Prof. Dr. Vitelio Brustolin¹ e Prof. Dr. Ricardo Cabral²
Este é um momento estrategicamente relevante na guerra na Ucrânia: as tropas russas se retiraram da cidade de Kherson, a única capital regional ucraniana que haviam ocupado. Trata-se de uma vitória tática da Ucrânia, que desde setembro vem atacando as linhas logísticas das tropas russas na margem oeste do Rio Dnieper. Essa conquista tem efeitos estratégicos, pois retrocede o avanço russo rumo a Odessa – que poderia tirar da Ucrânia o acesso ao mar. Também tem repercussões políticas: Kherson foi “anexada” pela Rússia após um referendo, há apenas seis semanas. Putin está silencioso sobre a retirada de suas tropas.
Nos últimos 40 dias o exército ucraniano recuperou uma superfície total de 1.381 km quadrados e 41 localidades. As tropas precisam ser cautelosas ao ocupar Kherson, pois já que os russos não conseguem manter a posição, certamente não pouparão artilharia. Kherson pode acabar sendo destruída, tal qual ocorreu com Mariupol. Ainda assim, a sua retomada é uma das maiores conquistas da Ucrânia desde o início da guerra.
Desde o fim de agosto as forças ucranianas, armadas com lançadores múltiplos de foguetes (com destaque para o M142 HIMARS), drones, conexão via satélite e apoio de inteligência da OTAN, passaram a isolar as forças russas a oeste do rio, bombardeando as pontes que Moscou usava para reabastecê-las e os arsenais na retaguarda. Os russos tentaram usar pontes flutuantes e barcos, que também foram bombardeados. A única travessia de rio remanescente era a barragem de Kakhovka, a mais de 48 quilômetros a nordeste de Kherson. Cada lado acusou o outro de planejar sabotar a barragem, o que poderia ter consequências catastróficas, como uma grande inundação de cidades e a queda no nível do reservatório atrás da barragem, que é fonte de água de resfriamento para a Usina Nuclear de Zaporizhia. Na retirada, uma seção da passagem da barragem foi derrubada por tropas russas.
Há evidências de que os russos abandonaram a ideia de retomar Kherson no curto prazo, vide a intensificação da destruição de pontes que os ucranianos já haviam alvejado. Na retirada russa foram intensificados os danos nas seguintes pontes: ponte rodoviária Antonovsky (importante rota logística que já havia sido bombardeada e tido o trânsito inviabilizado por artilharia de precisão da Ucrânia, mas que os russos terminaram de destruir); ponte ferroviária Antonovsky; ponte Darivka; e uma seção da passagem da barragem de Nova Kakhovka (fundamental para manutenção da usina nuclear de Zaporizhia). Todas essas pontes davam acesso de uma margem a outra do rio Dnieper. A retirada russa durou três dias e estima-se que 20 mil soldados russos e 3,5 mil unidades de equipamento militar se deslocaram para o lado leste do rio Dnieper.
Até há poucos dias, a destruição de pontes e o alagamento de terrenos naquela região serviriam, momentaneamente, aos propósitos tanto de russos, quanto de ucranianos. Contudo, neste momento a Ucrânia recupera terreno e é mais importante proteger a infraestrutura do que atingir as tropas russas. Além disso, as forças ucranianas precisam achar formas de atravessar o rio Dnieper para continuar empurrando as linhas russas para trás. Por outro lado, os danos das forças russas às pontes evidenciam que elas não estão planejando operações ofensivas, na margem oeste do Dnieper, no curto prazo. As tropas russas ainda ocupam 60% do Oblast de Kherson e oferecerão forte resistência a avanços ucranianos. Primeiro, pelo viés tático: agora têm o rio como obstáculo a seu favor. Segundo, por questões estratégicas: Kherson é a passagem terrestre para a Crimeia, ocupada pela Rússia desde 2014 (para fins logísticos, o acesso russo à península se dá pela ponte do Estreito de Kerch). Imagens recentes da Maxar Technologies e do satélite Satellogic mostram que as forças russas estabeleceram uma nova base, aproximadamente 70 km a sudeste da cidade de Kherson, num esforço para proteger seus equipamentos contra a artilharia ucraniana.
Visão geral dos danos à ponte rodoviária Antonivsky:
Visão geral dos danos à ponte ferroviária Antonivsky:
Cerca de 250 mil pessoas viviam em Kherson antes da guerra. Ativistas ucranianos estimam que restam de 30 mil a 60 mil pessoas. Depois que a Rússia ocupou a Crimeia, a Ucrânia cortou um canal do Dnieper, que era o principal abastecimento de água doce da Crimeia. A invasão no início deste ano permitiu à Rússia retomar o fluxo de água, mas a retirada de Kherson pode permitir que os ucranianos o interrompam novamente.
