Guerra Indireta e Guerra Híbrida – Parte 2

de

Reis Friede¹

Aos interessados sobre o tema, a parte 1 do assunto está disponível nesse link: https://historiamilitaremdebate.com.br/guerra-indireta-e-guerra-hibrida-parte-1/

2. Guerra Híbrida: Novo Nome, Velha Prática?

A Guerra no século XXI continua a ser um assunto de grande atenção, em especial em um contexto no qual ela parece ter retomado o papel de realidade possível, quer em face de Estados enfrentando atores não-estatais, quer em uma dimensão maior que envolve grandes potências nos campos de batalha com o uso intrusivo dos variados meios de que dispõem. Nessa toada, muito se atenta para uma expressão que surgiu recentemente, e que parece indicar algo novo, ainda que não completamente ímpar ou singular.

Dadas as inovações surgidas nos modos de fazer a guerra, isto é, do uso da força, o conceito de Guerra Híbrida se apresenta, particularmente (ainda que com ressalvas e controvérsias) como uma possível Revolução nos Assuntos Militares (RAM), uma evolução da teoria da guerra que, em tese, – ainda que não represente propriamente uma mudança na própria natureza da guerra (ou seja, uma autêntica Revolução Militar – RM) -, apresenta-se como uma (pretensa) modificação na forma conceitual de condução da guerra. Sob a égide desse raciocínio, essa nova forma de guerrear representaria algo totalmente novo diante do que existe até então.

Diagrama 7: Diferenças entre Revolução Militar (RM), Revolução nos Assuntos Militares (RAM), Inovação Militar (IM) e Técnica Militar (TM)

Todavia, o exame minucioso do que seria a Guerra Híbrida, à luz da dimensão operacional em um diálogo com a Teoria da Estratégia e a História Militar, implica uma falha. Qual seria propriamente a novidade da Guerra Híbrida? O que ela traz que representa uma real transformação do guerrear? Quais as efetivas inovações táticas organizacionais, doutrinárias e/ou tecnológicas, implementando uma nova abordagem conceitual na fenomenologia da guerra? Parte dos defensores do conceito indicam, em sua defesa, o uso de forças convencionais e não-convencionais aliadas a novas tecnologias, como a automação e a dimensão cibernética, como elementos que o sustentam. Para estes estudiosos, forças chamadas “híbridas” seriam aquelas, portanto, que possuem a capacidade de operar tanto como unidades militares regulares formais quanto como grupos altamente flexíveis e independentes, apoiados no uso de sofisticadas tecnologias como drones e computadores, que servem como plataformas de ataques a alvos na rede mundial de computadores, a internet, como redes ligadas a bancos, usinas de energia, serviços públicos, entre outros.

Conjugado a isso, o acesso à internet permite a essa força ser capaz de produzir e veicular sua própria narrativa como forma de moldar percepções da opinião pública local e internacional a respeito do conflito ou crise no qual tal força está envolvida. Sofisticado uso de recursos informacionais e replicação da narrativa por canais diversos, de páginas de veículos de imprensa até redes sociais, servem como forma de angariar apoios, divulgar os feitos e mesmo disseminar informações falsas de maneira a atrapalhar, prejudicar ou mesmo impedir uma ação inimiga.

Nesse sentido, há também, em adição, um segundo conjunto de apoiadores do conceito que defendem uma maior elasticidade do mesmo a envolver, na concepção de “híbrida”, a ideia do emprego combinado, – em um sentido diferente e inovador (denominado por alguns de “smart power”) da combinação dos elementos do Poder Nacional (Militar, Econômico, Político e Psicossocial) -, a ensejar a conclusão pela existência de uma reconhecida sobreposição de elementos de guerrear não mais possível quanto à (outrora) perfeita identificação de sua origem, particularmente como integrantes (específicos) da dimensão militar (ainda que, na restritiva perspectiva de meios irregulares ou heterodoxos, a visão da “guerra híbrida” possa continuar sendo “unidimensional” ou, no mínimo, preponderantemente militar).

