Onna-Bugeisha: As Mulheres na Guerra Samurai

de

Prof. Esp. Douglas Magalhães Almeida

Há muito mito e rumor sobre o que é designado de “Mulheres Samurais” quando falamos de Japão. Denominadas como Onna-Bugeisha ou Onna-Musha, o que podemos afirmar é que as fontes realmente revelam que mulheres combateram no Japão, porém um dos principais aspectos históricos incluem que não eram classificadas como samurais, se tornando equivocado o título de “Mulheres Samurais”, afinal eram muito além desse status.

Não é corriqueiro noutros impérios haverem registros antigos tão detalhados de seus combatentes como no Japão. O comum é encontrarmos no mundo documentações detalhando tropas como um todo, biografias de lideranças ou mesmo de grandes heróis, contudo na maioria das vezes, em especial a partir da segunda metade do séc. XI, encontramos registros detalhados entre os Bushi (guerreiros japoneses) dos quais se destacam os samurais e soldados imperiais provenientes de abastadas famílias nobílicas. Até os acontecimentos da Guerra Genpei (1180-1185) a documentação histórica era focada em exaltar grandes feitos envolvendo a alta aristocracia, assumindo em crônicas o relato de figuras épicas ou mesmo criadas como lendas, o que dificulta ao historiador identificar até que ponto o personagem citado possivelmente existiu e realiza atos heroicos fantásticos ou são formados apenas pelo próprio imaginário da época ou de eras posteriores.

A partir do final do século XII com o estabelecimento do Shogunato Kamakura em 1192 a forma de produzir essa documentação mudou bastante, havendo uma obrigação burocrática de produção de relatórios individuais por cada samurai participante nos conflitos que escreviam para seus superiores ou para a corte marcial do Shogunato no objetivo de relatar sua bravura e conseguir honrarias. Nesse momento é que a documentação pormenorizada de uma tradição de registros individuais compilados nos permite enxergar um maior quadro sobre elementos bélicos existentes nos períodos. Não afirmo que essa documentação não possa ter sido adulterada em períodos posteriores ou mesmo ainda contenha feitios fictícios para exacerbar atos pessoais, e sim que passava por um crivo muito mais rígido para o propósito a qual estava designada.

Nessas documentações, contudo, há pouca descrição da participação feminina na guerra como um todo, muitas vezes relegada a histórias dos dramas nos bastidores das cortes aristocrática e marcial ou à defesa de castelos. Podemos constatar que de fato em uma sociedade fortemente patriarcal como a japonesa registros históricos gerais e sobre um coletivo (tropas, clãs ou uma guerra no geral), escritas em maior parte por homens, esses nomes ficariam relegados a um segundo plano. Contudo, mesmo as mulheres tendo ensino e sabendo escrever, produzindo cartas e obras literárias relevantes, não há presença de tanta documentação de burocracia marcial feita por elas mesmas. Esse ponto ocorre porque o fenômeno bélico das mulheres combatentes é normalmente considerado ao que chamam de “mulheres samurais”, entretanto, esse termo revela uma figura histórica que não existiu, ao menos com mulheres assumindo um estamento de status e privilégio social reconhecido pelo governo do Shogunato vigente. Salvo durante os eventos do Sengoku Jidai (1467-1603), onde através da fragmentação do poder central e a expansão dos conflitos levou a uma maior liberdade de mulheres usarem armas sem necessidade de reconhecimento do Estado, e onde ser samurai estava para além de cargos e status.

Entendendo que Onna-Musha ou Onna-Bugeisha definem mulheres combatentes para aquém do conceito de samurais, podemos também compreender que elas existiram na história japonesa muito antes desses famosos guerreiros terem surgido. O primeiro registro que temos de atuação de mulheres em guerras se dá ainda em tempos pré-históricos, em meados do séc. I d.C., na Era Yayoi (c. 300 a.C. – c. 300 d.C.), conforme descobrimos por vestígios materiais encontrados a partir das escavações realizadas em 1950, no sítio arqueológico Neshiko, na ilha de Hirado, ao sul do arquipélago japonês. Ali os arqueólogos, por meio de exames no crânio e na extração de dentes, identificaram que eram restos mortais de uma mulher líder de assentamento que tinha posição de comando em combate.