Visão geral dos danos à Ponte Darivka:
Seção danificada na passagem da barragem de Nova Kakhovka:
Cabe ainda acrescentar que, com a retomada de Kherson, a artilharia da Ucrânia passa a ter a seu alcance uma fatia da Crimeia. Caso a Ucrânia recebesse dos EUA mísseis ATACMS, que são usados no Sistema Lançador de Foguetes Múltiplos HIMARS e chegam a 300 km de raio, toda a Crimeia estaria a seu alcance. No caso, não só a Crimeia, mas todas as áreas ocupadas na Ucrânia, além de diversas cidades em território russo. É justamente por conta desse último fato que dificilmente os EUA fornecerão esses mísseis à Ucrânia neste momento, à despeito da insistência de Zelensky e tendo em vista as ameaças de Putin de passar a considerar os Estados Unidos como país “diretamente envolvido” na guerra, caso isso aconteça. Na atual conjuntura, é improvável que esses mísseis sejam fornecidos a Ucrânia e Biden tem recusado sistematicamente ceder aos pedidos de Zelensky. De qualquer forma, novos avanços das forças ucranianas pelo Oblast de Kherson colocarão cada vez mais área da Crimeia sob o alcance da artilharia, vide o mapa abaixo:
1. O objetivo político da guerra
Clausewitz é enfático sobre o propósito da guerra: o objetivo militar deve ser capaz de aproximar o objetivo político que se buscou com a guerra. Na Campanha de 1812, por exemplo, o objetivo político de Bonaparte era forçar um alinhamento da Rússia à aliança antibritânica. Para tanto, Bonaparte escolheu como objetivo militar a tomada de Moscou. O seu objetivo militar foi atingido, mas isso não foi suficiente para a obtenção do resultado político pretendido. Logo, alcançar o objetivo militar não levou ao sucesso do uso da guerra para a obtenção do propósito político.
Quando analisamos a situação da Ucrânia, a região de Donbas já estava travando uma guerra civil e teria sido menos custoso para a Rússia alegar a autodeterminação dos povos, continuar fomentando os separatistas e os municiando, e ter apoiado essa região política e diplomaticamente, do que ter atacado diretamente a Ucrânia. Boa parte do Donbas já era separatista. Se o foco fosse só esse, como alguns afirmam (ou seja, o objetivo político de uma guerra limitada, tal qual a da Crimeia) então Putin não deveria ter ido à guerra. Mas o foco nunca foi só esse, conforme se observa, desde o início da ofensiva, pela disposição das tropas russas.
Como mencionado acima, a retomada de Kherson é estrategicamente relevante porque se os russos conseguissem tomar Mykolaiv e adjacências – estendendo a ocupação de Kherson a Odessa – poderiam conectar a Transnístria. Segundo o general Rustam Minnekayev, comandante interino do Distrito Militar Central da Rússia, essa era exatamente a intenção. Se conseguisse tomar da Ucrânia todo o acesso ao mar, Putin poderia manter as suas demandas em níveis elevados. Isso posto, seguem alguns questionamentos:
Primeiro, por quanto tempo a Rússia conseguirá manter os territórios que “anexou” – violando o Direito Internacional – em 29 de setembro? Os ucranianos estão irascíveis após terem suas cidades bombardeadas, seus concidadãos obrigados a migrar e seus familiares mortos. Aqui cabe pontuar que a trindade paradoxal de Clausewitz é composta por: 1. violência primordial, ódio e inimizade; 2. acaso e probabilidades; 3. instrumento político. O primeiro destes três aspectos diz respeito principalmente ao povo; o segundo ao comandante e à sua força; o terceiro ao governo. Como os russos lidarão, no longo prazo, com um povo hostil e vingativo? Isso já foi visto no Afeganistão e nunca favorece o invasor.
Segundo, as conquistas russas, mesmo se forem mantidas, conseguiriam atender ao objetivo político desta guerra? Putin ambicionava ter na Ucrânia um governo obediente, como o da Chechênia ou o de Belarus. Isso no papel. Na prática, ele queria a soberania da Ucrânia. Esse fato fica claro no artigo de Putin, publicado no site do Kremlin, em julho de 2021. Putin não considera que a Ucrânia seja um país. Além disso, ele também queria expandir o poder geopolítico da Rússia.