Porém, existe ainda (dentre outras doutrinas a respeito do tema) uma particular concepção, de origem russa, que merece ser abordada e que traduz, em última análise, a Guerra Híbrida como um novo (e inovador) método de “guerra indireta”, supostamente concebido pelos Estados Unidos da América como resultado de seu inerente reconhecimento quanto ao esgotamento de sua unipolaridade, (re)inaugurada com o fim da Guerra Fria (1947-91), através do surgimento de um novo modelo de “liderança velada”.

“Estratégias convencionais para a troca (forçada) de regimes (Panamá, Afeganistão, Iraque) foram possíveis em um mundo unipolar, mas com o momento unipolar desvanecendo, os EUA se veem obrigados a reviver o modelo de liderança velada com que flertaram pela primeira vez durante a guerra Soviético-Afegã. O primeiro indício oficial de que os EUA estavam caminhando para essa estratégia foi o comportamento durante a guerra do Líbano de 2011, a primeira vez na história em que a alcunha ‘liderança velada’ foi usada. Esta foi seguida pelo último discurso do então Secretário de Defesa ROBERT GATES naquele verão em que implorou aos aliados da OTAN que se empenhassem mais em ajudar os EUA a encarar de frente os desafios globais (ROBERT GATES; The Security and Defense Agenda – Future of NATO –, U.S. Department of Defense, 10/06/2011. Disponível em: <http://www.defense.gov/speeches/speech.aspx?speechid=1581>. Acesso: 8 jul. 2014). Ficou claro então que os EUA já não estavam tão entusiasmados em ‘agir por conta própria’ (UK and US Would ‘Go It Alone on Iraq’, Telegraph Media Group Limited, 18/10/2002. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/1410560/UK-and-US-would-go-it-alone-on-Iraq.html>. Acesso: 8 jul. 2014) como outrora, tampouco motivados a impor o ultimato ‘ou você está conosco ou está contra nós’” (‘You Are Either with Us or Against Us’, Cable News Network, 06/11/2001. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2001/US/11/06/gen.attack.on.terror/>. Acesso: 8 jul. 2014).

O indício de que o poder estadunidense encontra-se relativamente em declínio vis-a-vis as outras grandes potências foi formalmente sustentado pelo Conselho de Inteligência Nacional de 2012. Em sua publicação Global Trends 2030 (Global Trends 2030: Alternative Worlds, Office of the Director of National Intelligence, 10/12/2012. Disponível em: <http://www.dni.gov/index.php/about/organization/national-intelligence-council-global-trends>. Acesso: 8 jul. 2014), o conselho discorre acerca de como os EUA estarão ‘pela primeira vez entre iguais’ porque ‘o momento unipolar acabou, e a ‘Pax Americana’ – a era da ascensão estadunidense nas políticas internacionais que começou em 1945 – está rapidamente perdendo fôlego’ (MATT SMITH e PAM BENSON; U.S. to Face 2030 as ‘First Among Equals’, Report Projects, Cable News Network, 11/12/2012. Disponível em: <http://edition.cnn.com/2012/12/10/us/intelligence-2030/>. Acesso: 8 jul. 2014). Evidentemente, em um ambiente competitivo assim, será mais difícil de empregar o unilateralismo agressivo sem correr o risco de consequências colaterais. Isso também deu um impulso adicional para a implantação da estratégia de liderança velada no planejamento militar predominante nos EUA.

Por fim, o presidente OBAMA institucionalizou o modelo de liderança velada quando discursou em West Point no final de maio de 2014. No discurso, ele declara, com destaque, que “”os EUA devem liderar no cenário mundial […] mas a ação militar dos EUA não pode ser o único – ou sequer o principal – componente de nossa liderança em todas as ocasiões. Só porque temos o melhor martelo não significa que todo problema é um prego’”(BARACK OBAMA; Full Transcript of President Obama’ Commencement Address at West Point, The Washington Post. Disponível em: <http://www.washingtonpost.com/politics/full-text-of-president-obamascommencement-address-at-west-point/2014/05/28/cfbcdcaa-e670-11e3-afc6-a1dd9407abcf_story.html>. Acesso: 8 jul. 2014). Isso foi interpretado como os EUA abandonando formalmente a doutrina unilateral “por conta própria”, salvo circunstâncias excepcionais (E. J. DIONNE JR.; The New Obama Doctrine: The U.S. Shoudn’t Go It Alone, Investor’s Business Daily, 28/05/2014. Disponível em: <http://news.investors.com/ibd-editorials-on-the-left/052814-702436-us-should-usemilitary-force-only-when-we-or-allies-are-threatened.htm?ref=SeeAlso>. Acesso: 8 jul. 2014). A essa altura, percebe-se que os EUA expuseram claramente suas intenções em trocar o posto de polícia do mundo pelo manto de mestre das marionetes da liderança velada. Reforçando esse argumento, a transformação social e política generalizada que os EUA vislumbraram com a Primavera Árabe não poderia ter dado certo por meio de uma ação unilateral. Logo, o ano de 2011 representa o fim oficial do momento unipolar e o início da era da liderança velada, que, em si, consiste na adaptação dos EUA a um mundo multipolar.”” (ANDREW KORYBKO; Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes, Expressão Popular, São Paulo, 2018, ps. 35-36)