Sítios arqueológicos apresentando a presença de vestígios materiais de mulheres guerreiras continuam aparecendo até cerca do século IV quando escavações mostram a presença de entombamentos em Kofuns, tumbas feitas em montes artificiais de terra, com os corpos femininos cercados por objetos pessoais que incluíam armas e armaduras.

Nas lendas encontramos diversas representações dessas mulheres guerreiras, para começar a Kami (divindade japonesa) principal da casa Imperial, da qual o Imperador por si mesmo descenderia segundo a mitologia Shintoísta: Amaterasu-no-Mikoto, Deusa do Sol e da Ordem. Ela ainda que seja imageticamente representada como uma dama pacífica e vaidosa em trajes aristocráticos, aparece como uma guerreira liderando tropas nos mitos relatados em duas obras, Kojiki (710) e Nihon Shoki (720). Nelas ela aparece enfrentando seu irmão Susano-O-no-Mikoto, o Kami do Caos e das Tempestades, e portando um arco-e-flecha sagrado, uma espada e liderando tropas das Planícies Celestiais. Além de que nas origens dos primeiros imperadores mortais do Império Yamato, ela teria entregue seu arco mágico e uma espada, esta última que faria parte das relíquias da Casa Imperial até tempos atuais.

Ainda o Nihon Shoki narra eventos de lendas onde no passado haveriam grandes rainhas que dominavam reinos pelo arquipélago e não reconheciam o Império Yamato como soberano (tais povos eram chamados de Tsuchigumo), tendo enfrentado os exércitos dos míticos Imperador Jimmu e Imperador Keiko.

Das lendas ainda temos figuras de outras mulheres famosas, como a da Imperatriz Jingu (169-269) que na mesma fonte primária citada acima, é narrado que reinou por quase 70 anos, liderando suas tropas para uma guerra de conquista na península coreana onde subjugou dinastias como de Silla, Baekche e Goryeo. Após 3 anos de guerra contra os reinos coreanos retornou e deu a luz ao Imperador Ôjin, considerado a encarnação do próprio Hachiman, o Kami da Guerra. Dentre elementos fantásticos em sua história, consta que a imperatriz venceu sua primeira grande batalha naval lançando ao mar uma pérola encantada que magicamente abriu as ondas e engoliu os navios de guerra rivais, assim como outro ponto tem relação com o nascimento do próprio Imperador Ôjin, pois ela teria engravidado antes de deixar o Japão e deu a luz só 3 anos depois.

Tomoe Gozen é outro nome que gera diversos desafios historiográficos que estudam os acontecimentos do período na transição do Período Clássico para o Feudal, havendo poucos registros materiais – bastante questionáveis – sobre sua existência e pouca documentação sobre si. Assumida como uma lenda, ela está presente em duas fontes primárias repletas de heróis míticos e fantasias, o Heike Monogatari e o Genpei Jôsuiki. De acordo com a história, em que não temos noção de sua data de nascimento ou falecimento, sabemos que ela esteve presente nos conflitos da Guerra Genpei (1180-1185), servindo sob o brasão de Minamoto no Yoshinaka liderando uma tropa de cerca de 300 samurais contra o clã Taira, e futuramente ajudando seu lorde na Batalha de Awazu, em 21 de fevereiro de 1184 contra o próprio Clã Minamoto, onde foram derrotados. Existem 8 lugares em lugares distintos do arquipélago japonês onde se encontram monumentos funerários que dizem ser dela.

De um período próximo, em 1201, temos relatos mais consistentes de uma guerreira de família samurai, chamada Hangaku do Clã Jô, que lutou contra o Shogunato nessa data contra o poder ascendido dos Minamoto comandando cerca de 3 mil guerreiros. Mas foi derrotada e acabou se casando com Asari Yoshitô, sob os auspícios do Seii-Tai Shôgun Minamoto no Yoriie. Dela temos citações na obra Azuma Kagami, que reúne textos em forma de registros escritos como crônicas medievais sobre o Shogunato de Kamakura.

A participação da mulher na guerra japonesa no final da Antiguidade Clássica e durante o Período Feudal tinha como principal fator não que fossem samurais reconhecidas pelo Estado, já que nem assumiam os privilégios do status guerreiro e nem eram passíveis de reivindicar honrarias ou recompensas de seus feitos, e sim que assumiam responsabilidades marciais para defender os interesses e as terras que compartilhavam com seus clãs. Como as propriedades eram herdadas igualmente por mulheres e homens entre os séculos XII à XVI, fosse pela morte do marido, pai, filhos e outros parentes, acabavam ambos tendo de saber liderar tropas e comandar quando fosse necessário.

