Batalha de Mogadíscio: O novo Vietnã dos EUA?

de

Profº. Esp. Pedro Silva Drummond

A Batalha de Mogadíscio foi uma das primeiras batalhas enfrentadas pelos EUA após o Fim da Guerra Fria. Nesse aspecto, é importante analisar o papel dos EUA após o fim do Mundo Bipolar, a relação da Batalha de Mogadíscio com a Guerra do Vietnã e as causas e os acontecimentos que levaram os EUA a terem sofrido mais do que imaginavam no combate.

Introdução

Quando o assunto é a Batalha de Mogadíscio, a primeira coisa que precisa ser esclarecido é que Mogadíscio é a capital da Somália. A Somália é um País que faz parte do Continente Africano, localizado na região da África Oriental, e banhada pelo Oceano Índico e o Mar Vermelho. A Somália tem uma importância geográfica e estratégica muito grande, devido sua proximidade com o Oriente Médio, e consequentemente com os maiores produtores de Petróleo do Mundo.

Mapa atual da região da Somália
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/201024/HELENA%20CHEREM.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Atualmente, a costa marítima da Somália é uma das regiões mais perigosas do Continente, devido à prática de pirataria, de navios comerciais e petroleiros que tem como destino o Oriente Médio. 

Na década de 1960, a Somália conquistou sua independência dos países europeus, e manteve-se como um dos poucos países do Continente Africano a ter uma homogeneidade étnica, porém a Nação é dividida em diversos clãs. Essa divisão criou no País um clima de instabilidade, que provocou com que houvesse, em menos de dez anos depois da Independência, um Golpe de Estado, e a chegada ao Poder de Mohamed Siad Barre, em 1969, que governou o País até 1991.

Após a saída de Barre do poder, teve início uma Guerra Civil entre os integrantes de Clãs que buscavam chegar ao poder. Esse conflitou causou “cerca de 14.000 baixas e o dobro ou o triplo dos feridos, entre civis e forças combatentes e quase a total destruição da cidade de Mogadíscio”. (ALVARENGA, 2008, p.7)

Ainda segundo Nilton César Fernandes Cardoso: “as agências de ajuda humanitárias que já atuavam em território Somali antes da deposição do General Siad Barre não conseguiram dar uma resposta eficiente a essa crescente demanda, pois esses enfrentavam muitos problemas para fazer chegar o auxílio a população civil. A extrema insegurança vivida pelos voluntários e funcionários das ONGs forçava-os a se fiar em dispendiosas e poucas confiáveis proteções armadas, contratada junto as milícias que controlava determinada região, para distribuir a assistência emergencial. Isso acarretava outro problema: mesmo que involuntariamente ao injetar grandes quantidades de dinheiro nos cofres milicianos encorajava-se e mantinha funcionando a economia”. (CARDOSO, 2012, p.60)

Esse cenário que causava comoção em diversos Países do Mundo permitiu que o Secretário-Geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, obtivesse a aprovação do Conselho de Segurança de uma resolução de intervenção na Somália, o que foi aceito por unanimidade, surgindo então à resolução 733 e 751 da ONU (UNOSOM), que tinha como objetivo uma ajuda humanitária, com distribuição de alimentos.

Mesmo com essa ajuda humanitária da ONU, os resultados não eram bons, o alcance dessa ajuda era pequeno, os alimentos não chegavam aos mais necessitados. A ONU decidiu então, criar a UNITAF, uma aliança militar internacional, onde “diferentemente da primeira ação em território somali, a UNITAF contou com o apoio direto de vinte e quatro países sob o comando dos Estados Unidos, à frente de um efetivo de trinta e oito mil homens que, em última análise, foi capaz de reestabelecer o mínimo de ajuda humanitária para a população da Somália”. (DUTRA, 2014, p.16-17)

Novo Vietnã?

Quando se pensa na Batalha de Mogadíscio, como um novo Vietnã, é necessário deixar claro algumas situações. A Batalha de Mogadíscio durou menos de um dia, enquanto a Guerra do Vietnã durou duas décadas, e com a presença dos EUA, durou um pouco mais de uma década. Outra característica importante é a diferença entre os países envolvidos nos dois conflitos. Na Guerra do Vietnã, os Países envolvidos eram muito maiores do que na Batalha de Mogadíscio.