Essa singular percepção (cuja construção teórica e implementação prática a doutrina polemológica defendida por Moscou, não obstante sua autoria, prefere atribuir aos norte-americanos) baseia-se na primazia do emprego da dimensão psicossocial (cultural) do poder nacional, caracterizando, desta feita, o “hibridismo” no contexto da Teoria do Caos de STEVEN MANN (ANDREW KORYBKO; Guerras Híbridas (Das Revoluções Coloridas aos Golpes), Ed. Expressão Popular, São Paulo, 2018), – e, consequentemente, na concepção de Estado amorfo no campo de batalha -, através da utilização de duas diferentes (e complementares) abordagens: as chamadas revoluções coloridas (um conjunto de técnicas de psicologia de massa, com o correspondente uso de meios não-militares e disseminados por meio de redes de network) e as denominadas estratégias de guerra não-convencional, desenvolvidas, sobretudo, por intermédio de movimentos de resistência ou insurgência, conduzidos por forças clandestinas (auxiliar e guerrilheira) em espaços geográficos “renegados” pelo adversário.

Polêmicas à parte, a verdade é que esses (pretensos) pressupostos básicos da nova forma de guerrear, segundo os principais estudiosos do tema, estariam presentes em recentes campanhas movidas pela potência disruptiva da Ordem Mundial denominada China e, especialmente da potência revisionista denominada Rússia. A recente produção de documentos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), neste sentido, identifica a Rússia como principal potência promotora de tal forma de guerrear, exatamente pelos mesmos motivos que Moscou acusa o Ocidente (e os EUA, em particular) de empregar uma abordagem indireta de conflitar com seus adversários no século XXI, com ênfase nos últimos anos. Os exemplos variam da campanha da Geórgia, em 2008, passando por ações sistemáticas envolvendo os países bálticos até o culminar dos esforços russos na campanha da Ucrânia, especialmente a partir de 2014, ainda que, ao fim, em 2022, Moscou tenha optado por invadir a Ucrânia através de uma abordagem militar direta.

O exame das ações russas pode em um primeiro momento confirmar tal conceito, mas, ao se considerar qual a lógica que permeia tal ação, o hibridismo supostamente praticado por forças russas não traz, à luz de uma apreciação mais rigorosa dos fatos, nenhuma novidade em si. Em verdade, ela continua, em muitos aspectos, carregada dos velhos motivos que circundam a forma conceitual clássica de condução da guerra (incluindo a sua própria natureza), como aqueles apontados por TUCÍDIDES ou ainda o apontamento de CLAUSEWITZ sobre como ela é um fenômeno da dimensão política, o que inviabiliza qualquer discurso possível sobre como o hibridismo seria uma transformação (verdadeiramente inovadora ou revolucionária) da Guerra (e de sua concepção clássica). Ainda assim, um exame da conduta russa em operações deve ser realizado, a ensejar maiores (e necessárias) reflexões.

Curiosamente, a gênese da nova forma de atuar por parte dos russos tem sua origem ditada em um artigo publicado pelo Chefe do Estado-Maior do Exército Russo, o General VALERY GERASIMOV. Esse artigo é tido pela OTAN como a formalização do que seria a adoção do hibridismo por parte da Rússia, – sem, entretanto, adentrarmos propriamente no que seria o pensamento do general russo como uma alternativa “doutrina” (palavra cunhada por um especialista americano, que tempos depois foi forçado a admitir a falácia da “Doutrina Gerasimov”) -, não sem antes ter influenciado mais de uma centena de artigos e textos no Ocidente sobre um suposto novo modo russo de guerrear.

