Ms. Rodolfo Queiroz Laterza¹ e Dr. Ricardo Pereira Cabral²
INTRODUÇÃO
Quirguistão e Tadjiquistão são duas repúblicas oriundas da desintegração da União Soviética em 1991, com sociedades predominantemente islâmicas, economia agroextrativista e com um baixo nível de industrialização, envoltas em diversas turbulências econômicas, políticas e sociais.
As tensões sobre o acesso aos recursos na região têm uma história. Durante a União Soviética, a distribuição de terras, água e pastagens foi disputada pelas repúblicas. A controvérsia se intensificou após o colapso da URSS em 1991. Até mesmo fazendas e terrenos nas terras fronteiriças do Quirguistão e do Tadjiquistão tornaram-se territórios disputados. Segundo dados oficiais, a extensão total da fronteira entre os dois países é superior a 970 km. Até agora, de acordo com as autoridades, apenas 504 km da fronteira foram descritos.
As tensões sociais aumentaram particularmente na região de Isfara, no norte do Tajiquistão, e Vorukh, um enclave de tadjiques com uma população de 30 mil habitantes na fronteira com o Quirguistão. Quando a propriedade privada da terra foi introduzida no Quirguistão, parte das pastagens arrendadas do Tajiquistão foram registradas como propriedade privada dos cidadãos do Quirguistão.
Sob a URSS, as fronteiras administrativas não eram levadas em consideração, pois as necessidades regionais estavam acima das considerações fronteiriças. As obras de infraestrutura buscavam integrar as diversas regiões do pais e reforçar a dependência mútua dentro do país. Com o fim da URSS, os sistemas de abastecimento de água e infraestrutura, com muitos canais e sistemas de irrigação cruzam fronteiras entre os países, passaram a ser um problema, pois criaram uma situação de insegurança jurídica e transfronteiriça, principalmente nas regiões onde a fronteira não estava demarcada.
Durante a Era Soviética os projetos de infraestrutura hídricos e as relações intraestatais se desenvolveram ao longo de muitas décadas e tinham como objetivo comum a distribuição equitativa dos recursos de uma bacia hidrográfica criando uma rede de interdependência e reforçando a identidade soviética. Cumpre ressaltar que as relações eram mediadas por Moscou, sem espaço para as idiossincrasias regionais. Alguns anos após a dissolução da URSS em 1991, os acordos que regulavam o compartilhamento dos recursos hídricos deixaram de ser respeitados. A situação degenerou-se nos anos de seca e com a intensificação das consequências das mudanças climáticas. O problema de redução/irregularidade dos volumes de precipitação, agravou-se com a deterioração da infraestrutura hídrica e da utilização de técnicas de irrigação desatualizadas, que causam desperdício dos recursos hídricos.
A corrupção, os problemas de infraestrutura, o forte fluxo imigratório para a Rússia e outros países da Ásia Central, tráfico de opiáceos, altos níveis de pobreza com baixo índice de desenvolvimento humano e as fragilidades institucionais são fatores que agravam as limitadas capacidades governamentais de ambos países e são geradores de crises internas de diversos matizes que eventualmente transbordam para os vizinhos.
A mais recente crise eclodiu em setembro deste ano (2022), na instável fronteira entre os dois estados, culminando em confrontos armados de alta intensidade com reflexos geopolíticos na Ásia Central e abrindo uma crise na estrutura da Collective Security Treatry Organization (CSTO), Organização do Tratado de Segurança Coletiva, bloco militar composto por Rússia, Cazaquistão, Armênia, Quirguistão e Tadjiquistão que reúne as antigas repúblicas soviéticas na Ásia Central.
As causas e os desdobramentos geopolíticos e militares desse novo conflito do espaço pós soviético serão analisadas no presente artigo, bem como suas possíveis implicações para a arquitetura de segurança da Ásia Central, lastreada na influência da China e Rússia como potências dominantes.
