por Thiago da Silva Pacheco
Qual a importância de uma história da Espionagem e das Operações Secretas? Elas podem se inserir numa interface entre a História Política e a História Militar? Em caso afirmativo, como lidar com a evidente questão do segredo em relação a estas figuras?
A figura do espião tem sido amplamente explorada no cinema, nas HQs e nos videogames. Elegantes e impetuosos, estes personagens surgem nas diferentes mídias realizando ações espetaculares relacionadas ao macguffin de alguma trama rocambolesca, porém pouco definida.
Uma busca histórico-social desconstrói com facilidade este clichê. Espiões pouco têm de glamorosos, sendo recorrentemente amadores em sua atividade. Falamos de gente comum: jornalistas, funcionários de embaixadas, intelectuais, refugiados políticos, cortesãs ou meretrizes, artistas e esportistas. Pessoas que se envolvem no jogo da espionagem por razões que vários autores como Michael Herman (1996), Henry Crumpton (2013) e Charney e Irving (2014), sintetizam no acrônimo MICE – Money, Ideology, Coercion, Ego.
Ou seja, homens e mulheres que prestam informações em troca de dinheiro, que o fazem por questões ideológicas, que são coagidos, senão chantageados a fazê-lo, ou que simplesmente anseiam pelo contraditório status de serem “agentes secretos”. Diferem de quem é realmente profissional do campo, os chamados “oficiais de Inteligência”, que são formados em escolas ou cursos sobre o assunto, onde aprendem o tradecraft da espionagem: técnicas de disfarces, criptografia, uso de tintas secretas e outras parafernálias de comunicação, campana, ocultamento de objetos, propaganda, interrogatório e fuga (CEPIK, 2003, p.36-37).
Mas mesmo para os profissionais da espionagem, o trabalho é moroso. Ao contrário da narrativa cinematográfica, espiões raramente saltam de helicópteros, trocam tiros manobrando lanchas em Viena, ou enfrentam inimigos num trem em alta velocidade. Sua função é, como diz o próprio nome, espiar. Eles conquistam confianças, estabelecem conexões, fazem contatos e, por fim, transmitem o que sabem para a Agência que os recrutou. A última coisa que querem e pretendem é chamar a atenção: na verdade, vivem normalmente como qualquer outra pessoa. Apesar de arriscado, a não ser que algo dê errado, é um trabalho cotidiano e sem nenhuma ação.
Tal atividade é encontrada desde a antiguidade. Os assírios mantinham de Polícia Secreta chamada de “Olho do Rei” (NAVARRO, 2009, p.39), homens que viajavam sob disfarce fazendo amizades, estabelecendo contatos e se misturando à população. Os persas não apenas aprenderam este método como o copiaram.
Os romanos, por sua vez, estabeleceram quatro categorias de informantes: procursatores – batedores que iam adiante das tropas – exploratores – batedores de longo alcance, que penetravam além das linhas inimigas – speculatores – espiões localizados em território hostil – e os indices – informantes e confidentes cooptados entre os inimigos (KEEGAN, p.27; NAVARRO, 2009 p. 61).
No Extremo Oriente o ato de “espiar” – ou seja, observar sem ser notado – pensado no clássico Arte da Guerra. Ali, Sun Tzu teria ensinado: “Se um soberano iluminado e seu comandante obtêm a vitória sempre que entram em combate e alcançam feitos extraordinários, é porque eles detêm o conhecimento prévio e podem antever o desenrolar de uma guerra”.
Seguindo em seu raciocínio, Sun Tzu estabelece cinco tipos de informantes, “(…) pessoas que, claramente, conhecem as situações do inimigo” as quais. um general deveria aprender a mobilizar: os Nativos, que vivem no território inimigo; os Internos, que servem na burocracia ou exército inimigo; os Duplos, que são espiões do inimigo que aceitem trabalhar para nós; os Dispensáveis, espiões para os quais se dará informações falsas a fim de permitir que seja pego pelo inimigo, e os Sobreviventes, que são pessoas capazes de penetrar e retornar continuamente no território inimigo.
Do outro lado do Mar do Japão, o Bansenshukai foi redigido durante Período Edo (sec. XVII-XIX). A obra era composta por tradições orais difusas, escrita/compilado a partir do mito dos lendários ninja. Se por um lado as sofisticadas técnicas de espionagem e guerra irregular do Bansenshukai demonstram uma consciência teórica acerca do que hoje chamaríamos de Espionagem e Operações Especiais, por outro a figura exagerada dos ninja seria apenas uma “tradição inventada” (TURNBULL, 2014).
