Prof. Dr. Ricardo Pereira Cabral
Em março de 1943, após a vitória na Batalha de Stalingrado (1942) o Exército Vermelho partiu para o contra-ataque obrigando as forças alemães a recuar. No entanto, durante a ofensiva, os soviéticos estenderam demais suas linhas logísticas, a linha de contato e seu ataque perdeu força. Tal fato permitiu a Wehrmacht contra-atacar e retomar Kharkiv. O Estado-Maior soviético (Stavka) estava diante de duas ações: se preparar para a continuidade da ofensiva alemã ou se antecipar e lançar a sua própria ofensiva. Stalin rompeu o impasse em favor do movimento de espera, preparando o terreno em linhas de defesa e aguardando a ofensiva alemã, ao mesmo tempo que reunia meios para um contra-ataque tão logo o Exército Vermelho conseguisse conter a Wehrmacht.
Foi uma importante decisão estratégica, pois na primavera de 1943, na Frente Oriental, a frente do saliente ao redor do Kursk, estava estabilizada devido ao esgotamento mútuo e pesadas perdas de ambos os lados. Havia também a questão da rasputitsa, o degelo da primavera que transforma estradas e campos em lamaçais. Essa pausa forçada levou os dois exércitos a reconstituírem as suas forças e fazer planos para o que fazer a seguir. Do lado soviético, o marechal Zhukov seguindo as ordens de Stalin, deu início a preparação de defesas em profundidade, a reunião de blindados, infantaria e artilharia, além de alocar reservas blindadas móveis para enfrentar o esperado ataque alemão (que se reconstituía e reforçava suas forças).
Após a contra-ofensiva ucraniana de agosto-setembro de 2022, e diante do esgotamento da forças ucranianas e início da rasputitsa, os russos estabilizaram suas linhas e começaram a preparar uma série de cinturões defensivos, visando deter os novos ataques ucranianos e consolidar o controle sobre o território conquistado. (para maiores informações ver https://historiamilitaremdebate.com.br/um-primeiro-balanco-das-licoes-apreendidas-da-guerra-da-ucrania/)
Putin tomou uma decisão semelhante a Stalin quando perdeu Kharkiv. Aceitou a perda de Kharkiv, de parte de Kherson e de territórios em Kharkiv pelo ucranianos e a estratégia de recuar para criar uma linha defensiva. Putin mudou o comando do Teatro de Operações, ordenou uma mobilização parcial, aumentou o efetivo militar do exército (Sukhoputnyye voyska, SV), o empenho das unidades aerotransportadas da Força Aeroespacial (Sukhoputnyye voyska VKS), reativou parte da BID russa que estava “hibernando”, deu os meios para a construção das linhas defensivas profundas, ao mesmo tempo que mantinha operações ofensivas em Donbass que redundaram na conquista de Bakhmut e nas operações de Avdiivka e Vuhledar. Foram tomadas providências para aumentar a disponibilidade de tropas, meios de combate e aperfeiçoamentos na logística para melhor defender Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia da esperada ofensiva ucraniana de verão. Para maiores informações vejam https://historiamilitaremdebate.com.br/qual-e-a-estrategia-da-russia-na-ucrania/ , https://historiamilitaremdebate.com.br/analise-das-fortificacoes-russas-no-perimetro-operacional-da-guerra-na-ucrania/ e https://historiamilitaremdebate.com.br/analise-da-ofensiva-de-verao-ucraniana-em-2023/).
Em 5 de julho de 1943, quando a Wehrmacht lançou a Operação Cidadela (ver https://historiamilitaremdebate.com.br/a-batalha-de-kursk-o-ponto-de-virada-da-frente-oriental/) foi recebida por uma série de três linhas de defesa escalonadas em profundidade (bem semelhante a organizada por Surovikin) e com reservas blindadas e aeromóveis na retaguarda.