DESENVOLVIMENTO DA CRISE MILITAR
Os embates na fronteira Tajik-Kyrgyz teve forte escalada no início da manhã de 14 de setembro de 2022, com um conflito armado que eclodiu entre os guardas de fronteira quirguizes e tadjiques. A causa exata não esta clara, já que os dois países deram versões diferentes:
➖ De acordo com o Ministério da Defesa do Quirguistão, militares tadjiques assumiram posições de combate na fronteira. Em resposta às exigências dos militares do Quirguistão para deixar o território, eles abriram fogo, inclusive com emprego de morteiros.
➖ De acordo com o serviço de imprensa tadjique, por volta dàs 7h00, militares do posto Bulakboshi do destacamento fronteiriço de Batken, no Quirguistão, dispararam quatro morteiros no posto avançado Kekh do destacamento fronteiriço de Isfara, no Tajiquistão, que responderam o fogo contra guardas de fronteira tadjiques.
Poucas horas depois, ocorreu outro confronto nas proximidades de Kak-Sai, distrito de Batken, no Quirguistão. De acordo com a declaração do Serviço de Fronteiras do Comitê Estadual de Segurança Nacional do Quirguistão, os soldados tadjiques abriram fogo contra o posto avançado do Quirguistão intitulado “Dostuk”. Os militares tadjiques, por sua vez, estão transferindo a responsabilidade do confronto para seus respectivos vizinhos. Depois de algum tempo, um conflito semelhante surgiu perto de Paska-Aryk , também na região de Batken, no Quirguistão, perto do posto fronteiriço intitulado “Samarkandek” .
Segundo dados oficiais, no dia 14 de setembro de 2022, dois militares das Forças Armadas do Tajiquistão foram mortos durante o tiroteio e pelo menos sete, incluindo civis ficaram feridos. Do lado do Quirguistão, pelo menos dois militares e quatro civis da região de Batken ficaram feridos.
Para estabilizar a situação e esclarecer os motivos da atuação das tropas fronteiriças dos dois países, foram realizadas negociações entre representantes dos dois lados.
Os chefes da região de Batken , no Quirguistão, e da região de Sughd , no Tadjiquistão, concordaram em patrulhar conjuntamente a seção fronteiriça de Tort-Kocho , que liga o enclave tadjique de Vorukh com a parte principal do país.
Em janeiro de 2022, ocorreu uma nova escaramuça fronteiriça, o combate resultou na morte de duas pessoas. O último grande conflito envolvendo armas pesadas ocorreu na primavera de 2021. O confronto armado entre os dois países tinha como objetivo estabelecer o controle sobre o acesso à água, recurso natural bastante escasso para ambos países. No total, 49 pessoas morreram e mais de 260 ficaram feridas e feridas.
Após uma breve trégua, mediada pela Organização de Cooperação de Shangai – SCO, bloco militar, político e econômico liderado pela China e Rússia, em que o Tadjiquistão e do Quirguistão fazem parte. Na noite de 15 para 16 de setembro de 2022, os combates recomeçaram em toda a fronteira com o emprego de armas leves. As autoridades de ambos países anunciaram a evacuação das aldeias na região da fronteira. O quadro de desestabilização estava escalando para uma crise militar e com alta probabilidade de se tornar um conflito militar de alta intensidade.
A INFLUÊNCIA DO TRÁFICO DE DROGAS NA ESCALADA DA CRISE
É importante registrar que conflitos fronteiriços entre militares tadjiques e quirguizes ocorrem com certa regularidade desde o colapso da URSS. Ambos os países compartilham mais de 900 quilômetros de fronteira, mas apenas metade foi totalmente demarcada. Até hoje, permanecem cerca de 70 áreas disputadas, com ambos os países se recusando a buscar um compromisso para a demarcação de suas fronteiras. O atrito na fronteira é intensificado nas áreas disputadas, por conflitos étnicos e disputas por recursos hídricos.