Porém, fruto das incontáveis ironias que existem na História Militar, no artigo, epigrafado, GERASIMOV argumenta que é necessária uma modernização e transformação (tecnológica) das Forças Armadas da Rússia para dotá-las com a capacidade de resistir ao poderio militar (superior) do Ocidente, em especial dos EUA. Para o general russo, os países ocidentais estariam orquestrando um acelerado processo para “sufocar” a Rússia mediante uma complexa grande estratégia que coordenaria sanções econômicas, pressão militar e cooptação dos países vizinhos à Rússia por meio do ingresso desses na OTAN ou na União Europeia, quando não (e de forma coordenada) nos dois organismos. GERASIMOV aponta que as instabilidades político-econômicas pelas quais os vizinhos da Rússia passavam eram fruto de uma ação sistemática da Europa e dos EUA para que esses países, uma vez fragilizados, acabassem por ser alvos de programas e incentivos de maneira a permitir um domínio europeu ou americano (inclusive de matiz psicossocial) sobre eles.

Acerca de como a manifestação operacional desse modo de guerrear ocorre, tanto os russos quanto os ocidentais são unânimes em apresentar uma série de técnicas exteriorizantes, que vão desde o uso convencional de forças militares até a intervenção nos campos de batalha por meio de mensagens instantâneas de celular enviadas a combatentes inimigos, contendo material próprio de operações psicológicas. Ou então a coordenação de ataques por grupos irregulares apoiados por forças regulares com artilharia e ações ofensivas no domínio cibernético, de maneira a impedir, deter ou danificar estruturas críticas adversárias.

As raízes do suposto modo híbrido desenvolvido pelos russos de fazer guerra são profundas, e remetem aos estudos feitos pelos mesmos dentro do seu desenvolvimento das Ciências Militares. E dois episódios são essenciais para que se perceba como os russos são capazes de atuar em um conflito, conjugando elementos militares e não-militares ao mesmo tempo (em uma tradução mais precisa do conceito de guerra ou conflito híbrido), com a finalidade de atingir os mesmos objetivos.

Diagrama 8: Visão Conceitual de Guerra Híbrida em Sentido Estrito

Os episódios são a Guerra do Afeganistão (1979-89) e a Primeira Guerra da Chechênia (1994-96), nos quais os russos fracassaram na luta (clássica e direta) contra oponentes inferiores tecnológica e materialmente. As experiências produziram uma reflexão e uma nova forma de atuar do Estado russo, que passou a perceber que a guerra não era um desafio talhado apenas às forças militares, – a despeito de todo o poderio das suas Forças Armadas -, boa parte dos reptos que elas enfrentaram nos dois conflitos eram de natureza diversa da militar e, portanto, não tinham como ser percebidos pelos militares russos. Desafios como promover riqueza e desenvolvimento em áreas pobres, promoção de empregos ou saneamento básico se mostraram além das capacidades das tropas.

O general GERASIMOV é um adepto desta visão, no qual são combinados esforços militares, diplomáticos, econômicos e de inteligência para que se atinja o fim desejado. Os russos aplicaram tal forma de atuar na Segunda Guerra da Chechênia (1999-2009), obtendo grande sucesso. Foram combinados meios convencionais tradicionais aos russos, como concentrações pesadas de fogos de artilharia e apoio aéreo, forças de operações especiais aliadas a grandes efetivos terrestres que foram conjugadas com manobras diplomáticas e incentivos econômicos russos, que se mostraram fundamentais para a vitória de Moscou no conflito em sua fase convencional. De fato, o instrumental foi vital até para enfrentar a insurgência surgida ao final do conflito e que ocorreu até 2009, que foi confrontada pelos russos com os elementos da fase convencional conjugados a forças irregulares recrutadas localmente e um intenso esforço de propaganda e contrapropaganda para promover sua causa ante a população local, o que acarretou um esmagamento da insurgência. Os poucos remanescentes fugiram para repúblicas próximas como o Daguestão ou se juntaram a grupos jihadistas na Ásia, particularmente no Oriente Médio.