No ocidente, é do início da Idade Moderna até o século XIX que ocorre a racionalização da atividade. Nos séculos XVI e XVII, devido às relações entre os Estados Europeus, era necessário o conhecimento acerca de outras potências por parte dos governantes, e espiões com cobertura diplomática procuravam proteger segredos de Estado por meio de documentos secretos. Foi a origem moderna da criptografia, que demandou métodos de escrita secreta e, consequentemente, tentativas de decodificação nas chamadas “câmaras negras” (Black Chambers e Cabinet Noir).
Na Inglaterra, Francis Walsingham, enquanto secretário de estado de Elizabeth I (1573), tinha como uma de suas mais importantes funções “the intelligence”, ou seja, informações sobre potências estrangeiras como a Armada Espanhola em 1587. Esta sobreposição entre Diplomacia e Espionagem só foi dissipada no século XX, após a segunda Guerra Mundial, mas, ainda assim, o uso da “cobertura diplomática” é comum na atividade de Inteligência até hoje.
No século XIX, o aumento do volume das tropas e as novas tecnologias marítimas levaram a necessidade do uso do telégrafo e do rádio para comando. Ao mesmo tempo, se deu a formação das polícias como entendemos hoje, incluindo o “advento da Polícia Criminal” que não se restrinja a impedir os crimes, mas também a elucida-los, surgindo assim unidades de polícia voltadas para o trabalho investigativo e processual. Os órgãos policiais também desenvolveram segmentos voltados para a investigação e repressão a criminosos políticos, ou seja, opositores do Estado, dando origem às Polícias Secretas e ao uso da espionagem por parte destas instituições.
As duas guerras mundiais ampliaram as demandas tecnológicas acerca do trabalho de coleta de dados, e envolveu trabalhos intensos de infiltração, recrutamento de informantes e fomento de conflitos irregulares atrás das linhas inimigas. Virginia Hall na França, o(a)s decodificadore(a)s de Bletchley Park na Inglaterra e a Orquestra Vermelha da URSS espalhada pela Europa são exemplos deste trabalho incansável na guerra secreta. Quanto a operações secretas como sabotagem, observação avançada e guerrilha, destacaram-se os agentes do SOE que, sob as ordens de Churchill, tinham a incumbência de “incendiar a Europa” (KEEGAN, 2006). A Guerra Fria, que se seguiu, levou esta esforço a novo”s patamares humanos e tecnológicos, incluindo as chamadas “Operações Encobertas”.
E são as Operações Encobertas o campo de ação propriamente dito dos “Serviços Secretos”. Elas ocorrem justamente quando a espionagem não é suficiente, ou quando um determinado Estado opta, considerando inviáveis as soluções militares e diplomáticas, por guerra irregular, sequestros, assassinatos, resgates, black propaganda e sabotagens (CEPIK, 2003, p. 61-64). Estas atividades são postas em prática por mercenários, militares ou ex-militares das Forças-Especiais, atendendo aos interesses políticos e econômicos de determinados governos.
Nestes casos, o complexo jogo da política e das Relações Internacionais se impõe, substituindo a ingenuidade maniqueísta em torno destas figuras cujas missões, embora pareçam cinematográficas, são altamente discretas, com o mínimo de estardalhaço possível e por meio de métodos eticamente questionáveis.
Tanto no caso dos espiões como dos agentes de Operações Encobertas, as figuras envolvidas com “serviço secreto” necessitam da discrição e invisibilidade. Por isso descobrir tais figuras é um desafio para aqueles que se debruçam sobre o tema. Por um lado, se trata, para o historiador, de capturar as mulheres e os homens que atuam em tais atividades, mesmo que por trás dos “escritos mais insípidos” – como os herméticos relatórios de Inteligência – e “das instituições mais desligadas daqueles que a criaram” – como as próprias Agências de Inteligência – tal como orientou o grande mestre Marc Bloch (2002).
Por outro, o sigilo que encobre as mulheres e homens envolvidos com missões secretas se torna o principal desafio da empreitada, para a qual a Pirâmide de Herman, o acrônimo MICE e a análise crítica tanto dos relatos biográficos de ex-agentes como dos documentos oficiais dos órgãos de Inteligência poderiam consistir de arsenal teórico metodológico (NAVARRO, 2009).
