O Fosso do Boi de Botas

de

Jorge Cunha

O quadro acima é uma pintura de Jorge Cunha, óleo sobre tela, de 2014, a partir do texto de Gustavo Barroso, reproduzido, parcialmente, abaixo.

O texto abaixo foi usado como inspiração pelo artista Jorge Cunha para pintar o quadro e utilizado na sua primeira apresentação ao público na sede do Centro de Estudos e Pesquisa Histórica Militar do Exército (CEPHiMEX), então sediada no Palacete do Laguna, no Rio de Janeiro. O texto está no original, conforme publicado no Jornal do Comércio.

O FÔSSO DO BOI DE BOTAS

Gustavo Barroso

“Quase meio dia. No céu espanado de nuvens muito azul, o sol flaneia e a sua luz intensa cobre a triste paisagem paraguaia. Alumiam as aguas dos esteiros. Incandecem as areias dos passos. Branquejam as tendas dos vastos acampamentos aliados, em Tuiuti. Acabara-se acarneação e as tropas faziam o rancho à sombra de árvores e de latadas. Súbito, estala no ar, bem alto, um foguete de guerra. Ouve-se a explosão. Uma fumacinha leve esgarça-se lentamente no espaço.

É sinal do ataque paraguaio. Vai se travar a maior batalha campal do continente americano. Quatro grandes colunas inimigas, saindo das selvas e rompendo os banhados, caem de surpresa sobre os flancos e o centro dos exércitos aliados, constrangendo os nos seus tentáculos de ferro e fogo.

Os seis mil homens do intrépido José Edwiges Diaz surgem da Bocaina e atiram-se galhardamente contra a esquerda dos brasileiros, levando por diante a vanguarda da primeira divisão de infantaria. As tropas de Resquin arrancam furiosamente contra a retaguarda argentina, batem a cavalaria de Corrientes e só se detêm ante a resistência dos infantes. A gente de Barrios sorrateiramente caminha pelo potreiro Piriz afim de nos tomar pela retaguarda, porém topa com Osório que a destroça e a põe em fuga pelo Sauce. E toda a cavalaria de Marcó tenta romper o centro do exército em formidáveis investidas.

Poucos minutos depois daquele foguete se perder nas alturas, a cavalaria paraguaia começa a sair da espessa mata de Rojas pelas estreitas picadas a formar na orilha da vegetação, para a carga. Eram linhas continuas de fardas vermelhas que se iam estendendo a pouco e pouco, que se iam multiplicando umas por trás das outras. Trapejam no ar os estandartes tricolores. Faíscam as lanças agudas. Vibram os clarins.

Hilário Marcó, que comandava aqueles milhares de cavaleiros guaranis, galopa pela sua frente de batalha, ergue o sabre recurvo sobre a cabeça e dá o sinal da carga. Então, os compactos esquadrões trotam, galopam e carregam a vanguarda do exército composta das tropas orientais.

Ereto sobre o cavalo ruço, o vulto de Flôres dirige os movimentos de sua heroica infantaria, o poncho esvoaçando no meio do inquieto faúlhar das baionetas. A carga inimiga desenvolve-se em ordem na planície, executando as manobras com correção dum dia de parada. A mão de Flôres ondeia no ar. O seu corneteiro de ordens faz o metal falar, esganiçado, estridente. E os batalhões rapidamente formam em quadrado.

Mas a cavalaria paraguaia volve súbito à direita e, precipitando o seu movimento, acomete a linha das baterias do famigerado BOI DE BOTAS, o 1º Regimento de Artilharia a Cavalo.

As quatro baterias estendiam-se diante dum esteiro e ao lado dum laranjal abandonado.

Defendia-as um largo fosso réz do chão. Os canhões estavam guarnecidos, carregados, conteirados e apontados. A cavalhada e os armões alinhavam-se à retaguarda. Soldados e oficiais, a pé, nos seus postos de combate. Só o comandante Mallet montado, observando o inimigo.