Uma das principais causas de conflito, como nos referimos acima, é a falta de acordo com a demarcação da fronteira entre os dois países. As regiões “Batken” e “Sughd” dos dois países, que compreendem a região do Vale Ferghana, que há muito são usadas como rota para o tráfico de drogas (heroína e ópio) vindo do Afeganistão, o maior produtor mundial de papoula.
O Vale de Ferghana é uma área montanhosa e de difícil acesso, que é utilizada por traficantes e contrabandistas pela quase ausência de instituições estatais de ambos países. Na ponta sudoeste desta região, fica a rodovia Batken-Isfara, onde as principais escaramuças entre o Quirguistão e o Tadjiquistão ocorrem.
Diante da pobreza extrema e fragilidade institucional, a maioria da população local (independentemente do país de residência) coopera estreitamente com os vários grupos ligados ao tráfico de drogas, sendo considerada pelos locais como a única maneira de sobreviver de alguma forma por parte de tais comunidades agrárias e sem perspectivas de ascensão social. Ademais, os nativos da região conhecem profundamente a área, incluindo as rotas pelas montanhas usadas para transportar drogas e várias mercadorias contrabandeadas ao norte para o Cazaquistão e a Rússia.
Entretanto, a rota do narcotráfico naquela região de fronteira, apesar da utilização da rede trilhas nas áreas montanhosas, que não poderiam ser utilizadas sem a conivência e/ou omissão das autoridades dos dois países, fortemente envoltas em corrupção.
A ausência de uma linha fronteira clara entre os respectivos Estados, acaba sendo um facilitador da continuidade desse esquema criminoso transacional, constituindo-se um sério obstáculo para a demarcação efetiva da fronteira e a normalização das relações entre os dois países. Mesmo algumas dezenas de metros a favor de um país ou outro, aumentaria significativamente o custo das tarifas para “viagens de trânsito”, ou seja, pagamentos de suborno por parte de traficantes de opiáceos e contrabandistas aos guardas de fronteira e militares tadjques e quiguizes.
Apesar das declarações do Talibã sobre a luta contra a produção de drogas no Afeganistão, os volumes de exportação aumentaram várias vezes desde que assumiu o controle político do país. Neste contexto, vale ressaltar que o diretor da agência de controle de drogas no Tajiquistão, Khabibullo Vohidzoda, afirma que desde que o Talibã chegou ao poder, a quantidade de drogas apreendidas do Afeganistão triplicou (em torno três toneladas contra uma tonelada no ano passado).
A província mais ativa no cultivo de opiáceos é de Badakhshan, de onde se origina a rota para a Rússia, grande mercado consumidor.
A principal e mais arriscada rota do narcotráfico é o trânsito do Ishkashim afegão pela região da capital do Tajiquistão, Ravat, na região de Sughd e pelo Quirguistão, nas áreas de Batken e Osh, em direção ao Cazaquistão.
Apesar das forças de segurança tadjiques e quirguizes já estarem fortemente corrompidas pelos “subsídios” dos traficantes e contrabandistas, existe a possibilidade de confiscar a carga. Por esta razão, há outra rota alternativa de movimento.
A segunda rota atravessa o Corredor Wakhan do Afeganistão e a Rodovia Pamir na região de Gorno-Badakhshan (GBAO) do Tajiquistão e, posteriormente a região Osh, já próxima ao território do Cazaquistão.
No entanto, o terreno difícil a região Gbao, faz com que seja impossível transportar uma grande quantidade de carga ao longo desta rota, por isso é menos rentável do que a rota através do Vale de Ferghana.
Depois de entrar no território cazaque, as caravanas atravessam as regiões desérticas escassamente povoadas do país para se deslocarem despercebidas para a fronteira russa. Lá, nestas áreas mal vigiadas ou através de suborno de autoridades alfandegárias e de fronteira, as mercadorias contrabandeadas e os entorpecentes chegam ao seu destino nas regiões de Chelyabinsk (Troitsk) ou Orenburg (Novotroitsk) e depois são distribuídas por toda a Rússia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: RISCOS GEOPOLÍTICOS
As negociações para a solução do conflito no nível bilateral há muito estão paralisadas. As lideranças políticas tadjques e quiguizes, ao que parece, não estão interessadas em concessões, sendo o componente nacionalista um fator que contribui para ocultar os problemas econômico decorrentes da pandemia da COVID-19.