Observada a conduta russa, – assim como outras experiências análogas -, permanece a pergunta: há realmente uma novidade em todo esse processo ou o estudo da História Militar nos indica que tais técnicas, supostamente novas, muitas vezes já estão presentes nos campos de batalha há tempos? Afinal, forças regulares e irregulares já operam conjuntamente desde a Antiguidade, e o advento das armas de fogo não mudou tal horizonte. Tal como os romanos avançavam seu império com suas legiões e “forças auxiliares”, que muitas vezes eram tribos ou outros povos contratados para lutar junto aos legionários, durante a Segunda Guerra Mundial tropas aliadas lutaram apoiadas por grupos guerrilheiros, como a Resistência francesa e os partisans na Itália, Iugoslávia e na União Soviética. Da mesma maneira, nas operações em andamento no Afeganistão, as tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e forças regulares e irregulares afegãs enfrentam grupos como o Talibã e a Al- Qaeda ou ainda o Estado Islâmico. Portanto, quanto à conjunção de forças regulares e irregulares, nada do que tem sido feito recentemente por atores ditos híbridos, como a Rússia, possui algo realmente novo.

Talvez uma das principais razões para a confusão conceitual em torno da ideia de Guerra Híbrida seja o fato de que não há um adequado entendimento no Ocidente, em especial nos EUA, de que na Rússia e na China, a estratégia é um campo que ultrapassa a dimensão militar. Para esses países, o uso de todas as capacidades do Estado-Nação é algo comum na perseguição de seus interesses. Conjugam-se recursos militares, econômicos, informacionais, diplomáticos, tais como outros instrumentos de poder do Estado para que um objetivo seja atingido. A sinergética soma de tais esforços já é algo antigo para chineses e russos, e isso só parece novidade quando o conceito de Guerra Híbrida é examinado fora do campo da Estratégia, o que é possivelmente o seu elemento de maior fragilidade.

Destarte, as ferramentas para se contrapor a uma ação que seja classificada como de Guerra Híbrida já existem e estão presentes. Se um adversário é capaz de mobilizar uma série de instrumentos de poder nacional, a resposta obviamente se medirá por meio delas. Isso não foge ao conceito clausewitziano do choque de vontades entre os oponentes, o que deixa ainda mais clara a fragilidade do conceito, especialmente quando ele se anuncia como uma grande novidade revolucionária sobre a guerra, ainda que no campo de uma Revolução nos Assuntos Militares (RAM) e não propriamente de uma autêntica Revolução Militar (RM).

Tal fragilidade se acentua se observarmos os usos mais recentes do conceito. Para alguns autores, a Guerra Híbrida abarcaria também uma série de medidas diplomáticas e econômicas como sanções, embargos e restrições comerciais ou mesmo de circulação de divisas, em um processo no qual o alvo teria reduzida ou impedida sua capacidade econômica, privando-o de meios para continuar ou fazer uso de força. Esse alargamento conceitual parece interessante, em especial se observados os documentos produzidos recentemente pela União Europeia e estudiosos europeus, que exemplificam a manipulação dos preços do gás natural por parte da Rússia assim como a regulação dos fluxos de transporte e entrega, uma vez que ela é a principal fornecedora do recurso natural para a maior parte dos países europeus, como um instrumento de pressão russa para imposição de sua vontade.

Essa articulação conceitual pareceria interessante, mas ela acaba se chocando com outro conceito, por sua vez muito mais concreto e aperfeiçoado: Grande Estratégia. Se considerados os usos russos de todos os meios à disposição do seu Estado, obviamente isto se encontra muito melhor acomodado em uma grande estratégia russa. É importante que não se confunda os conceitos, sob pena de aumento do custo no cálculo estratégico. Se o uso da força já é em si algo dispendioso se conduzido de maneira a observar os preceitos político-estratégicos corretos, ao ser feito com conceitos vagos levados em consideração, não só aumenta a possibilidade do fracasso como abre-se caminho para o surgimento de vulnerabilidades que podem colocar um Estado em grande risco.