O regimento entrara em Tuiuti no dia vinte de maio e desenvolvera-se em batalha sobre a divisão testa de coluna do Exército, a quilometro e meio das linhas de Rojas. Em posição os vinte e oito canhões; aliados os armões, as carretas, os carros manchêgos, as galeras, as forjas de campanha; enfileirados os homens, a pé, rédeas das montarias passadas nos braços, tanto os artilheiros como condutores; reunida a oficialidade na testa da linha, o coronel Mallet, dirigindo-se aos comandantes de baterias e o major fiscal Severino Martins da Fonseca, futuro barão de Alagoas, disse-lhes com voz larga e um tanto estrangulada:

– Meus senhores, nós aqui estamos mal, porem podia ser pior. Em todo o caso, devemos estar sempre preparados todos para qualquer surpresa, sobretudo por parte da cavalaria. Portanto, as minhas ordens são: meias guarnições a postos todos os dias sob a fiscalização dum dos capitães. Prontidão rigorosa todas as noites. E o sr. Major mande abrir à frente das baterias um fosso bastante largo e profundo. É ordem do general Osório. O trabalho deve ser feito no maior silencio e as terras retiradas da escavação não deverão ser acumuladas em parapeito, mas espalhadas de modo a não dar a perceber ao inimigo que estamos defendidos. E eles que venham¹!!!

Assim o BOI DE BOTAS esperava calmamente a carga paraguaia.

A cavalaria avança, desenfreada. Ao tropel dos milhares de cascos a terra estremece. O uivo dos clarins rompe, às vezes, o rumor estrondeante do galope. E o sol chispa nas laminas açacaladas, coroando de raios os regimentos que carregam, na frente o Acá-verá e o Acácaraiá, com seus terríveis rabos de galo².

A voz de Mallet desce sobre seu querido regimento do alto do belo cavalo zebruno:

– Granada e metralha! Espoletas a seis segundos!

A carga vem como um furacão. Está a quinhentos metros das baterias, a duzentos, a cem, a cinquenta! Os artilheiros empalidecem de ansiedade. As mãos dos chefes de peça crispam-se nos cordões das espoletas de detonação. Os oficiais sôfregos não tiram os olhos do gigantesco e amado comandante, que segue calmamente o ataque com seu binoculo de campanha.

Há mais do que um murmúrio de impaciência no grande regimento. Há uma trepidação. Mallet sente-a. Tira a luneta dos olhos e deixa cair estas palavras sibilantes:

– Os primeiros são para o buraco. Precisamos honrar o fosso, que nos deu tanto trabalho, amigos! Por aqui eles não passam!

Um suspiro de alivio. Todos compreendem. Todos sentem que o seu coronel sabe bem o que faz. Mas um barbarizo atroz, a velha usança guarani de amedrontar o inimigo, gritando, ganindo, vociferando, estronda e se avoluma quase aos seus ouvidos. A cavalaria paraguaia está a quatorze metros dos canhões, sabres alçados, lanças sacudidas no ar, os homens sobre os estribos, de pé, todos os clarins esganiçando-se! Mas as primeiras filas emborcam no fosso. Embrulham-se homens e cavalos. Há um espernear gemente e louco naquele valado horrível. E o galopear das outras filas passa por cima daquele sólo móle, movediço e ensanguentado.

A corneta do comando dá o sinal de fogo. As vinte e oito peças vomitam uma chuva de chamas e de ferro sobre os soldados de Marcó. E a cavalaria de Lopez recua em desordem, dizimada lateralmente pela fuzilaria dos infantes de Flôres, enquanto que, erguendo a espada luminosa, Mallet grita, rubro, estuante de alegria:

– Por aqui não entram!                                                                                

E o regimento inteiro, fremente de entusiasmo, atrôa os ares com a antiga aclamação do nosso Exército:

– Viva o Imperador!

Os cavaleiros rubros refluem até os arvoredos de raticorá e ali reformam seus esquadrões, repousam minutos e investem a artilharia a cavalo, ainda mais furiosos.

De novo galopam e carregam, aos berros, os sabres relampeando. De novo Mallet somente manda fazer fogo quando os esquadrões se engolfam no fojo que mandara abrir. E de meio dia até quatro horas da tarde, epicamente, dez vezes a coluna Marcó carrega o BOI DE BOTAS e dez vezes recua, desbaratada e diminuída, até reduzir-se de três mil homens a quinhentos.

