O ano de 2014 marcou o retorno das rivalidades geopolíticas ao centro do palco internacional. Desde a anexação da Crimeia pela Rússia até as disputas territoriais no Mar da China Meridional, passando pela crescente assertividade do Japão e pela influência do Irã no Oriente Médio, o mundo testemunhou uma série de movimentos que relembram as disputas de poder clássicas. Esse cenário contrasta com a visão otimista que prevaleceu após o fim da Guerra Fria, quando muitos acreditaram que a geopolítica daria lugar a uma ordem global baseada em cooperação, comércio e governança multilateral. Este artigo é uma compilação do conteúdo originalmente publicado pelo analista Walter Russel Mead no portal “Foreign Affairs”que analisa as causas e as implicações desse retorno às disputas geopolíticas tradicionais, inicialmente publicado em 2014, mas que continua atual.
A ilusão do fim da geopolítica
Após o colapso da União Soviética em 1991, muitos no Ocidente acreditaram que as grandes questões geopolíticas haviam sido resolvidas. A vitória do capitalismo liberal sobre o comunismo foi interpretada como o “fim da história”, uma expressão cunhada pelo cientista político Francis Fukuyama. A ideia era que, com a ascensão da democracia liberal e da economia de mercado, as disputas territoriais e militares dariam lugar a uma era de cooperação global focada em questões como comércio, direitos humanos e mudanças climáticas.
No entanto, essa visão subestimou a persistência do poder duro (hard power) na política internacional. Países como China, Rússia e Irã nunca aceitaram plenamente a ordem global pós-Guerra Fria, que foi amplamente moldada pelos Estados Unidos e seus aliados. Em vez disso, esses países buscaram revisar o status quo, seja através de ações militares, como a anexação da Crimeia pela Rússia, seja por meio de estratégias de influência regional, como as alianças do Irã com a Síria e o Hezbollah.
Revisão do status quo
A Rússia, a China e o Irã, embora tenham objetivos e capacidades diferentes, compartilham o desejo de desafiar a ordem internacional estabelecida. A Rússia, sob a liderança de Vladimir Putin, busca reafirmar sua influência sobre o espaço pós-soviético, como evidenciado pela intervenção na Ucrânia. A China, por sua vez, tem adotado uma postura mais assertiva em relação às suas reivindicações territoriais no Mar da China Meridional, desafiando vizinhos como o Japão e as Filipinas. Já o Irã tem usado sua influência no Oriente Médio para expandir seu poder, apoiando regimes e grupos aliados, como o governo de Bashar al-Assad na Síria.
Esses movimentos revisionistas têm em comum a percepção de que o poder dos Estados Unidos está em declínio relativo. A Rússia, a China e o Irã veem a ordem liderada pelos EUA como um obstáculo aos seus interesses nacionais e regionais. No entanto, eles evitam confrontos diretos com Washington, preferindo minar gradualmente as normas e alianças que sustentam a ordem global.
O impacto nas relações internacionais
O retorno da geopolítica tem implicações profundas para a política internacional. Em primeiro lugar, ele complica os esforços dos Estados Unidos e da União Europeia para promover uma ordem liberal baseada em cooperação e governança global. Em vez de focar em questões como mudanças climáticas e comércio internacional, os líderes ocidentais são forçados a lidar com disputas territoriais e rivalidades de poder.
Em segundo lugar, o revisionismo de países como Rússia, China e Irã tem exacerbado tensões regionais. No Leste Asiático, a assertividade da China tem levado a uma corrida armamentista e ao aumento do nacionalismo no Japão. No Oriente Médio, a influência do Irã tem alimentado conflitos sectários e desestabilizado países como o Iraque e a Síria. Na Europa, a agressividade da Rússia tem reacendido rivalidades históricas e colocado pressão sobre a OTAN e a UE.
Desafio para o ocidente
O Ocidente, especialmente os Estados Unidos, enfrenta um dilema estratégico. Por um lado, há a necessidade de responder às ações revisionistas de forma firme, para evitar que a ordem internacional seja desmantelada. Por outro lado, há o risco de ser arrastado para conflitos dispendiosos e de longo prazo, como as guerras no Iraque e no Afeganistão.
A administração Obama, que chegou ao poder com a promessa de reduzir o envolvimento militar dos EUA no exterior e focar em questões globais como mudanças climáticas e não proliferação nuclear, viu-se cada vez mais envolvida em disputas geopolíticas. A crise na Ucrânia, a ascensão da China e a influência do Irã no Oriente Médio forçaram os EUA a reconsiderar suas prioridades estratégicas.
Um crepúsculo da história
O retorno da geopolítica em 2014 desafia a noção de que o mundo havia entrado em uma era pós-histórica, onde as disputas ideológicas e territoriais seriam substituídas por uma ordem global baseada em cooperação. Em vez disso, o que vemos é um mundo onde o poder duro e as rivalidades tradicionais continuam a desempenhar um papel central.
A visão de Fukuyama sobre o “fim da história” não foi completamente refutada, mas foi posta em perspectiva. Enquanto a democracia liberal e a economia de mercado continuam a ser modelos atraentes, sua expansão não é inevitável nem isenta de desafios. Países como Rússia, China e Irã mostram que o caminho para a modernidade é cheio de obstáculos e que o poder militar e a influência geopolítica ainda são ferramentas essenciais na política internacional.
Em última análise, o mundo de 2014 nos lembra que a história não é linear. Enquanto alguns países buscam consolidar uma ordem global baseada em cooperação, outros continuam a jogar o jogo tradicional do poder. O desafio para o Ocidente é encontrar um equilíbrio entre promover seus valores e lidar com as realidades duras da geopolítica. O crepúsculo da história pode estar se aproximando, mas ele ainda está longe de ser uma noite tranquila.
Conteúdo original disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2014-04-17/return-geopolitics#/main-