A guerra que Putin tem, no entanto, possui um efeito oposto daquela que pretendia ter. As agressões à Ucrânia, tanto em 2014, quanto em 2022, impulsionaram o nacionalismo ucraniano. Além disso, neste momento, Putin é o maior propagador da expansão da Otan, vide pedido de ingresso de Suécia e Finlândia. Para completar, a dependência da Rússia em relação à China se aprofunda, gerando limitações econômicas, geopolíticas e de soberania.
A Rússia vem propositalmente sendo ambígua quanto a seus objetivos políticos nesta guerra, contudo as claras adaptações feitas na disposição das tropas no terreno (como a retirada de Kiev, por exemplo) não deixam dúvidas de que o objetivo inicial era capturar a soberania da Ucrânia.
2. Adaptações à resposta do oponente
Após perderem a iniciativa, ao se aproximarem do ponto culminante do ataque na maior parte do teatro de operações, as tropas russas convergiram à defensiva. Assim, no fim de agosto, passaram a se defender da contraofensiva ucraniana. No terreno, no entanto, os russos continuam a fazer movimentos táticos descoordenados, sem que se vislumbre quais seriam os novos objetivos políticos da guerra – sem os quais não é possível a redefinição da estratégia.
Os russos estão na terceira troca de comando (agora sob o general Sergey Surovikin) do que chamam de “operação militar especial”. Essa troca de comandos, em geral, coincide com as fases da guerra até este momento: 1. demonstração de força, usando as vantagens do atacante: a iniciativa e a rapidez; 2. ofensiva concentrada no Leste e no Sul, que apesar de bem-sucedida, implicou na perda da rapidez; e 3. contraofensiva ucraniana, com perda da iniciativa e reversão à defensiva da Rússia em alguns pontos do teatro de operações, sobretudo no Donbas, onde há apoio de milícias locais.
Se do ponto de vista doutrinário a retirada de Kherson é coerente, por outro lado, demonstra a incapacidade russa de atrair as tropas ucranianas para um combate urbano – que pelo uso do terreno, favorece emboscadas e dificulta o avanço do atacante (no caso de Kherson, a Ucrânia). Em Kharkiv, por exemplo, que fica a pouco mais de 30 quilômetros da fronteira russa, a Ucrânia usou muito bem as vantagens da espera e da posição. O resultado é que apesar da evidente vantagem logística naquela cidade, a Rússia não conseguiu tomá-la. Dito de outra forma: embora áreas urbanas sejam alvos estáticos para mísseis e artilharia, o avanço sobre o terreno é difícil para o atacante, sobretudo pela estrutura das construções de concreto armado, que mesmo alvejadas permanecem de pé e se tornam território de emboscadas, com os escombros dificultado o avanço de blindados e infantaria.
Após a retomada de Kherson, neste momento a contraofensiva ucraniana se concentra na região de Donetsk. Os ucranianos estão na nona mobilização, têm recebido um fluxo contínuo de mercenários, recursos de vários países membros da OTAN e contando com assessoria e inteligência, sobretudo dos Estados Unidos e do Reino Unido, que inclusive fizeram simulações de cenários junto à Ucrânia para planejar a contraofensiva simultânea em Kherson e Kharkiv.
3. Algumas considerações sobre o equipamento
As Forças Armadas da Ucrânia (FAU) têm empregado UAVs em larga escala e em um amplo espectro de missões (reconhecimento, vigilância, designação de alvos e ataque). Esses equipamentos, junto com a artilharia de precisão (destacando novamente o lançador de foguetes M142 HIMARS), sistema de defesa antiaérea (que limitam a liberdade de ação das Forças Aeroespaciais Russas) e blindados T-64 e t-72, têm permitido aos ucranianos manterem a iniciativa, apesar das perdas sofridas no atrito.
Além do material, as capacidades C4ISR da OTAN que permitem um alto nível de consciência situacional do teatro de operações, o emprego de forças especiais (camufladas como mercenários) e o “assessoramento” de oficiais da OTAN ao Estado-Maior ucraniano estabeleceram uma relação de relativa assimetria no emprego dos sistemas de combate ucranianos diante dos russos. Todos esses fatores se materializam em vantagens nas capacidades operativas.
Ressalta-se, ainda, o emprego de drones navais ou veículos de superfície não-tripulados (remotamente guiados) ucranianos contra navios de guerra russos nas proximidades da base naval em Sebastopol. Esses drones que a Ucrânia vem empregando interferem na ação da marinha russa, sobretudo no Mar Negro.