Outro tópico, importante no debate sobre o conceito de Guerra Híbrida, é a articulação entre forças irregulares, Estados e grupos criminosos, o que perpassa por um novo conceito polemológico (e que se entrelaça, em alguma medida, com a concepção de Guerra Híbrida), ou seja, as chamadas “Novas Guerras”. A complexidade dessas relações pode tornar o objetivo de enfrentar uma ameaça híbrida com novas camadas de observação e planejamento, uma vez que os recursos de atividades relacionadas ao crime organizado como tráfico de armas, de drogas ou mesmo de seres humanos, provém sustentação a atores irregulares ou híbridos e podem inclusive aumentar a sua capacidade bélica e tecnológica, como o exemplo do terrorismo jihadista na região do Sahel, onde grupos ligados à rede terrorista Al-Qaeda possuem atualmente como principal fonte de rendas ligadas à atividades criminosas como sequestros, cobranças de taxas de proteção à rotas utilizadas pelo tráfico de drogas na região para chegar à Europa. A dimensão cibernética (mesmo quando considerada inserta no campo do poder nacional militar) também tem manifestação semelhante, mediante a ação de grupos de hackers que, em consonância com um Estado ou atores não-estatais, lançam ataques objetivando infraestruturas adversárias e acabam afetando até mesmo estruturas ligadas ao Estado que lhe prestam apoio, como demonstrado por recentes ataques cibernéticos, afetando, inclusive, estruturas não visadas como objetivos, como sistemas de saúde pública.

A única questão prática que decorre do conceito de Guerra Híbrida é de alertar comandantes táticos e operacionais de seus papéis na guerra contemporânea e agir de acordo quanto a esses preceitos. Com novas tecnologias e a própria dinâmica dos combates ocorrerem cada vez mais em ambientes urbanos, o próprio sigilo vital às operações pode ser quebrado. Na Operação Lança de Netuno, na qual uma equipe SEAL eliminou OSAMA BIN LADEN, o sigilo da ação foi quebrado através de perfis de paquistaneses que reclamavam do ruído feito pelos helicópteros americanos, algo tão prosaico e que, ao mesmo tempo, colocou em risco uma das operações mais importantes para o esforço do combate dos EUA àquele grupo terrorista.

As tecnologias que permitem a aceleração do fluxo informacional, como redes sociais, blogs e canais de vídeo por streaming são recursos que maximizam as capacidades das operações psicológicas e a comunicação estratégica, deixando claro que a propaganda, antes um recurso disponível aos Estados, agora passa a poder ser operada por atores não-estatais, a um baixo custo e alta efetividade. Uma narrativa pode ser disseminada rapidamente em poucos instantes, e mesmo em resposta a uma operação militar, o que mostra que não há mais o monopólio estatal neste campo.

Uma resposta a tais desafios inclusive se opera de maneira ativa, fazendo com que tropas em operações portem equipamentos de vídeo que gravam e transmitem em tempo real a ação, não servindo mais somente para observação do comando da missão, mas também como maneira de proteger a narrativa construída em torno da ação. O acesso dessas imagens e informações em tempo real permite ao comando elaborar uma resposta à narrativa opositora ou que deseja impedir, deter ou degradar os efeitos desejados pelo uso da força.

Assim, o conceito de Guerra Híbrida acaba se mostrando, em muitos aspectos, nada mais que uma nova roupagem, nada trazendo (propriamente) de novo (ou inovador) ao universo do fenômeno guerra. Considerar dimensões táticas para anunciar um novo tipo de guerra só leva a confusão e percepções frágeis a respeito do espectro dos conflitos atuais, incorrendo em decisões errôneas que inevitavelmente custam caro, até porque ultrapassam a simples dimensão financeira. Vale frisar que, invariavelmente, o chamado “custo” também se apresenta em forma de sangue, mormente quando fetiches supostamente revolucionários começam a ser invocados sem que se perceba uma adequada reflexão sobre as razões do uso da força.