Nos últimos anos, as escaramuças se tornaram comuns. Desentendimentos entre guardas de fronteira na fronteira acontecem quase todos os dias, ocasionando por vezes confrontações armadas.
As negociações bilaterais entre Quiguistão e Tadjiquistão há muito se esgotaram. Para uma solução real da questão, é necessário um fiador, como de um terceiro interessado na estabilidade na Ásia Central, que poderia ser a Rússia ou a China. A Organização de Cooperação de Xangai ou a CSTO poderiam figurar como uma das instituições mediadores.
Nem Tadjiquistão, nem Quirguistão, muito menos seus maiores parceiros comerciais, Rússia e China, parecem estar interessados em uma guerra em grande escala nas atuais condições econômicas em que os estados se encontram devido as consequências da pandemia e agora agravada pela guerra na Ucrânia, crise energética europeia e de Taiwan.
A dificuldade de se conseguir uma solução negociada para a questão dos limites fronteiriços, leva com que os conflitos na fronteira tendem a continuar, com possibilidade de agravamento ou a deflagração de uma guerra. A eclosão de uma guerra afetaria a credibilidade da CSTO como organização internacional responsável pela segurança regional tendo em vistas os beligerantes serem signatários. Além disso, existe uma grande probabilidade do conflito gerar crises humanitárias e/ou envolver outros países.
O cenário de segurança regional está se tornando mais complexo devido ao recentemente alinhamento político-militar estabelecido entre Tadjiquistão e o Irã, que resultou na construção de uma fábrica de produção sob licença de drones iranianos, e o aprofundamento de relações entre os Estados Unidos e o Quiguistão. Estes dois acontecimentos tornam o contexto regional mais complexo, na medida em que emergem poderosos atores estatais rivais extraregionais em lados opostos.
Levando em conta o que está acontecendo no Afeganistão, os exercícios conjuntos dos Estados Unidos e do Tadjiquistão e o significado desses eventos para a situação da segurança na Ásia Central, verifica-se que o cenário é de alta probabilidade de escalada do conflito na região. Este cenário instável se soma a outros que estão ocorrendo no Leste europeu e no Cáucaso, como a guerra na Ucrânia, crise política e social na Moldávia, os constantes embates entre Armênia e Azerbaijão, à instabilidade interna na Geórgia, decorrente da guerra de 2008, envolvendo as províncias da Ossétia do Sul e Abkhazia. A ocorrência desses conflitos próximos as fronteiras da Federação Russa e da China criam um cenário de instabilidade e insegurança para esses países com efeito potencialmente desestabilizador e consequências imprevisíveis.
Imagem de Destaque: https://www.novacultura.info/post/2021/05/10/quirguistao-tajiquistao-mais-do-que-uma-guerra-por-agua
Autores:
¹Delegado de Polícia, historiador, pesquisador de temas ligados a conflitos armados e geopolítica, Mestre em Segurança Pública
² Mestre e Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ, professor-colaborador e do Programa de Pós-Graduação em História Militar Brasileira (PPGHMB – lato sensu), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO e Editor-chefe do site História Militar em Debate e da Revista Brasileira de História Militar. Website: https://historiamilitaremdebate.com.br
Fontes consultadas:
https://carnegiemoscow.org/
The Defense Post
www.thediplomat.com
www.eurasianet.org
https://southfront.org/escalation-on-the-kyrgyz-tajik-border-gaining-momentum/
https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/mundo/quirguist%C3%A3o-anuncia-tr%C3%A9gua-com-tajiquist%C3%A3o-ap%C3%B3s-confronto-na-fronteira-1.611459