta a empenhar seus recursos em uma guerra de desgaste? E se os russos diante de uma ameaça existencial usarão armas nucleares? São questionamentos ainda sem resposta segura.
Mesmo o emprego dos BTG russos teve que ser adaptado para combater as táticas utilizadas pelas formações ucranianas baseadas na Brigade Combat Team Strike norte-americana e seus congêneres da OTAN.
A partir de junho, o largo emprego dos vários modelos de UCAV (unmanned combat aerial vehicle) e MRLS (Multiple Launch Rocket System) forçaram as forças em terra a mudanças nas suas táticas. As capacidades desses sistemas de armas foram potencializados pelo C4ISR (Command, Control, Communications, Computers, Intelligence, Surveillance and Reconnaissance) disponibilizados pela OTAN, os quais ampliaram a consciência situacional ucraniana. Com relação a esse último conjunto de sistemas, os russos só agora (em dezembro) conseguiram responder para reduzir a eficiência desses sistemas. Ao mesmo tempo os russos estão aperfeiçoando seus próprios sistemas C4ISR, em que pese o gap tecnológico existente em favor da OTAN nesses sistemas. A degradação/mitigação dos sistemas C4ISR da OTAN empregados pelos ucranianos é uma das razões das grandes perdas das FAU.
A Estratégia
A tendência é que os russos tentem retomar o território que foi perdido durante o contra-ataque ucraniano de setembro e outubro, aproveitando os reforços recebidos e o desgaste das FAU. A princípio, devem concentrar seus esforços em Donetsk e depois, provavelmente, em Zaporizhzhia.
Se Surovikin jogar xadrez, diríamos que seu estilo de jogo é de um jogador posicional, ou seja, o ataque ocorre a partir de uma série de movimentos coordenados contra um objetivo bem definido. Conquistado esse objetivo, estabelece-se outro e começa a manobrar suas peças a fim de posicioná-las para o ataque, que só se realiza se as condições necessárias forem atingidas. Característica interessante para um operador de forças especiais.
Nessa altura dos acontecimentos, não temos como saber se os russos avançarão até as margens do Dnieper e/ou conquistar Odessa bloqueando o acesso dos ucranianos ao mar Negro, como se chegou a especular entre abril/maio.
O inverno vai permitir que russos e ucranianos/Otan reajustem seus dispositivos e suas estratégias. A tendência é que a guerra de desgaste deve prosseguir. Não nos enganemos, é uma guerra entre a Rússia e a OTAN, com os ucranianos fornecendo o terreno e as vítimas. Nesse sentido, a resiliência russa tem surpreendido, bem como os baixos estoques de determinadas armas e munições de países integrantes da Aliança Atlântica.
O largo emprego de mísseis de cruzeiro, drones kamikaze, artilharia contra as infraestrutura, em especial aos sistemas de produção e distribuição de energia ucraniana, tem degradado, consideravelmente, as capacidades logísticas ucranianas, além de baixar o moral da população.
Imagem de Destaque: https://www.ft.com/content/d60ef086-a252-4d6d-8534-e39ccd541926
Autores:
¹ Delegado de Polícia, Mestre em Segurança Pública, historiador, pesquisador em geopolítica e conflitos militares
² Mestre e Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, professor-colaborador e do Programa de Pós-Graduação em História Militar Brasileira (PPGHMB – lato sensu), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO e Editor-chefe do site História Militar em Debate e da Revista Brasileira de História Militar. Website: https://historiamilitaremdebate.com.br
Fontes consultadas:
https://www.defensenews.com/
https://en.topwar.ru/
https://www.fpri.org/
https://news-front.info/
https://rusi.org/
https://worldview.stratfor.com/
Saudações
Olhando o mapa onde esta ocorrendo os combate não faria sentido os Russos e seus aliados escolhessem Odessa como objetivo principal.
Em primeiro lugar gostaria de parabenizar o site pelas análises sempre técnicas e com informações esclarecedoras. Eu leio muita informação em canais do Telegram, no entanto, ao ler os artigos no site do história militar em debate consigo absorver e compreender os acontecimentos.
Gostaria se possível que os autores poderiam estabelecer um paralelo da estratégia de um dos generais anteriores, Lapin, uma vez que o presente artigo apontou as principais características do General Surovikin. Aliás o General Lapin muito criticado nos canais russos.
Outra dúvida, está não propriamente relacionada ao presente artigo, seria em relação ao grupo Wagner PMC , pois a mídia ocidental chama esse grupo de uma espécie de mercenarios, então seria possível um confronto do referido grupo contra o exército da Rússia.
Mais uma vez parabenizo os autores pelo artigo e ansioso para ler o próximo tema.
O site HMD agradece os parabéns e os pedidos e dúvidas foram enviados aos autores.
Quanto ao grupo Wagner, a solicitação quanto a relação foi enviado aos autores, e temos já no site esse texto que retrata o grupo:
https://historiamilitaremdebate.com.br/os-mercenarios-do-grupo-wagner/
Yes, what’s the question?