Nem todas as Onna-Musha são combatentes no entanto, por vezes eram mulheres que nunca pegaram em armas, mas ao terem nascido em famílias de guerreiros samurais tinham privilégios e participação em decisões cruciais. Um dos maiores expoentes nesse caso é a dama Hôjô Masako, a qual era esposa do primeiro Seii Tai-Shogun, Minamoto no Yoritomo, e que assumiu o clã ao se tornar viúva e seus descendentes terem falecido em conspirações do clã. Assumindo responsabilidades políticas, era quem negociava em nome do Shogunato com vassalos e com a corte imperial, mantendo punho firme na manutenção do poder central do governo samurai.

Se a documentação dos períodos antigo e feudal inicial é complicada historiograficamente pela presença constante de figuras lendárias e míticas, o mesmo já não pode ser dito do Feudal Médio. A presença de Onna-Musha é largamente reportada nos registros que compreendem o Sengoku Jidai, o Período das Províncias em Guerra. Com a diminuição do poder central e ascensão das autonomias locais até a fragmentação total do governo do Shogunato dos Ashikaga na segunda metade do século XV, o arquipélago nipônico encontrou diversas situações em que mulheres tomaram a frente de seus clãs para defender suas terras e interesses.

Por meio de outro artigo iremos tratar em específico essas mulheres guerreiras do Sengoku. Podemos aqui citar nomes desse período que se destacam como de Komatsu-hime que teria lutado no cerco do castelo de Ueda e pessoalmente desafiou o famoso Sanada Masayuki nos portões do Castelo de Numata em 1600; Yodogimi, do Castelo de Yodo que era esposa do samurai unificador Toyotomi Hideyoshi e se tornou castelã do Castelo de Osaka após a morte de seu marido em 1598; e Tsuruhime de Omishima, que em 1541, tendo herdado a posição sacerdotal de chefe de seus falecidos pais e irmãos mais velhos, liderou as tropas de sua ilha contra a invasão do Clã Ouchi, alegando ser ela mesma o avatar do Kami local chamado Mishima Myojin.

O estudo sobre as Onna-Musha envolve muito mais do que citar os nomes e feitos que aparecem nas fontes escritas ou imagéticas, de maneira que também devemos entender como são representadas pelas diversas documentações. Um dos pontos nos quais se destacam é que geralmente são tratadas como uma exceção e não algo comum ao cotidiano do combate, por vezes apresentadas como mulheres de famílias guerreiras que extrapolam as condições de serem castelãs e guardarem suas terras, ou que precisaram defender as propriedades do clã na falta de maridos, filhos ou demais parentes, ou que participam de levantes camponeses ou urbanos.

As documentações escritas do Período Sengoku por exemplo não apresentam com clareza a presença feminina no campo de batalha, como temos o exemplo da Batalha de Senbon Matsubaru de 1580. Achados arqueológicos mais atuais na região do conflito armado, onde combateram os aliados de Takeda Katsuyori e Hojo Ujinao, descobriram 35 corpos de mulheres que se encontram dentre os 105 restos mortais de combatentes escavados e estudados. Assim, mesmo que em períodos de Shogunato as mulheres não fossem reconhecidas como Samurai, principalmente para efeito de títulos, cargos e privilégios, isso não as impediu que intervissem em eventos bélicos, inclusive sendo muitas vezes subnotificadas.

Outro ponto que se confunde no imaginário e memória sobre as mulheres guerreiras está que são normalmente representadas em pinturas de estilos Yamato-e e Ukiyo-e portando armaduras samurais, segurando armas de haste naginata e sempre sem capacete, a fim de apresentar longos cabelos negros e traços femininos que deixem claro que não é um homem em meio ao combate. Stephen Turnbull inclusive mostra com muita maestria como diversos aspectos simbólicos das primeiras representações imagéticas de Tomoe Gozen no séc. XVII afetaram o imaginário sobre toda Onna-Bugeisha. Como podemos, nesse caso, realmente levar em conta as representações se são elas baseadas em uma mulher que teria possivelmente existido mais de 500 anos antes e que nas fontes documentais que a retratam ainda apresentarem uma ideia diferente. Ainda que as fontes Heike Monogatari e Genpei Jôsuiki a relatem como uma mulher bela, dando destaque a um fator que se preocuparam mais ao falar de uma Onna-Bugeisha do que quando citam outros Samurais, ainda diz que ela portava arco e flecha com maestria e uma espada, sem citar armas de hastes, ou em específico uma naginata.