Estas investigações sobre espiões e espionagem, assim como sobre “ações secretas” e “operações encobertas”, podem se inserir na Nova História Política e na Nova História Militar. A primeira, por muito tempo acusada de ser personalista, episódica e elitista, tem buscado inserir novos atores e lançar luz sobre a participação das massas e de grupos sociais específicos tanto nos eventos quanto nas estruturas políticas (REMOND, 2003). Ora, espiões têm municiado diplomatas e governantes desde o início da modernidade, participando diretamente dos fatos políticos, ainda que de forma invisibilizada. Não é por acaso, portanto, que o Cardeal Richelieu pagava por confidentes cujas informações o teriam tornado “o homem melhor informado da Europa durante o reinado de Luís XIII” (NAVARRO, 2009). Em contextos ditatoriais, delatores e colaboradores, sob o manto do segredo, dão sua parcela de sustentação ao regime e dele se valem para vinganças e rixas pessoais (DA SILVA, 2010).
Por outro lado, no mundo moderno, quando se observa as democracias, percebe-se que justamente por elas existem no constante dilema entre segredo e transparência (CEPIK, 2003),que a atuação de quem informa, como e sobre quem informa, ganha relevância.
Na mesma direção, diante das reconfigurações da geopolítica e da política contemporâneas, quando se trata de problemas de segurança interna em meio às disputas por poder entre poderes estatais e para-estatais, é relevante saber também como se dão as ações que antecipam e roubam informações, desinformam e geram confusões, encobrem e despistam etc.
E é nesta direção que também podemos encontrar contribuições a partir da Nova História Militar, que tem se ocupado dos rostos ignorados pela guerra nas experiências dos praças, para além dos relatos dos comandantes (SOARES E VAINFAS, 2012). Há homens e mulheres que têm tomado parte na guerra por meio da disputa pelo segredo, nas operações especiais, na sabotagem e na guerrilha desde a Antiguidade, dos Olhos do Rei na Assíria e na Pérsia, dos exploratores e indices que serviam aos Romanos, até os jovens do SOE (Special Operations Executive), os agentes secretos do Mossad e os membros das Forças Especiais em diferentes contextos do século XX e início do século XXI (KEEGAN, 2006, p.27; NAVARRO, 2009 p. 61).
No caso do Brasil, o foco seriam os militares que compunham a comunidade de informações e de segurança durante a Ditadura Militar – suas trajetórias individuais e prosopográficas, sua cultura institucional, suas perspectivas, etc. – e, mais recentemente, as unidades especiais das nossas Forças Armadas, de reconhecida capacidade técnica.
Numa possível afluente desta perspectiva, quando se lança luz sobre as atividades de espionagem/operações encobertas e sobre os indivíduos que a conformam, torna-se possível também fazer um contraste com as formas pelas quais tais práticas e figuras têm sido construídas pela indústria cultural, onde pululam serviços e agentes secretos enfileirados de forma maniqueísta em missões mirabolantes, cimentando a retórica das potências ocidentais e os estereótipos acerca de seus concorrentes.
Assim, indagar sobre quem são os agentes secretos, como são recrutados e sob quais interesses, assim como o que são as ações secretas e como se dão as operações encobertas, abre um amplo campo a se explorar dentro da História Política e da História Militar. O segredo das atividades dos espiões é um desafio, mas não uma impossibilidade para o historiador, distante do calor do momento e sensível à compreensível necessidade de sigilo por parte das Agências de Inteligência.
Ao nos desprover do segredo que cerca tais atividades e ao nos despir do glamour que o cinema e a literatura lhes concedeu, torna-se possível, portanto encontrar, numa história dos espiões e dos agentes secretos, algumas das partes significativas da política e da guerra no decorrer de toda História.
Bibliografia
ANTUNES, Priscila C. B. SNI & Abin: uma leitura dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2002
BLOCH, Marc. Apologia da História e o Oficio do Historiador. Rio de Janeiro: 2002.
CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: FGV. 2003.
CHARNEY, David L.; IRVIN, John A. A Guide to the Psychology of Espionage. AFIO’s Intelligencer Journal, 2014.
CRUMPTON, Henry A. A Arte da Inteligência: os bastidores e segredos da CIA e do FBI. Barueri: Novo Século, 2013.
DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira; Karl Schurster; Igor Lapsky; Ricardo Cabral & Jorge Ferre. (Org.). O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Multifoco/TEMPO, 2010.
HERMAN, Michael. Intelligence power in peace and war. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.: p. 61-66.
KEEGAN, John. Inteligência na Guerra: conhecimento do inimigo, de Napoleão À Al-Qaeda. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NAVARRO, Diego. Tres mil anos de informacion y secreto. Plaza y Valdes: Madir, 2009.
QUADRAT, S. V.. A preparação dos agentes de informação e a ditadura civil-militar no Brasil. Varia História (UFMG. Impresso), v. 28, p. 19-41, 2012.
REMOND, René. Por Uma Historia Política, Editora, FGV, 2003.
SOARES, Luis Carlos; VAINFAS, Ronaldo. A Nova História Militar. In:CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
Muito bom!
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