Em 2023, na ala direita russa, na Linha Kupyansk–Svatove–Kremina, parece ter uma Divisão de Rifle Motorizada disponível como reserva e força de contra-ataque e, provavelmente, forças de igual valor, disponíveis no flanco esquerdo e no centro do dispositivo russo.
A demora alemã em deflagrar a ofensiva alemã de Kursk deu tempo suficiente aos soviéticos para preparar suas defesas e reconstituir suas reservas estratégias e aumentar o número de meios de combate disponíveis. Deixando de lado as evidências de que o Exército Vermelho já tinha uma significativa superioridade de forças, dois meses antes do início da Operação Cidadela.
Em 2023, situação muito semelhante ocorre com a Ucrânia, com a OTAN correndo contra o tempo para treinar e equipar as Forças Armadas Ucranianas com os meios necessários para romper as linhas defensivas russas e Moscou reforçando suas forças e preparando as suas defesas.
Diferente de 1943 da Alemanha nazista que lutou em inferioridade numérica, em 2023, a Ucrânia detêm uma superioridade de efetivo de em torno de 3:1. Outra semelhança em relação a Wehrmacht, em 1943, as FAU tem meios de combate limitados para tentar um grande ataque em um determinado ponto da linha de defesa russa. Segundo analistas, as FAU possuem algo em torno de 6 a 10 brigadas blindadas (não se sabe o certo), sendo pelo menos 4 de cavalaria blindada e de 2 a 6 brigadas de infantaria blindada, mas com recursos logísticos limitados (munição principalmente). A tentativa de romper as linhas russas exigiriam uma grande concentração de meios em um determinado ponto frágil da linha defensiva russa. Tal concentração das suas brigadas blindadas ucranianas vai se tornar um alvo compensador para a artilharia e a VKS russa. Uma outra possibilidade de manobra seria manter suas brigadas blindadas ocultas, mas próximas da linha de contato, para que caso a infantaria consiga romper a primeira linha de defesa possam aproveitar o êxito e atacar a segunda linha.
Até o presente momento (08/07/2023) as FAU tem feito reconhecimentos em força em determinados pontos da linha e ataque pontuais, além de tentativas de infiltrar forças especiais na retaguarda russa para operações de reconhecimento e destruições.
Lembro aos nossos leitores que os russos adotaram a tática da defesa em profundidade (Linha Surovikin) e antes de cada linha existem campos de minas e obstáculos diversos, na linha de defesa propriamente dita, trincheiras, espaldões e fortificações, atrás da linha reservas, blindados móveis e tropas aeromóveis, prontas para fechar as brechas e contra-atacar. Além de todo esse dispositivo defensivo, a VKS detém a superioridade aérea no Teatro de Operações.
Muito semelhante a defesa soviética em profundidade em Kursk (1943) que combinou a doutrina da “defesa elástica” da Primeira Guerra Mundial, com seu emprego prodigioso, de canalizar por intermédio de obstáculos as unidades blindadas alemães para concentrações de artilharia pré-demarcadas, trincheiras e bunkers, além de torná-las vulneráveis aos contra-ataques das forças-tarefas blindadas móveis russas. Quanto mais as forças alemãs penetravam na defesa, maior era a sua canalização e maior seria a densidade de fogos concentrados e contra-ataques blindados que enfrentariam. Ao que parece, Surovikin adotou um sistema semelhante.
Os ataques das divisões e regimentos panzer, com seus MBT Panther e Tiger, inicialmente fizeram um progresso localizado substancial nas defesas soviéticas. No entanto, quanto mais profunda a penetração dos exércitos blindados alemães, mais precárias se tornavam suas posições. A infantaria alemã e a logística enfrentaram um bombardeio cada vez mais intenso de fogos indiretos soviéticos. A superioridade aérea tática da Luftwaffe também foi reduzida pela barragem de fogo antiaéreo e contestada pela VVS (Força Aérea Soviética). O Exército Vermelho lançava poderosos contra-ataques com corpos de exército e divisões blindadas ao longo de cada ponto da linha de defesa que os alemães conseguissem penetrar.