Esse próprio vínculo da imagem canônica da mulher guerreira portando uma naginata gera consideráveis questionamentos. Esta arma que combina uma lâmina de Katana na ponta de uma haste de lança e que é usada especialmente para decepar as pernas de cavalos de guerra, aparece com bastante constância em rolos ilustrados dos períodos próximos ao séc. XIII, entretanto apenas em 1351 que aparecerá pela primeira vez como um equipamento usado por uma mulher, na fonte Boki Ekotoba. Essa documentação contém o que seria o detalhamento imagético mais autêntico de uma Onna-Musha, por ter sido produzido próximo à época dos eventos a qual narra. Ali a mulher vestindo armadura completa e sem elmo (revelando seus cabelos negros amarrados e sobrancelhas pintadas), está ajoelhada junto a outros homens combatentes enquanto segura em sua mão direita um arco e sobre suas coxas descansa uma naginata. A despeito de que o Heike Monogatari descreve Tomoe Gozen portando espada e arco com flechas, as imagens feitas sobre elas – todas tardias em questão de séculos – já a apresentaria com naginata, enquanto outros homens são representados da maneira tradicionalmente descrita na fonte.

A desinformação sobre as Onna-Bugeishas acaba gerando esse imaginário de que eram mulheres samurais (que por si tem todo um desconhecimento popular do que o termo significa, ignorando características elementares como privilégios e cargos no Shogunato), de que todas sempre usavam naginata, de que seguiam um código de honra (quando nem os homens em si seguiam obrigatoriamente) ou mesmo chegando ao nível de divulgarem a imagem da mítica Imperatriz Jingu como “uma samurai” cerca de 600 anos antes desse status guerreiro surgir.

A foto abaixo é um dos grandes exemplos de enganos fruto dessa desinformação. Representando uma mulher em armadura samurai, sentada segurando um elmo, cabelo penteado e preso com uma presilha, é muito comum de circular pelas redes sociais, blogs e mesmo sites nacionais e estrangeiros dizendo ser a imagem de Nakano Takeko (1847-1868), que durante a batalha de Aizu em 1868 liderou um grupo de guerreiras apoiadoras do Shogunato chamadas de Joshitai (ou Exército de Mulheres) contra as forças imperiais Meiji.

Acontece que sobre si temos apenas um retrato desenhado, que não há certeza ser sobre seu rosto, e uma estátua segurando uma naginata no Templo Hôkai-ji, em Aizubange, Prefeitura de Fukushima. A foto foi veiculada de forma equivocada e representa em si um ator andrógeno de teatro kabuki do álbum de fotos chamado Portraits of Japanese Kabuki actors and Geisha, de um fotógrafo anônimo e da década de 1870, contando com mais 34 figuras sob mesmos temas de atores homens jovens trajados de mulheres geishas ou samurais, e que foi a leilão pela última vez pela Galeria Bassenge, em Berlim na Alemanha em 05 de Dezembro de 2012. Um dos grandes sinais de que essa foto é falsa está no brasão em seu peito, onde traz o ornamento referente ao Clã Taira que foram exterminados cerca do século XII-XV.

Ainda há muito a se estudar sobre a participação da mulher na guerra samurai, precisando um olhar metodológico mais criterioso sobre a documentação e de interpretações menos machistas para conseguir discernir discursos e imaginários do que se é representado.

Referências Bibliográficas

BEARD, Mary Ritter. The Force of Women in Japanese History. Public Affairs Press, 1953.

KITAGAWA, Hiroshi; TSUCHIDA, Bruce T. The Tale of the Heike, Vol. I e II. Tokyo: Tokyo University Press, 1989.

TURNBULL, Stephen. Samurai Women 1184-1877. Bloomsbury Publishing, 2012.

TYLER, Royall. The Tale of the Heike. London: Penguin Classics, 2014.

WALKER, Brett. História concisa do Japão. São Paulo: EDIPRO, 2017.

Historiador pela UFF, especialista em História Militar pela UNIRIO. É Coordenador da Academia Nipo-Brasileira de Estudos de História & Cultura Japonesa do Instituto Cultural Brasil Japão. Realiza pesquisas no âmbito dos estudos asiáticos em especial acerca da memória e história dos samurais.

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