A comparação entre os dois conflitos, acontece por algumas conjunturas especificas desses eventos, como o entendimento pelos EUA de ser uma potência militar nos dois períodos e o risco pequeno de perderem as batalhas. Mesmo os EUA tendo um perdido um número de soldados menor que os seus adversários, os seus objetivos não foram conquistados e, finalmente, a opinião popular do povo norte-americano, teve como consequência a retirada das tropas dos EUA do local onde foram as Guerras. 

Nos dois conflitos os EUA eram vistos por todos, especialistas ou não, como uma das principais potências do Mundo no aspecto militar. Na Guerra do Vietnã, os EUA tinham somente na URSS a sua grande concorrente, era o período da Guerra Fria, e os outros países estavam muito distantes dos norte-americanos. Uma derrota no Vietnã não era vislumbrada por ninguém, muito menos pelos Estados Unidos.

Imagens dos aviões Norte-americanos desembarcando os soldados no Vietnã
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Na Batalha de Mogadíscio, os EUA eram o principal País do Mundo em diversos aspectos. A Guerra Fria tinha acabado há pouco tempo e nesse momento, nenhuma Nação conseguia rivalizar com os norte-americanos. Uma derrota na Somália era inconcebível, inclusive pela última amostra dada pelos Estados Unidos na Guerra do Golfo (1991).

Outra comparação que pode ser feita nos dois conflitos, foi à perda da Guerra, mesmo com um número de baixas militares menores que o seu adversário. Os EUA na Guerra do Vietnã perderam aproximadamente 60 mil soldados, enquanto os seus adversários perderam mais de 1 milhão de soldados. Na Batalha de Mogadíscio os EUA tiveram 20 baixas aproximadamente, enquanto os somalis tiveram aproximadamente 1000 mortos.

Nos dois casos, os norte-americanos saíram derrotados, porque não conseguiram conquistar seus objetivos. No Vietnã, o objetivo era não permitir o avanço do Socialismo no restante do território vietnamita, o que acabou acontecendo depois da saída dos EUA da Guerra, após um acordo de Paz com os norte-vietnamitas. Na Somália, o objetivo era humanitário, distribuir alimentos para população que passava fome. No segundo momento, o objetivo acabou se tornando retirar do poder as principais lideranças dos Clãs que governavam a Somália e dificultavam o trabalho realizado pela ONU. O segundo objetivo foi realizado com relativo sucesso, porém, com a Batalha de Mogadíscio, o primeiro objetivo não foi concluído. Poucos meses após o que aconteceu na Capital da Somália, o Presidente dos EUA, Bill Clinton, retirou as tropas norte-americanas da região.

O terceiro ponto de comparação foi à pressão interna nos EUA para retirada das tropas nos locais de conflito. O peso da opinião pública foi relevante nessas situações, após o povo dos Estados Unidos terem acesso às imagens feitas pelos meios de comunicação, dos soldados norte-americanos sendo mortos e em alguns casos, como na Somália, os corpos sendo arrastados pelas ruas.

Soldado ferido na Batalha de Mogadíscio
http://almanaquemilitar.com/site/1993/10/03/3-de-outubro-de-1993-a-batalha-de-mogadiscio/
                                                                                                                     

Batalha de Mogadíscio

A situação na Somália chegou ao conflito, quando as forças militares comandadas pela ONU começaram a prejudicar os interesses dos Clãs, que administravam o País: “estes (Clãs) já não conseguiam confiscar os bens alimentares que seguiam nas colunas, para mais tarde distribuírem conforme os seus interesses e, por outro lado, o facto de as ONG´s já não terem de pagar para garantir a sua segurança, elimina outra fonte de receita para os clãs”. (ALVARENGA, 2008, p.9)

Como forma de reagir a essas intervenções feitas pela ONU, os chefes dos clãs incentivavam a população o uso da violência contra as forças militares, e foi por causa desse estímulo, que se iniciou o conflito. Forças Paquistanesas foram emboscadas, e após esse acontecimento, o Conselho de Segurança aprovou o uso dos meios necessários para a captura dos responsáveis ao ataque as tropas paquistanesas.