A História tem suas voltas irônicas, especialmente a História Militar. Um exemplo dessa assertiva é testar o conceito de Guerra Híbrida por meio de um episódio da História do Brasil: a Guerra Brasílica (1630-54). Neste conflito, Portugal não tinha meios convencionais suficientes para responder ao desafio da ocupação holandesa de parte do Nordeste brasileiro. Os portugueses então iniciaram uma estratégia que hoje poderia ser considerada, por alguns estudiosos, como de Guerra Híbrida, na qual estabeleceram um comando unificado em Salvador, na figura do General FRANCISCO BARRETO DE MENEZES, e usaram com habilidade forças regulares e irregulares para enfrentar os holandeses, sabendo o momento de travar a guerra de maneira irregular, por meio de emboscadas e guerrilhas, e o momento de lutar a maneira convencional, como as batalhas do Monte das Tabocas ou as duas ocorridas nos Montes Guararapes. Com o recurso à diplomacia e o uso de forças navais, que passaram a impedir ou dificultar o acesso holandês ao domínio no Brasil, os portugueses construíram uma vitória usando os parcos recursos a mão, impedindo uma presença duradoura dos holandeses.

Por meio de uma política hábil, se aproveitando de equívocos cometidos pelos holandeses, os portugueses souberam conquistar, ou em alguns casos, reconquistar as simpatias de lideranças locais, o que se provou decisivo para alterar a balança de forças no conflito, conferindo aos portugueses os efetivos que eles não possuíam para fazer a guerra contra os holandeses. Em alguns momentos, a cooptação das lideranças locais se deu simplesmente por ação dessas, ao perceber que estar do lado holandês já não se mostrava vantajoso. Basta ver as manifestações de luso-brasileiros em 1651 em Pernambuco, reivindicando cargos e comandos a Coroa Portuguesa, que seriam prêmios devidos aos esforços para expulsar os invasores.

Outros exemplos surgem no horizonte, ao se observar a campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial, no Teatro de Operações da Itália. Os brasileiros tiveram de lidar com um cenário que estaria sob determinado ponto de vista, confortavelmente acomodado dentro do conceito de Guerra Híbrida. As tropas brasileiras atuaram junto a unidades regulares dos Aliados, bem como elementos irregulares italianos. Para além do combate convencional, ainda havia o uso em larga escala de guerra psicológica por parte do comando aliado, tanto para motivar as tropas quanto para afetar as forças inimigas, em especial as divisões alemãs.

Para além disso, destaca-se o terreno das operações, dominado pela cadeia montanhosa dos Apeninos, uma realidade muito provavelmente não concebida pelo planejamento militar brasileiro quando da preparação da tropa ainda no Brasil. O terreno fez com que, nos dois invernos da campanha, de 1943-44 e 1944-45, a frente tivesse sua mobilidade reduzida a um passo parecido com o da Primeira Guerra Mundial (1914-18), com pouquíssimos avanços durante este período.

Outro importante fator foi o agressivo uso de forças de operações especiais junto a grupos irregulares na retaguarda inimiga para dificultar a atuação dos alemães, sendo que mesmo em ataques realizados pelas forças convencionais dos Aliados, incluindo-se aí a FEB, houve o recurso às forças irregulares para apoiar as ações das tropas. Essa combinação de recursos diversos, considerando-se a complexidade da cadeia de comando dos Aliados, envolveu os efetivos de 27 diferentes nações.

Vale esclarecer que, para parcela expressiva de estudiosos da polemologia, fora o aspecto tecnológico, é difícil perceber, em situações recentes, hipóteses incontrastavelmente consideradas como de Guerra Híbrida, em especial muitos aspectos da própria atuação russa na Ucrânia, na crise que decorre desde 2014, – e, posteriormente, em 2022, quando o conflito russo-ucraniano passou a se apresentar de forma direta -, algo, portanto, muito diferente do feito pelos portugueses para reaver o Nordeste brasileiro no século XVII ou no desempenho operacional da FEB em meio ao complexo cenário do Teatro de Operações da Itália, na Segunda Guerra Mundial. O exame da História Militar poderá demonstrar outros exemplos semelhantes que mostram o emprego da força (notadamente em sua restrita dimensão militar) e que podem ser caracterizados como exemplos de Guerra Híbrida.