4. Moral das tropas
A força moral é a capacidade de lutar e continuar lutando apesar dos danos e do perigo iminente para os combatentes. Daí que os resultados de um combate possam ser antecipados na mente dos combatentes, antes que ele aconteça fisicamente. Força moral refere-se, portanto, ao efeito psicológico, à vontade de continuar lutando. É a “moral da tropa.” Neste momento, a moral russa está baixa, contrastando com o efeito que a retomada de Kherson gera nos ucranianos. Essa retomada também sinaliza para os países que apoiam a Ucrânia que os equipamentos e recursos estão sendo bem empregados e o fluxo deve continuar.
É claro que as tropas russas não pouparão artilharia sobre Kherson após terem se retirado. Será o que poderão fazer, já que estando do outro lado do Rio Dnieper e tendo as pontes sido destruídas, não poderão lançar uma contraofensiva com infantaria e blindados. É possível que destruam a cidade, que aliás, saquearam antes da retirada. De veículos a quadros e esculturas – os russos levaram tudo o que conseguiram.
É de conhecimento geral que um plano de guerra só resiste até a primeira resposta do oponente. Um plano de guerra precisa ser constantemente atualizado e adaptado. A terceira troca de comando russo depõe contra o seu plano de guerra. Neste momento, o SV (exército russo) está renunciando a grande parte do terreno conquistado em toda a linha de contato, a fim de estabelecer novas posições defensivas mais à retaguarda, o que seria coerente com a doutrina de defesa: ceder terreno, para ganhar tempo a fim de preparar posições defensivas mais fortes, desgastar o oponente, reduzindo a sua capacidade ofensiva e, assim lançar um contra-ataque. No entanto, o que se observa é que os russos recuam, estabelecem posições defensivas e, ao sofrerem um novo ataque ucraniano, recuam novamente.
Nessa altura constata-se que a mobilização de 300 mil reservistas (na verdade 212 mil combatentes) foi feita tarde demais. Também é questionável se será o suficiente para manter o terreno conquistado atualmente. Outro ponto: ao contrário do que alguns analistas têm afirmado, não é verdade que o SV e a VKS não tenham empenhado recursos ao comando russo nesta guerra, mas é notório que o emprego de táticas ultrapassadas, falta de coordenação e de um planejamento militar coerente por parte do Estado-Maior, falta de liderança e de uma estratégia clara, são sintomas da incapacidade russa de lutar uma guerra moderna contra um exército treinado e apenas parcialmente equipado pela OTAN. Por conta desses aspectos militares, em termos políticos e econômicos, a chamada “operação militar especial” tem trazido mais prejuízos do que benefícios à Rússia.
Autores:
¹ Professor de Relações Internacionais da UFF e pesquisador de Harvard: https://scholar.harvard.edu/brustolin
² Mestre e Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, professor-colaborador e do Programa de Pós-Graduação em História Militar Brasileira (PPGHMB – lato sensu), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO e Editor-chefe do site História Militar em Debate e da Revista Brasileira de História Militar. Website: https://historiamilitaremdebate.com.br
Referências
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CLAUSEWITZ, Carl von. (1832) 1980. Vom Kriege. Ed. Werner Hahlweg (Hinterlassenes Werk des Generals Carl von Clausewitz. Vollständige Ausgabe im Urtext). Troisdorf: Dümmler, 19th ed.
CLAUSEWITZ, Carl von. 1998. Théorie du combat. Paris, Institut de Stratégie Comparée / Écoles militaires de Saint-Cyr / Economica.
DINIZ & PROENÇA Jr. 2007. O Fenômeno Guerra. Texto para discussão.
Destruction of the Antonovsky bridge in the Kherson region. Disponível no sítio eletrônico: https://odysee.com/@truthteller:3/cy43d0kzppav:d
ISW, Russian Offensive Campaign Assessment, November 11. Disponível no sítio eletrônico: https://www.understandingwar.org/backgrounder/russian-offensive-campaign-assessment-november-11
Russos batem em retirada e Ucrânia deve retomar porto estratégico de Kherson, no sul do país. Disponível no sítio eletrônico: https://www.estadao.com.br/internacional/ucrania-avanca-no-sul-enquanto-russos-batem-em-retirada-putin-faz-treinamento-nuclear/
‘Humilhação para Putin’: o que a retirada das tropas russas de Kherson significa para a guerra na Ucrânia. Disponível no sítio eletrônico: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63605045
Cidadão de Kherson celebram regresso das tropas ucranianas. Disponível no sítio eletrônico: https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/cidadaos-de-kherson-celebram-regresso-das-tropas-ucranianas
https://southfront.org/
https://www.understandingwar.org
https://www.understandingwar.org/backgrounder/russian-offensive-campaign-assessment-november-11
https://www.understandingwar.org/backgrounder/russian-offensive-campaign-assessment-november-12
https://t.me/boris_rozhin (Colonelcassad)
https://t.me/rybar
Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.