A defesa em profundidade soviética funcionou muito bem. Os alemães nunca conseguiram penetrar mais do que 12 km na defesa e em uma semana de combate perderam a iniciativa tática, operacional e estratégica para o restante da guerra na Frente Oriental. No final de setembro de 1943, liderados por sua reserva estratégica, as forças soviéticas conduziram duas contra-ofensivas simultâneas contra os esgotados grupos de exércitos alemães. As Operações Rumyantsev e Kutuzov avançaram a linha de frente soviética para o oeste em quase 100 km, libertando Kharkiv e Smolensk antes da raputitsa outonal.
Voltando a Donbass, oitenta anos depois, sempre existem meios de se penetrar, mesmo nas mais fortes e profundas linhas de defesa implantadas por Surovikin, por exemplo: infiltração de forças especiais, apoio ao fogo de artilharia de precisão (obuses e foguetes), emprego de drones (ataque e ISW) e ataques de forças tarefas blindadas apoiadas por tropas de infantaria e engenharia nos pontos mais frágeis da linha de defesa. As FAU até agora (08/07/23) não lograram êxito, mas ainda tem reservas estratégicas para continuarem fazendo reconhecimentos em força, buscando as fragilidades e desgastando as defesa russas.
Outra similaridade importante é a questão da interação dinâmica do tempo e de forças para ambos os lados em qualquer situação operacional complexa. Atrasar a ofensiva (como fizeram os alemães e ucranianos) dá ao seu oponente (os russos) tempo para aumentar seu nível de preparação. No entanto, esse mesmo tempo pode ser necessário se suas próprias forças ainda não estiverem equipadas, treinadas e prontas para o combate.
A Ucrânia ainda não desistiu da sua ofensiva de verão, apesar das grandes perdas. Até o momento a estratégia russa é de se defender e esperar até que as FAU usem suas reservas a fim de romper as linhas defensivas russas. Caso os russos consigam conter os ucranianos, é provável que eles lancem uma ofensiva depois da rasputitsa de outono de forma semelhante a que ocorreu no início deste ano.
Imagem de Destaque: https://www.reuters.com/graphics/UKRAINE-CRISIS/MAPS/klvygwawavg/
Fontes
https://www.linkedin.com/pulse/kursk-donbas-1943-2023-kent-larson/
Battle of Kursk 1943 and Donbass 2022 – how history repeats itself
Semelhanças entre a Batalha de Kursk (1943) e a de Donbass (2022)
https://www.airuniversity.af.edu/Wild-Blue-Yonder/Article-Display/Article/3262857/kursk-20-how-i-learned-to-stop-worrying-and-love-the-defense-in-depth/
https://sputniknewsbrasil.com.br/20230622/como-funciona-linha-de-surovikin-que-as-forcas-ucranianas-nao-conseguem-quebrar-29324850.html
https://www.economist.com/special-report/2023/07/03/the-war-in-ukraine-shows-how-technology-is-changing-the-battlefield
https://www.globalsecurity.org/wmd/library/news/ukraine/2023/07/ukraine-230703-rferl01.htm?_m=3n%2e002a%2e3662%2ewe0ao44yu1%2e3ega
Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.
Belo artigo.
As tecnologias mudam, mas a guerra continua sendo fortemente influenciado pelo terreno e pelo clima.
Creio que o fator motivação também é um fator: os soviéticos em 1943 lutavam pela própria existência, já que o destino de soldados eslavos e ainda por cima comunistas capturados pelos nazistas era a execução sumária ou a morte trabalhando como escravo, assim como hoje os ucranianos lutam pela sobrevivência do seu país. A diferença é que existe uma parte da população do Donbass que talvez não veja os russos como invasores. De qualquer modo, a impressão é que as tropas russas convencionais carecem de motivação, e a Rússia fica obrigada a recorrer a mercenarios Wagner , Chechenos e suas já bem castigadas tropas especiais para operações ofensivas.
Mas a comparação entre 1943 e 2023 está excelente. Parabéns!