Dessa forma, a viabilidade de se considerar a Guerra Híbrida, como um conceito cientificamente válido, reside muito mais na criação de uma mentalidade e de uma consciência situacional (que seja capaz de sensibilizar de soldados nos campos de batalha a lideranças políticas) do que propriamente, de forma mais ortodoxa, na simples introdução de mais uma designação polemológica, considerando que suas ferramentas estão presentes, são de baixo custo e sua coordenação pode ser realizada por um Estado ou por atores não-estatais e, talvez, reconhecendo-se, em necessária adição, uma diferença marcante entre operações encobertas e dissimuladas. Como o emprego de todas essas especificidades pode criar diversas dificuldades para as forças desdobradas no terreno, seja por problemas em comunicações (por meio de medidas ativas do inimigo), seja por pressões sociopolíticas, derivadas da exibição e manipulação de informações disseminadas através da internet e redes de notícias, resta conclusivo que um conceito assim pode ser manifestado com um propósito útil, ao criar esse tipo (peculiar) de mentalidade. Sabendo do desafio e da complexidade que ameaças “híbridas” oferecem, espera-se, nesse diapasão, que as lideranças políticas entendam os custos ao dispor (ou não) de forças perfeitamente compatíveis para conter tais ameaças.

Nesse sentido, uma abordagem classificatória mais detalhada pode ser adequada ao propósito de conciliar as variadas vertentes conceituais da Guerra Híbrida, inclusive assinalando as diferenças entre as traduções designativas mais amplas de Conflito Híbrido e mais restritas de Guerra Híbrida e as diferentes noções de guerra não-declarada encoberta (oculta e disfarçada; porém sem autoria e/ou atribuição a terceiros) e dissimulada (em regra oculta e disfarçada, ainda que excepcionalmente também ostensiva, mas sempre através da atribuição de falsa autoria a terceiros).

Diagrama 9: Conceito (Amplo) de Guerra Híbrida

É cediço reconhecer, por outro prisma, que o fenômeno Guerra ainda existirá por um bom tempo, mas isso não quer dizer que ele seja imutável ao longo do tempo. Poderão ocorrer mudanças no modo como fazer a guerra, da maneira que se trava combate, mesmo na própria articulação da estratégia. Inovações fazem parte e têm seu papel nos campos de batalha e nos escalões de tomada de decisão. Inovações são, em essência, uma das formas de observação de como o conflito se transforma com fatores diversos como a sociedade, a economia e o surgimento de novas tecnologias. Entretanto, sem dúvida, o conceito de Guerra Híbrida não é, para parcela expressa dos estudiosos da guerra, necessariamente parte disso; ele é mais, para esse conjunto de doutrinadores, fruto de práticas já presentes ao longo do tempo, do que propriamente algo novo (ou inovador) nos conflitos contemporâneos.

Destarte, muitas dúvidas ainda persistirão quanto à perfeita caracterização conceitual, no seio da ciência polemológica, quanto à expressão mais ampla “Conflito Híbrido” e mesmo em relação a sua vertente mais restrita “Guerra Híbrida”. Todavia, esse é o desafio da própria dialética da ciência da guerra e da sociologia dos conflitos e, assim como no passado, muitos conceitos que foram simplesmente ignorados (ou mesmo ridicularizados) se tornaram doutrinas concretas (ex vi a concepção inovadora francesa, do então coronel CHARLES DE GAULLE, sobre a inversão da ordem de batalha, com a concepção clássica da infantaria antes apoiada por blindados, sendo invertida, pelos doutrinadores alemãs, na Segunda Guerra Mundial, originando a blitzkrieg), assim como as aparentes “ideias geniais” e inovadoras que simplesmente pereceram no esquecimento dos manuais (ainda que, em algum tempo, as tenham adotado). Valem, portanto, as lições do general prussiano CLAUSEWITZ que, com mérita propriedade, afirmou que a guerra é um camaleão sempre apto a se transformar, incorporando novas (e inovadoras) concepções.

¹ Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR), Professor Emérito da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército (EsAO), Conferencista Especial da Escola Superior de Guerra (ESG) e Membro da Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (SBDA), da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB) e da Academia Brasileira de Defesa (ABD). É coautor da obra “Das Novas Guerras (Fenomenologia dos Conflitos Armados)” (BIBLIEx, 2019, 576 págs.). Site: https://reisfriede.wordpress.com/ . E-mail: reisfriede@hotmail.com .

Imagem de Destaque: https://global-strategy.org/guerra-hibrida-concepto-atrapalo-todo/

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