Em frente às baterias, os cavalos e os soldados mortos formavam horrendos montões em que ainda pernas e braços se mexiam, e de quais saiam gemidos lancinantes.

Um ou outro cavalariano de farda vermelha arrastava-se pela lama ensanguentada. Os vinte e oito canhões estão em silencio. Serventes e artilheiros limpam o suor do rosto. Os oficiais aproximam-se um pouco para trocar impressões. Entretanto, a batalha continua. Argollo, indo, por ordem de Osorio, em socorro da divisão de Sampaio, que caíra mortalmente ferido, determinará a vitória à esquerda do centro. Mas Osório ainda se batia com as forças de Barrios e os argentinos sustentavam o peso dos ataques de Diaz.

Marcó lança-se à testa daqueles últimos quinhentos soldados contra a infantaria de Mitre. Mallet vê o movimento e ordena à bateria Krupp do regimento que desfaça aquela operação. Os canhões troam e a sua pontaria magistral faz com que as granadas acompanhem a tropa inimiga, no desenvolvimento de sua carga, como si fossem a sua sombra, ceifando pelotões inteiros. Então, os derradeiros esquadrões de Lopez dão meia volta e somem-se no mato.

Entardece. Sombras se alongam sobre os esteiros tristes. As aclamações da soldadesca celebram a grande vitória. Travara-se nesse dia, 24 de maio, a maior batalha campal da América.

Doze mil paraguaios entre mortos e feridos juncavam o campo de luta, o Exército de Lopez fora estrondosamente derrotado.

Entardece. A brisa do rio refresca os campos. O gemido dos feridos amortece-se à distância. Mallet, um tanto pálido por ter sido ferido, em bora sem gravidade, apeia-se do cavalo sobre que estivera cinco horas seguidas. Dá alguns passos em companhia de Cunha Mattos, seu ajudante.

Caminhando, os dois passaram a linha das baterias e abeiram-se do fosso atupido pelos cadáveres dos cavalos e dos cavaleiros inimigos. Mallet contemplou aquele espetáculo com meditativa tristeza. Cunha Mattos falou, como si tivesse pesado tecnicamente os sucessos do dia:

– Senhor coronel, aniquilando a cavalaria paraguaia, o senhor quase decidiu a vitória…

Mallet, disse, zombeteiro:

– Senhor capitão, faça uma continência àquele buraco. Ele é que é um dos maiores heróis do dia.”

¹ Estas palavras do coronel Mallet, bem como certos pormenores históricos da batalha, são tirados, com a maior fidelidade possível, num trabalho de ficção, do artigo O PRIMEIRO REGIMENTO DE ARTILHARIA A CAVALO NA BATALHA DE VINTE E QUATRO DE MAIO, do Marechal Cunha Mattos, publicado no Jornal do Commercio de 24 de maio de 1908, desprezada a parte parcial do mesmo em que seu autor procura diminuir a gloria do general Osorio.

² Respectivamente, em guarani, cabeça brilhante e cabeça de macaco, por causa do rabo de macaco que ornava o capacete.

Fonte

O PRIMEIRO REGIMENTO DE ARTILHARIA A CAVALO NA BATALHA DE VINTE E QUATRO DE MAIO, do Marechal Cunha Mattos, publicado no Jornal do Commercio de 24 de maio de 1908,

Bibliografia

Extraído de “A Guerra do Lopez – Contos e Episódios da Campanha do Paraguai”, Getúlio M. Costa Editor, Rio de Janeiro, 1939, 4a ed., 244pp.

Professor de História formado pela UGF. Mestrado e Doutorado em História pela UFRJ. Autor de artigos sobre História Militar e Geopolítica.

1 comentário em “O Fosso do Boi de Botas”

  1. ” Eles que venham que por aqui não passarão” Mallet.
    O fosso foi ideia do mais brilhante General Brasileiro, Gen Osório, patrono da cavalaria.
    Osório era um comandante completo pois , além de grande estrategista , manobrava no terreno com táticas surpreendentes. Haverá sempre uma cavalaria.

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