O pesquisador Nilton César Fernandes Cardoso explica a situação: “a ONU tratou esse ataque como uma ‘afronta’, helicópteros militares foram utilizados para bombardear as bases de Aidid e ele foi considerado um ‘fora da lei’. O representante da ONU na Somália, Admiral Howe, numa atitude precipitada, condenado veemente pelos norte-americanos e pela própria ONU, ofereceu uma recompensa de 20 mil dólares pela captura do General Aidid”. (CARDOSO, 2012, p.68)

Os preparativos para a ação de captura dos principais aliados do General Aidid, foi iniciada em 3 de Outubro de 1993, quando as forças militares internacionais receberam uma informação: “Nossa missão era tomar de assalto um edifício situado no centro de Mogadíscio. Ás 15h32, nossos helicópteros deixaram a segurança do aeródromo e partiram num voo de três minutos em direção ao alvo. As vitimas do dia eram vários subcomandantes de Aidid, que estavam reunidos num bairro conhecido como Mar Negro. O lugar era densamente ocupado pelos homens leais a Aidid. Planejáramos terminar a missão inteira em meia hora ou menos.” (EVERSMANN e SCHILLING, 2010).

O pesquisador Hugo Atouguia Alvarenga, esclarece quais as forças usadas na captura desses aliados de Aidid, “a TFR (Task Force Ranger) seria dividida em 3 grupos: o grupo de assalto (a equipa Delta), o grupo de segurança (dois pelotões constituídos em 4 equipas de combate denominadas chalks da Companhia Bravo do 3º batalhão Ranger) e o grupo de retirada (constituído por elementos da Companhia Bravo do 3º Batalhão Ranger). O grupo de assalto e o grupo de segurança seriam infiltrados por meios aéreos enquanto o grupo de retirada utilizaria viaturas motorizadas ligeiras para se infiltrar (jipes M1044 HMMWV37 e Camiões de Transporte de Pessoal M-3538).” (ALVARENGA, 2008, p.13)

Membros da Companhia B, 3º Batalhão do 75º Regimento dos Rangers
http://almanaquemilitar.com/site/1993/10/03/3-de-outubro-de-1993-a-batalha-de-mogadiscio/

Em poucos minutos as forças de captura obtiveram êxito, e capturaram elementos da ANS, mas antes da retirada dos integrantes da ANS, boa parte das ruas de Mogadíscio se transformaram em locais de confronto. Todos os integrantes da TRF estavam sendo atacados pelos somalis, incluindo os helicópteros MH-60 (Sea Hawk), que acabaram sendo abatidos pelos RPGs.

Tripulantes do Super 64, o segundo helicóptero americano derrubado durante a batalha. Da esquerda para a direita: Winn Mahuron, Tommy Field, Bill Cleveland, Ray Frank e Mike Durant.
http://almanaquemilitar.com/site/1993/10/03/3-de-outubro-de-1993-a-batalha-de-mogadiscio/     

Após diversas perdas humanas de soldados norte-americanos, alguns helicópteros abatidos e outros atingidos foi necessário o envio de tropas compostas por paquistaneses e malaios, para conseguirem resgatar as tropas que tinham iniciado a missão. As tropas foram retiradas depois de horas de conflito com as tropas somalis.

Conclusão

A Batalha de Mogadíscio foi uma das piores derrotas dos EUA após a Guerra Fria. Os soldados norte-americanos foram preparados para uma ação rápida de captura das lideranças da ANS e acabaram envolvidos em um confronto dentro da cidade de Mogadíscio, por um período muito maior que se imaginava. Os militares dos Estados Unidos enfrentaram um grande número de pessoas dentro das ruas, bairros e estruturas da cidade.

Mapa da Cidade de Mogadíscio
http://almanaquemilitar.com/site/1993/10/03/3-de-outubro-de-1993-a-batalha-de-mogadiscio/

O conflito entre os soldados norte-americanos e os somalis em diversos aspectos demonstram suas semelhanças com a Batalha do Vietnã. Os EUA, nos dois períodos do conflito, eram vistos como uma das potências militares do Mundo e acabaram sendo derrotados. Os norte-americanos mesmo com um número de soldados mortos menores foram considerados derrotados por não conseguirem obter seus objetivos e terem que sair dos Países onde estavam ocorrendo o conflito antes do fim das questões resolvidas. Os EUA nas duas situações acabaram também sofrendo pressão interna para saída da guerra. O papel da imprensa foi decisivo nos dois acontecimentos. As imagens retratadas na área do conflito provocaram uma grande pressão no governo americano, que culminou na saída dos soldados do conflito.

As imagens da chegada dos soldados mortos e mutilados nos EUA, veiculadas pela imprensa, e dos corpos no Vietnã, assim como, os corpos sendo arrastados pelas ruas de Mogadíscio e do piloto capturado com o rosto ensanguentado, foram fatores decisivos nos respectivos momentos para a saída dos norte-americanos do conflito antes do tempo previsto.    

O Piloto e Ranger Mike Durant capturado pelos Somalis
https://www.facebook.com/GuerraseSuasCuriosidades/photos/a.1407081689558969/2026312410969224/

Nos dois conflitos aqui retratados, os norte-americanos enfrentaram uma situação que eles não estavam esperando, o apoio de parte da população aos seus adversários, no caso os norte-vietnamitas/vietcongues e as tropas leais ao General Adid, o que impôs aos soldados dos EUA uma maior dificuldade no conflito. Essa surpresa por parte dos norte-americanos é retratado pelo general John Brown, na introdução do livro de Richard Stewart, O Exército dos Estados Unidos na Somália, 1992-1994, onde o General cita: “o que, de fato, pareceu mais aterrador em relação à Batalha de Mogadíscio é que a multidão que animadamente arrastava os corpos dos soldados dos Estados Unidos era a mesma que havia sido resgatada da fome pelo país interventor”.  (STEWARD apud FERNÁNDEZ, 2013, p.133)

Inicialmente, o exército dos EUA enxergava como seu inimigo o General Adid e seus aliados que não permitiam a entrega de alimentos à população que passava fome. Essa visão mudou depois que parte do povo somali teve participação no conflito, “após os episódios dos dias 3 e 4 de outubro, Aidid foi excluído da narrativa dominante e a culpa pela situação somali passou a ser alocada nas hordas de somalis raivosos e ingratos. O inimigo começou a ser descrito como uma ‘massa furiosa’ ou como uma ‘multidão de civis enfurecidos”. (FERNÁNDEZ, 2013, p.133)

Nos últimos anos, as análises sobre o tema ficaram menos restritas aos pesquisadores e se tornou mais conhecida, após o lançamento do filme Falcão Negro em Perigo do Diretor Ridley Scott, lançado em 2001.

Capa do Filme Falcão Negro em Perigo           
https://br.web.img2.acsta.net/medias/nmedia/18/91/20/26/20134206.png

Porém, mesmo depois dos erros cometidos na Batalha do Vietnã e na Batalha de Mogadíscio, e todos os problemas enfrentados nesses conflitos pelos norte-americanos, o País continuou entrando em Guerras com características muito semelhantes às enfrentadas anteriormente, como a Guerra do Afeganistão e do Iraque, que até hoje trazem “dores de cabeça” ao governo dos EUA.

Imagem do Destaque: https://images01.military.com/sites/default/files/styles/full/public/2019-05/Black.Hawk_.Down_.choppers1200.jpg?itok=SwFjDpP0

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Bibliografia

– EVERSMANN, Matt e SCHILLING, Dan. A Batalha de Mogadíscio: Os Relatos Diretos dos Soldados da Força Tarefa Ranger.1. ed: Bertrand Brasil, 2010.

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– ALVARENGA, Hugo. Batalha de Mogadíscio. Academia Militar. Lisboa, 2008.

– CARDOSO, Nilton César Fernandes. Conflito Armado na Somália: Análise das causas da desintegração do País após 1991, 2012.

– DUTRA, Leonardo de Mello. Cinema e Relações Internacionais: O Filme Falcão Negro em Perigo e a Somália em 1993, 2014

– FERNÁNDEZ, Marta Regina. Vinte Anos Depois: A Batalha de Mogadíscio Revisitada. Revista Insight Inteligência, 2013.

– SOUZA, Maurício Corrêa de. Otimismo e Autoconfiança: Qualidades Ambivalentes da Liderança Militar. Escola de Guerra Naval. Rio de Janeiro, 2017.

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Especialização em História Militar pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Graduação em História (Bacharel e Licenciatura) pela Universidade Gama Filho (UGF), autor de Artigos em História Militar.

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